Reforma administrativa abole RJU e institui o contrato de experiência

A reforma administrativa em tramitação no Congresso Nacional por meio da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 32, de 2020, revoga o Regime Jurídico Único (RJU) e elimina o atual marco regulatório que estabelece as regras empregatícias entre o Estado e os servidores públicos. Trata-se da eliminação de uma das mais importantes conquistas da sociedade brasileira para defender os serviços e o dinheiro públicos dos interesses de políticos e empresários que orientam o documento apresentado pelo governo Bolsonaro.

Além de abolir o RJU – uma das principais leis infraconstitucionais que regem a relação trabalhista nos serviços públicos e protegem os cargos estatais – a reforma utiliza cinco novos tipos de vínculos empregatícios que torna o acesso aos cargos públicos uma relação de pessoalidade político-partidária. Essas características estão intrínsecas nos cinco vínculos estabelecidos pela PEC, sobretudo no denominado “vínculo de experiência”.

Os futuros servidores que ingressarem no serviço público após a promulgação da reforma administrativa não estarão protegidos dos interesses privados dos políticos e empresários porque a PEC põe fim ao RJU e à estabilidade e cria novos vínculos, alguns com ingresso por meio de concurso público e, outros, por seleção simplificada: todos com salários iniciais mais baixos e sem direito a promoções automáticas.

São cinco os novos vínculos empregatícios propostos na PEC: vínculos por experiência, por prazo determinado, por prazo indeterminado, cargo típico de Estado e de cargo de liderança e assessoramento (cargos de confiança). Com esses vínculos, o atual governo ajusta a Constituição Federal aos critérios largamente combatidos pela população brasileira de antes da Assembleia Nacional Constituinte de 1987.

Nesta quarta matéria da série “Reforma administrativa: o fim dos serviços públicos”, o Sinpro-DF mostra como o “vínculo de experiência” irá enfraquecer os serviços públicos, fragilizar as relações trabalhistas e transformar o concurso público em instrumento político-partidário de loteamento dos cargos públicos.

Vínculo de experiência: o contrato de experiência da iniciativa privada
No vínculo de experiência, a pessoa aprovada no concurso para o cargo denominado “prazo indeterminado” – que será a maioria das carreiras do serviço público –, terá de cumprir 1 ano de experiência e não terá, em nenhum momento de sua carreira pública, o direito à estabilidade. O cargo típico de Estado, por sua vez, terá de cumprir 2 anos de “contrato de experiência” e mais 1 ano de estágio probatório para alcançar o direito à estabilidade. Já há manifestação de parlamentares favoráveis a elevar esse tempo para 7 e até 10 anos.

A diferença é que será exatamente como acontece na iniciativa privada: apesar de aprovado em concurso, a pessoa não terá nenhuma garantia de permanência no cargo e nem direito à estabilidade. O “vínculo de experiência”, portanto, consiste em aplicar ao setor público as mesmas regras do setor privado com cada vez menos direitos e mais obrigações. Além disso, ele institui a “pessoalidade”, largamente existente na iniciativa privada, no lugar da “impessoalidade”, um dos princípios que regem a administração pública. A impessoalidade é um dos princípios que, juntamente com a legalidade, a moralidade, a publicidade e a eficiência, regem a administração pública direta e indireta segundo o artigo 37 da atual Constituição Federal.

“Trata-se de um contrato de experiência, um período em que o servidor é “contratado” como trainee, justamente no período que tende a ser um estresse. Como haverá mais trainee do que vagas – já que só passarão para a próxima fase, no caso de cargo tipo (estágio probatório) e a efetivação, no caso de prazo indeterminado, os mais bem avaliados –, a tendência é que haja mais competição do que colaboração, o que deixará o interesse público em segundo lugar na hierarquia de valores e importância”, afirma Antônio Augusto Queiroz, jornalista, consultor, analista político e diretor licenciado do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap).

“O problema não é exigir um período de experiência para se confirmar a pessoa no cargo público. O fato é que o governo Bolsonaro está usando este momento e esta forma de pressão para gerar uma condição de fragilidade para a pessoa que já foi aprovada no concurso público permanecer no trabalho. No texto oficial há uma frase que engana a quem o lê o parágrafo único do Artigo 41-A da PEC 32/2020, segundo o qual “é vedado o desligamento dos servidores de que trata o art. 39-A, caput, incisos I a IV, por motivação político-partidária”.

Vínculo de experiência e o loteamento dos cargos públicos
“O chamado ‘vínculo de experiência’ é uma forma de instituir o loteamento dos cargos públicos com indicações e escolhas político-partidárias. Por exemplo: quem estiver no período do ‘vínculo de experiência’ e aderir à greve será demitido. Além disso, todo tipo de atitude que, hoje, não é permitido ao Estado atacar o trabalhador, a partir do momento que se cria esse tipo de fragilidade, irá poder acontecer”, explica Cláudio Antunes, coordenador da Secretaria de Imprensa e Divulgação do Sinpro-DF.

“Uma coisa é a nota que a pessoa tira na prova do concurso para virar servidora pública. Atualmente, ela entra no estágio probatório. Mas, com a reforma, ela vai entrar no ‘vínculo de experiência’. No fim desse vínculo, ela será classificada por uma nota. Alguém vai dar essa nota a ela. Aí, vão pegar o grupo que ingressou naquele determinado concurso e vão ver as melhores notas obtidas no vínculo de experiência para manter essa pessoa ou não. Então, se eu não gosto de você, se você fez greve, se você ficou doente e apresentou atestado etc., eu reduzo sua nota. E nem precisa reduzir tanto a depender do número de vagas porque, se forem poucas, será o suficiente para a pessoa ser dispensada mesmo ela tendo passado no concurso para o serviço público”, esclarece.

É importante esclarecer que, no texto da PEC 32/2020, o número de vagas estará explícito. “Só irá para o vínculo de experiência a quantidade certa de cargos. Exemplo: se o Estado abre um concurso para 10 vagas significa dizer que 10 pessoas vão ingressar no vínculo de experiência. “É aí que está o problema da ruptura com as atuais leis que regem a relação trabalhista no serviço público porque se desses 10, quatro não vão ficar, haverá um déficit e vai ter de chamar, posteriormente, e treinar mais quatro pessoas. O que irá gerar gastos financeiros desnecessários”, explica Ana Paula Mondadore, socióloga e membro da assessoria técnica do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

Estado: o balcão de negócios dos empresários
Se tudo já está na lei e a atual Constituição é avançada e inovadora, por que, então, o presidente Jair Bolsonaro e o ministro da Economia, o banqueiro Paulo Guedes, querem mexer no que está correto? E por que a imprensa que apoia a reforma tem amedrontado o povo com a chamada “crise fiscal”?

“Porque na dimensão ideológica, o mercado apoia a reforma administrativa na perspectiva da chamada eficiência do gasto. Eles acham que o governo paga muito e isso, em determinadas circunstâncias, pode pressionar por melhores salários na iniciativa privada. Na dimensão fiscal, o mercado entende que o governo precisar economizar com salários e custos da máquina para gerar superávit para pagar juros e principal da dívida, além de poder reduzir a carga tributária sobre o setor privado”, explica Antônio Augusto Queiroz, do Diap.

Há ainda a dimensão de empreendedor ou fornecedor (produtor de bens e serviços) quer substituir o Estado, tendo lucro em cima de serviços que, atualmente, são prestados pelo Estado, como, por exemplo, os serviços de educação e saúde públicas.

Esses, querem o monopólio na produção de bens e na prestação de serviços. O Estado só entraria de modo suplementar e ainda assim somente no local em que o setor privado não quisesse ou não pudesse atuar. Para esses empresários, “empreendedores” e fornecedores, o Estado deveria apenas prestar, diretamente, justiça e segurança, devendo comprar o resto do setor privado, incluindo aí a educação e saúde.

A crise fiscal, que é quando o governo gasta mais do que arrecada, tendo que se endividar para pagar despesas correntes, entra em cena apenas para amedrontar a população e obter seu apoio. “Ora, se o Estado terá dinheiro para pagar aos empresários, empreendedores e fornecedores o que eles cobram para prestar os serviços, quem realmente irá gerar a crise fiscal? Deixo aqui a reflexão”, finaliza Cláudio Antunes, diretor do Sinpro-DF.

Confira, a seguir, primeira matéria da série:
PEC 32/2020 acaba com as férias do magistério público

Reforma administrativa privatiza serviços públicos por meio dos instrumentos de cooperação

Reforma administrativa modifica vínculos empregatícios e atinge os servidores

Outras matérias sobre reforma administrativa:
Câmara dos Deputados abre consulta sobre reforma administrativa

Sinpro-DF realiza live sobre impactos da reforma administrativa no serviço público

Reforma administrativa de Bolsonaro e Guedes ataca as carreiras de servidores e o atendimento público à população