PL do ensino domiciliar uberiza a profissão de professor

Uma ameaça à profissão de professor surge a todo momento. A última novidade para tirar o sossego do magistério público é o PL do ensino domiciliar. Redigido de forma a confundir os conceitos de educação domiciliar com homeschooling (ver matéria anterior), o projeto, de autoria do Governo do Distrito Federal (GDF), apresentado à Câmara Legislativa (CLDF) no dia 17/6, chegou com uma carta do governador Ibaneis Rocha (MDB) pedindo urgência na aprovação.

Se os deputados distritais seguirem a recomendação do governador, a profissão de professor estará com os dias contados na capital do País. Após consultar assessorias jurídica e pedagógica sobre o documento, o Sinpro-DF descobriu que o GDF resolveu se comportar como o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, na reunião ministerial do dia 22/4: está aproveitando a pandemia do novo coronavírus para passar a boiada.

Entre os vários decretos e portarias que instituíram, por tempo limitado, teleaulas e outros mecanismos de ensino remoto enquanto passa a crise sanitária da covid-19, o GDF manda, junto, um PL do ensino domiciliar que promove um troca-troca de conceitos e modifica leis constitucionais no campo da educação.

Em matéria publicada nessa terça-feira (23), o Sinpro-DF divulgou a primeira parta da análise jurídica e pedagógica do documento. Mostrou que é inconstitucional por retirar a obrigação do Estado de assegurar educação pública e gratuita, como preveem vários artigos da Constituição Federal, e ataca o Estado democrático de direito.

O PL do governo Ibaneis também destroça o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), adota princípios da Lei da Mordaça (Escola sem Partido), infringe a Lei da Gestão Democrática e o Plano Distrital de Educação (PDE), acaba com a função da escola e uberiza a profissão de professor.

O PL do ensino domiciliar do GDF é uma cópia mais bem detalhada do PL 356/2019, de autoria do deputado distrital João Cardoso (Avante). Ambos são alinhados com as diretrizes ultraconservadoras e privatistas do Movimento da Lei da Mordaça, que tem tentado instituir o Escola sem Partido em todos os municípios do País por meio de leis infraconstitucionais, municipais e estaduais.

Ataque ao Estatuto da Criança e do Adolescente – No entendimento da professora Edileuza Fernandes da Silva, professora aposentada da Secretaria de Estado da Educação do DF (SEEDF), ex-subsecretária de Educação Básica e, atualmente, professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB), o PL do ensino domiciliar também confronta o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA).

“Representa também uma afronta às conquistas sociais que visam a garantir o direito das famílias, crianças e adolescentes e o dever do Estado, além de ser um esgarçamento no que diz respeito aos espaços públicos de desenvolvimento via as orientações de valores democráticos para a sociedade”, afirma.

A professora da UnB assegura que o PL infringe o artigo 227, da Constituição, segundo o qual “é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária”.

“A defesa do papel da escola como espaço de educação formal não significa defendê-la como único espaço de educação de crianças e jovens. É incontestável a importância das famílias na educação de seus filhos. A corresponsabilização pela educação prevista na Carta Magna não pressupõe exclusão de uma instituição ou de outra, ao contrário, requer parceria escola–família para o alcance das finalidades da educação prevista no artigo 205 da Constituição Federal.

Lei da Mordaça – O movimento de modernização conservadora, resultante de aliança entre integrantes de grupos e partidos políticos e líderes de organizações religiosas defende alternativas e escolarização que visam s reverter o papel social da escola, de instituição pública, laica, democrática, para uma escola repressora, reguladora de mentes e corpos.

Esse movimento é ligado à Escola sem Partido que se intitula apartidário, mas tem forte vínculo com partidos políticos neoliberais de extrema-direita, como o Partido Social Cristão (PSC), o Partido Republicano Brasileiro (PRB) e o Partido da República (PR), cujos filiados compõem a denominada “bancada da Bíblia”, no Congresso Nacional.

“O que propõem na verdade, ameaça os princípios de respeito à liberdade e à solidariedade humana, do pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, da valorização profissional, da igualdade de condições de acesso e da permanência na escola, da garantia do padrão de qualidade elencados no art. 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN) de 1996”, complementa a professora da UnB.

Mercantilização da educação e uberização da docência – Edileuza explica que, para esses grupos privatistas ligados à Lei da Mordaça, a educação é anunciada e denunciada como a causa dos problemas. “Precisamos nos atentar ainda para o fato de que avança no Brasil a defesa da mercantilização da educação e da relativização da oferta de vagas/escolas por parte do Estado. Em substituição, a educação passaria a ser ofertada por instituições privadas com subsídios do Estado, como, por exemplo, por meio dos _vouchers_ ou cheque educação”.

Abrem-se, com esse tipo de ataque à educação pública brasileira, brechas para a precarização do trabalho do professor ou sua atuação de forma informal na direção de um fenômeno denominado “uberização” da docência. Os candidatos a professor se registram e, depois de um processo simplificado de seleção, ficam integrados a uma plataforma de funcionamento semelhante à do Uber.

Ou seja, as escolas aderentes a essa plataforma comunicam suas vagas temporárias e o sistema convoca os professores disponíveis, que podem aceitar ou não. As aulas poderão ser lecionadas presencialmente, caso a escola se situe na cidade em que o professor reside, ou via Internet, para qualquer escola brasileira. Confira aqui artigo sobre a uberização do magistério.

PL infringe a Lei da Gestão Democrática e o PDE – Além disso, o PL também infringe a Lei da Gestão Democrática e o Plano Distrital da Educação (PDE) porque determina um modelo de educação de cima para baixo sem consultar os públicos usuários e interessados.

Lei de Gestão Democrática do Sistema Público de Ensino do DF (Lei nº 4.751/2012), em seu artigo 2º, destaca a necessária “participação da comunidade escolar na definição e na implementação de decisões pedagógicas, administrativas e financeiras, por meio de órgãos colegiados, e na eleição de diretor e vice-diretor da unidade escolar.

Infringe o PDE e suas 21 Metas e inúmeras Estratégias que, se implementadas, podem contribuir para a melhoria da qualidade da educação pública do DF. “Por que não implementá-lo em vez de mandar um PL dessa natureza para a CLDF?”, indaga Edileuza Silva.

Função social da escola – A professora da UnB alerta para fato de que é função social da escola desenvolver processos didático-pedagógicos mediados por profissionais com formação específica e pedagógica que oportunizem a formação integral dos estudantes.

“Isso passa pela aquisição de conteúdos disciplinares, mas não se limita a eles. Assim, mesmo o governo realizando exames periódicos (como propõe a PL) e exigindo que a família apresente planos de estudos, haverá lacunas na formação uma vez que os alunos perderão, em termos dos seus direitos e deveres do estado, oportunidades de socialização em contextos de interações com os diferentes em escolas públicas ou privadas”.

Ela explica que esse modo de oferta da educação repercutirá também na sociedade, pois o indivíduo será formado para a vivência de processos individuais que vão fortalecer o individualismo e a competitividade.

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