Escola em casa? Por que devemos parar de romantizar o homeschooling

Tudo acontece dentro de casa agora: lives o tempo todo, faxinas homéricas, home office, divã digital e aulas adaptadas à nova rotina imposta pelo isolamento. Os filhos estão fora da escola, mas não de férias: inquietação, irritabilidade, insônia, medo, solidão e tédio estão entre as principais mudanças no comportamento infantil, diz a cartilha “Crianças na pandemia de Covid-19”, publicada pela Fiocruz no início de maio, mês que registrou a marca de 91% de estudantes sem aula presencial no mundo todo

Na casa de Mayim Bialik, porém, impera a paz. “Apesar da tragédia global, nós, tipo hippies introvertidos, estamos nos sentindo confortáveis com esses ajustes. Há muita paz em se sentir confortável como nós nos sentimos com nossos filhos”, declarou a atriz norte-americana, famosa pela série “The Big Bang Theory”, à agência Bloomberg. Bialik é neurocientista, mãe de dois garotos, autora de livros sobre pais e filhos e, no YouTube, dá dicas de homeschooling. “Não é preciso ser um super-herói para educar em casa. Mas o que muitas pessoas estão experimentando agora não é homeschooling, é educar em casa enquanto tenta trabalhar”, definiu

Se nos primeiros dias de pandemia foi tentador “romantizar” o homeschooling como um momento sublime para aproximar famílias, não demorou muito para pais e mães relatarem dificuldades com a modalidade de ensino, encurralado entre afazeres domésticos e home office — principalmente para mães, a quem historicamente é atribuída a responsabilidade da casa e do cuidado dos filhos. Segundo estudo da demógrafa Jordana Cristina de Jesus, da UFRN (Universidade Federal do Rio Grande do Norte), no Brasil pré-pandemia mulheres respondiam por 85% do trabalho doméstico, com dedicação diária de até 6 horas, enquanto a participação dos homens se restringia a 60 minutos. “Sou muito grata porque posso oferecer o ensino à [minha filha] Clara, já que a maior parte da população nem tem Wi-Fi. Mas salvem os professores e as mães. É chato, temos que fazer um trabalho que não sabemos. Para ela entender que não era férias foi um perrengue. O dia que ela voltar às aulas, vou dar uma festa”, relatou a atriz Ingrid Guimarães à revista Quem.

“Em tempos de isolamento, quando o assunto é ajudar os filhos a aprender, os dilemas variam, mas giram em torno dessa missão que de longe parecia tão trivial, mas de perto é um mistério insondável: como diabos se faz para uma criança estudar? Aos poucos, vamos percebendo se trata de um enigma que se desdobra em mil perguntas: quais materiais devo oferecer? Quanto tempo devo insistir? Pode fazer na frente da TV?”, questionou o jornalista Rodrigo Ratier, colunista de Ecoa. Segundo a experiência de Ratier, junto à filha Luiza, a quarentena é a “melhor propaganda possível” contra o homeschooling.

Expectativa x realidade

Teoricamente, homeschooling não é apenas “ajudar” nas lições de português, assistir vídeo-aulas ao lado do filho ou tirar da cartola brinquedos para “atividades lúdicas” para distrair a criança enquanto se lava louça. É uma modalidade de ensino, na qual pais (ou tutores e professores particulares) são responsáveis pela educação dos filhos, incluindo um projeto pedagógico, do abecedário à história. Em tempos de tendências negacionistas, vale lembrar: a terra não é plana e o nazismo não era de esquerda.

O modelo é legalizado em diversos países (como Estados Unidos e Portugal), mas não no Brasil, onde tramita um projeto de lei para regulamentá-lo desde 2012, indicado inclusive como uma das metas prioritárias do governo de Jair Bolsonaro desde 2019. Segundo reportou a agência BBC News Brasil, já se rascunhou uma medida provisória sobre o assunto, aproveitando o contexto atual para avançar com a pauta no Congresso.

“No Brasil, a defesa do homeschooling é fruto de uma ideologia que rejeita a dimensão pública da vida. Ideia importada dos Estados Unidos, trata-se de um braço das disputas ideológicas em torno da escola, que começa a tirar a criança do espaço exclusivamente privado e a introduz numa sociabilidade maior, em que ela vai conviver com gente diferente, que pensa diferente, com valores diferentes. A escola é o espaço onde a criança terá contato com ideias distintas das de seu círculo familiar”, avalia o sociólogo José Ruy Lozano, conselheiro do Core (Comunidade Reinventando a Educação).

A modalidade desperta discussões inclusive nos países onde é permitida. Na edição deste mês da Harvard Magazine, a acadêmica norte-americana Elizabeth Bartholet, diretora da Faculdade de Child Advocacy da Escola de Direito de Harvard, fez críticas ferrenhas e defendeu banir o homeschooling nos Estados Unidos, principalmente sobre a ausência de regulamentação nos requerimentos mínimos aos pais, como a proposta de grades curriculares. “Também é importante que as crianças cresçam expostas a valores sociais e democráticos, ideias de tolerância e não-discriminação”, argumentou.

Mas o que muitos pais vêm realizando não é homeschooling, mas uma mediação para dar apoio, estrutura e estabilidade para seus filhos estudarem em casa, a partir de conteúdos vindos das escolas, públicas e particulares. No Brasil, e-learning e EaD (ensino a distância) integral, dizem especialistas ouvidos pelo TAB, devem ser vistas como alternativas paliativas e provisórias, não definitivas. “Se considerarmos as dez competências que fundamentam a BNCC (Base Nacional Comum Curricular, documento que apresenta os objetivos de aprendizagem na educação básica brasileira), vemos pontos como empatia e cooperação, responsabilidade e cidadania, cujo desenvolvimento demanda a interação presença, não distância”, diz Lozano.

Os 99% Pegos de surpresa, pais mundo afora foram “convocados” a educar os filhos dentro de casa, muitas vezes sem conhecimento das disciplinas, didática e demais habilidades para conduzir o processo de ensino e aprendizagem. “A pandemia jogou uma lupa sobre as muitas diferenças que já existiam, só que ficaram escancaradas. O aprendizado dessa situação é: a ideia de que as crianças podem ser educadas só pelos pais não é viável, sobretudo porque educação também é relacionamento, é o contato com outras crianças”, analisou o psicólogo Rossandro Klinjey no UOL Debate sobre educar durante a pandemia.

Especialistas destacam três fatores que pesam nessa discussão: desigualdade no acesso a tecnologia (telefone, tablet, internet, computador); desigualdade no acesso a mediadores (pais e professores já preparados para adaptar aulas e não ficar reféns de vídeo-aulas, que não permitem interação); a o impacto psicológico nos alunos devido à quebra de rotina escola-casa e a ausência de interação física na escola.

“Homeschooling tem sido discutido em muitos países. Mas a demanda no Brasil corresponde a menos de 1% da população escolar”, diz Tatiana Filgueiras, vice-presidente de educação e inovação do Instituto Ayrton Senna. Segundo dados do Censo Escolar de 2018, levantados pelo Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira), há 48,4 milhões de alunos matriculados na educação básica (educação infantil, ensino fundamental e ensino médio) no Brasil. “Este é o momento de focar nas políticas públicas mais universais, nos outros 99% que precisam que as políticas funcionem agora. Discutir homeschooling agora é tirar o foco do problema principal”, avalia Filgueiras.

Alternativas de ensino remoto são emergenciais para amenizar a suspensão das aulas presenciais, permitindo que os alunos consigam continuar realizando atividades e mantendo o vínculo com a escola. “Não há condições de repor 800 horas letivas ainda neste ano. A atividade que acontece agora em casa é fundamental. Mas o ensino remoto deixa muita gente de fora: 44% dos alunos de 6 a 19 anos que estão entre os 20% mais pobres não têm acesso a internet e a nenhum recurso, como computador”, destaca. “No mundo todo e nos rincões do Brasil, do Oiapoque ao Chuí, redes públicas têm discutido o retorno às aulas. Tudo indica que não vai poder acontecer simultaneamente para todos os alunos, será escalonado ou rodiziado”.

Há também desigualdades regionais, destaca Gabriel Corrêa, gerente de políticas educacionais do movimento Todos pela Educação: de um lado, há estados já estudando a reabertura das escolas, por exemplo, no Maranhão, Pernambuco e São Paulo; de outro, há cidades que mal conseguiram reagir ao fechamento dos colégios. Segundo levantamento do Cieb (Centro de Inovação para a Educação Brasileira) junto a 3 mil secretarias de educação espalhadas no país, enquanto as redes estaduais majoritariamente recorreram a estratégias de ensino online, a maioria das redes municipais não adotou nenhuma ação – nem digital, nem material impresso como apostilas ou livros didáticos, nem transmissão via TV.

“Precisamos pensar já na volta às aulas, pois a pandemia não vai durar para sempre. Criticar o homeschooling e defender o ensino presencial não tem a ver com desdenhar a tecnologia ou as famílias. Tecnologia deve ser um aliado contínuo para a educação neste futuro que está logo aí, como ferramenta do trabalho pedagógico do professor. Famílias são muito importantes, principalmente neste momento de incerteza tão delicado. Todos podem contribuir para que este não seja um ‘ano perdido'”, aposta.

Fonte: TAB UOL