Mais Alfabetização afeta contrato temporário e resvala na Lei da Terceirização e na reforma trabalhista

O Programa Mais Alfabetização, adotado pelo governo Rodrigo Rollemberg, do PSB, faz parte de um projeto neoliberal que visa à privatização da educação pública e gratuita e, ao mesmo tempo, à precarização das relações de trabalho no magistério público. Essa precarização tem sido imposta aos trabalhadores da iniciativa privada por meio da reforma trabalhista.
Nesta quarta matéria da série “Terceirização no magistério público do DF”, o Sinpro-DF entrevistou a professora Natália de Souza Duarte, que traz a reflexão sobre como o governo ilegítimo usou uma demanda legítima dos(as) professores(as) da rede pública de ensino por monitores e colaboradores na alfabetização para empurrar sobre a categoria a precarização do trabalho e adotar preceitos da reforma trabalhista e da Lei da Terceirização.
Natália vê dois lados na contratação precária de Assistentes de Alfabetização: um positivo e, outro, negativo. “E sua relação com as últimas reformas do governo Temer deve ser  analisada à luz de uma análise sobre a atual situação econômica do país e do mundo e ao fato de que vivemos em um estágio do capitalismo muito complicado, pós-crise de 2008, em que a financeirização do capital faz com que haja um ataque ao fundo público e, para tanto, preacriza-se as áreas sociais para diminuir custos e, assim, poder remunerar o capital via pagamento de juros e aplicações financeiras  por parte dos governos”.
Ela explica que, em razão disso, e de outros aspectos relacionados à financeirização das economias do terceiro mundo, são adotados diversos mecanismos para essa precarização do trabalho e mercantilização de direitos sociais, como, por exemplo, a desoneração, os empréstimos, a remuneração de capital, a diminuição dos gastos do Estado. “Coadunado com esta perspectiva e para maximizar lucros, as relações protegidas de trabalho são precarizadas para diminuir e externalizar custos, bem como ampliar o lucro do capital”, analisa.
Ela esclarece que essa é a lógica da tão propalada precarização das relações de trabalho e, quando isso ocorre, os salários e as garantias diminuem, o emprego formal desaparece, a exploração do trabalhador, mesmo quando está empregado, o impossibilita de sair da pobreza e, ao mesmo tempo, recrudesce as respectivas violações de direitos, que se tornam cotidianas.
“Contudo, numa análise como esta, é importante considerar o fato de que a construção de políticas públicas tem ciclos, os quais, por vezes, iniciam-se de forma precária, com políticas residuais, com desenhos alternativos, nunca com as condições ideais. Por isso acho importante dizer que a atuação do Ministério da Educação nas políticas que intentam apoiar as escolas e o seu funcionamento sempre se materializou por meio de programas que não estabelecem relações protegidas de trabalho de imediato, como o Mais Educação, o Universidade Aberta, o Escola Aberta, dentre outros. Esses programas também não remuneram adequadamente; pagam por bolsas, lei do voluntariado, etc.”, avalia.
PRECARIZAÇÃO E BIDOCÊNCIA
Natália afirma que, mesmo precarizados, esses programas têm conseguido atender a reivindicações importantes dos(as) docentes e ampliar coberturas de direitos da população. “Por vezes, têm conseguido, até mesmo, modificar os modus operandi excludentes convencionais. Não podemos desconhecer os avanços na cobertura do ensino superior que ocorreram por meio do Programa Universidade Aberta, pelos programas de formação de docentes nos mesmos moldes, pelo acesso ao direito à educação integral propiciado pelo programa Mais Educação. É importante reconhecer que esses serviços ampliaram direitos a populações anteriormente excluídas. Desse modo, é essencial reconhecer que há professoras(es) dos anos iniciais que gostariam de contar com um apoio do tipo proposto nesse projeto. Enquanto alfabetizadora, reconheço a legitimidade dessa demanda. Por isso é relevante fazer a crítica de forma responsável, reconhecendo suas fragilidades, mas também seus avanços”, pondera.
Ela afirma, no entanto, que a contratação de apoios aos alfabetizadores por meio de ressarcimento com base na lei do voluntariado não pode ser um fim em si mesmo. E cita como exemplo o curso de pedagogia proposto pela Escola Superior de Magistério da Universidade Distrital (impedido de funcionar pelo Ministério Público), que prevê o ingresso de estudantes nas escolas desde o primeiro semestre, como ocorre nos cursos de medicina e enfermagem da Escola Superior de Ciências da Saúde (ESCS), até mesmo apoiando os alfabetizadores.
“Algo formativo, nessa linha, selecionando dentre licenciandos, resgatando o projeto das residências pedagógicas, o desenho inicial do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência (Pibid), atrelado a um projeto formativo pelo mundo do trabalho, não é precarização. Mas a proposta de Assistente de Alfabetização com base na lei do voluntariado ad aeternum é precarização sim. Por mais que seja legítima essa reivindicação dos alfabetizadores”, explica.
Natália prefere propostas com bidocência nos anos iniciais conhecidas, como a de João Monlevade. Ou experiências como a da Escola Classe 115 Norte, com bidocência, de professores(as) nos anos iniciais que permite um trabalho pedagógico inovador.
PROFESSORES DO CONTRATO TEMPORÁRIO
A adesão do GDF à contratação de Assistentes de Alfabetização pode afetar os(as) professores(as) do contrato temporário porque o país e o mundo enfrentam a era da minimização de custos das políticas sociais e do Estado. Como diz Pepe Mujica, ex-presidente da República do Uruguai, os que comem bem, dormem bem e têm boas casas acham que o governo gasta muito dinheiro em políticas sociais.
“E com base nessa lógica dos afortunados, que, geralmente, apropriam-se dos recursos financeiros do Estado para enriquecer, se podemos pagar entre R$ 150,00 até no máximo R$ 1.200,00 a um Assistente de Alfabetização por 40 horas de trabalho pedagógico com os estudantes (remuneração máxima proposta no programa), por que não podemos pagar, dessa forma, para alfabetizadores? Essa é a lógica do capital. Por isso precisamos ficar atentíssimos á lógica do capital para que capitalistas não se apropriem de tudo!”, alerta.
Natália diz que é favorável, dentro de um projeto formativo e comunitário,  à reivindicação dos alfabetizadores de terem um apoio nesse trabalho tão importante. “Mas esse apoio não pode ocorrer à custa da precarização do trabalho de uma pessoa. Não é por termos um enorme contingente de pessoas desempregadas e empobrecidas que podemos violar direitos e condições dignas de trabalho, contrato e remuneração”.
A diretoria colegiada do Sinpro-DF lembra que a precarização do trabalho no magistério público se aprofundou, inicialmente, em 2007, quando o Governo do Distrito Federal (GDF) se utilizou da aprovação da Lei nº 4.036/2007, da gestão compartilhada, e determinou o pagamento de salário do contrato temporário por hora-aula. Uma política que começou a partir de março de 2008, segundo a qual a forma de cálculo e a exclusão de gratificações, à época (Tidem), reduziram em mais de R$ 1.000,00 o salário dos professores do contrato temporário.
“Desde então, para revertermos essa situação, passamos a trabalhar na lógica do pagamento da Tidem na composição salarial do contrato temporário, mas essa reivindicação só ocorreu em 2012, durante a gestão democrático-popular no GDF”, recorda Cláudio Antunes, coordenador de Imprensa do Sinpro-DF
Ele explica que o cálculo continua sendo feito por hora-aula. “A nossa preocupação é que houve um forte ataque à condição de trabalho do contrato temporário há 10 anos e, agora, assistimos a mais um movimento que pode levar à substituição do contrato temporário por Assistentes de Alfabetização, abrindo, assim, uma porta para que, no futuro, outras disciplinas sejam lecionadas por assistentes precarizados. Trata-se de uma coisa que chega pela alfabetização, ou seja, pela disciplina Atividades, e poderá se ampliar de forma rápida para precarizar as outras áreas da docência e as outras disciplinas da educação básica”, adverte o diretor do sindicato.
No entendimento da diretoria do Sinpro-DF, essa precarização, conforme explicação em outra matéria desta série (confira no final deste texto), afeta negativamente a pedagogia e os(as) pedagogos(as). “O que se está vendo é o GDF contratar de forma precarizada uma pessoa que não é formada, colocando-a para atuar numa área em que o magistério já exige formação superior e, ao mesmo tempo, a Constituição Federal exige o concurso público. O movimento do GDF hoje, com esse tipo de contratação, pode, futuramente, naturalizar essa situação a ponto de trocar a contratação temporária por esse extremo de precarização salarial e de condições de trabalho denominado Assistente de Alfabetização e pagar uma remuneração muito menor do que o piso nacional e eliminar garantias trabalhistas básicas mínimas”, alerta.
As lideranças sindicais docentes consideram ainda que, mesmo em sendo o critério de contratação o diploma de conclusão de superior nas áreas de educação, esse tipo de contratação continuaria precarizada porque o GDF estará contratando pessoas por um valor abaixo do piso para fazer o mesmo trabalho do professor concursado e, ainda, sem oportunizar as seleções públicas que a Constituição determina.
“Essa é uma das formas que a reforma trabalhista impacta no magistério público, que, combinadas com ações como a desse programa, podem a curtíssimo prazo provocar a desestabilização de direitos de quem exerce o magistério público no Distrito Federal”, adverte a diretoria. Ela lembra que o movimento docente defende o concurso público como mecanismo democrático e transparente para acesso ao cargo de professor e de orientador educacional do magistério público; a redução do número de estudantes por turma na educação básica, ou seja, não só no nível de alfabetização, mas em toda a educação básica; e a educação pública, gratuita, laica e socialmente referenciada.
E ressalta que defende a redução de estudantes por turma no ensino básico, como preconiza o Plano Distrital de Educação (PDE), porque essa é a fórmula para assegurar as condições da educação pública e gratuita do DF se qualificar.
MAIS ALFABETIZAÇÃO E A BNCC
Outro aspecto do Programa Mais Alfabetização do governo federal é a relação dele com a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) que o governo ilegítimo pôs em curso e foi aprovada sem a participação democrática das entidades do setor de educação, como vinha sendo construída a BNCC nos governos democrático-populares. Para a categoria docente, essa é outra questão complexa que pede cuidado em sua análise.
“A BNCC pode ser um instrumento de precarização dos serviços educacionais porque minimiza saberes e profissionais. A Base pode servir de legitimação de circuitos educativos muito precários e empobrecidos. Mas não quer dizer que não seja necessária outra concepção de currículo”, observa a professora.
Ela recorda o currículo da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEEDF) e o considera muito interessante porque foi feito por professores(as) da própria rede pública de ensino em um ciclo democrático de participação. “E isso foi tudo o que faltou no debate da BNCC. No caso da alfabetização, esta BNCC aprovada de forma autoritária é centrada em avaliações externas e de larga escala e, isso, a fez concentrar-se em duas ou três disciplinas convencionais. Além disso, dá espaço para iniciar o trabalho de alfabetização na educação infantil e propõe que a alfabetização ocorra somente até os 8 anos. São aligeiramentos e distorções que permitem precarizações e que reduzem a escola a aprendizagens medidas em testes. E educação é muito mais do que isso”, assegura.
REFORMA TRABALHISTA NO MAGISTÉRIO PÚBLICO
Natália considera importante, por uma série de razões, a proposta de apoio ao alfabetizador. E explica que a reivindicação é legítima porque o trabalho docente e a infância se complexificaram e, hoje, há um conjunto de atividades e de funções novas que compõem a docência, as quais extenuam e adoecem o professor(a) e, ao mesmo tempo, violam a infância e seus direitos, incluindo aí, dentre outros, os de aprendizagens.
“Por exemplo, no DF, quase 40% dos estudantes vivem abaixo da linha de pobreza e são beneficiários do Programa Bolsa Família. Isso é um absurdo! A pobreza é a maior violadora de direitos. E a escolarização da população empobrecida é muito exigente porque, a escola, é, praticamente, o único equipamento público ao qual essas crianças empobrecidas têm acesso, sendo muito exigente a docência para esses grupos. Entretanto, não se pode aceitar que para minimizar esse quadro, se proponha a precarização e o adoecimento ainda maior de outras pessoas convocadas para um exercício profissional sem ter a relação de trabalho amparada em direitos”, critica.
A professora diz que construir política pública com base em voluntariado não pode ser a opção final e assegura que, ao ler a proposta em curso, deparou-se com uma contratação de Assistentes de Alfabetização que precariza o trabalho docente e não remunera os(as) profissionais adequadamente. “E, ainda, é fundamental destacar o fato de que é preciso reconhecer que são as relações protegidas de trabalho que sustentam o tecido social”.
Ela entende que a reforma trabalhista violou a proteção que o trabalho tinha no Brasil e feriu de morte a sociedade brasileira. Natália prevê um futuro assustador, com uma população cada vez mais empobrecida e um abismo social insustentável que, inexoravelmente, aprofundará a violência e o caos.
“Regredimos 80 anos na matéria trabalhista e esperar que não haja deterioração de nossa sociedade é, no mínimo, ser ingênuo. Está praticamente legalizada a superexploração do trabalhador, que violenta, sob qualquer perspectiva, a dignidade e a proteção a ele e a sua família. Esse contingente de pobres superexplorados há de se rebelar”.
PRIVATIZAÇÃO DA ESCOLA PÚBLICA E MERCANTILIZAÇÃO DO DIREITO SOCIAL
O Programa Mais Alfabetização e a contratação precária de Assistentes de Alfabetização, bem como uma série de ações governamentais no setor da educação, podem ser denominadas de ações privatistas porque visam à privatização da escola pública e, mercantilista, porque transformam o direito social à educação pública e gratuita em mercadoria.
“Assim custa menos aos governos de plantão e sobra mais recurso financeiro do fundo público para remunerar o capital privado. Ora, em 2017, gastamos quase 50% do fundo público com pagamento de juros de uma dívida não auditada, como determina a Constituição Federal! É como se eu pegasse metade do meu salário e gastasse pagando juros do cartão de crédito. Um gasto que só faz bem aos bancos e às operadoras de crédito e viola o direito da minha família ao bem-estar”, explica Natália.
Ela denuncia também o fato de a contratação de Assistentes de Alfabetização estar relacionada à Lei da Terceirização (Lei nº 13.429/2017), sancionada após a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 4.302/98, a qual entrega uma espécie de cheque em branco à iniciativa privada atuar em todos os setores do serviço público, sobretudo, nas atividades-fim.
“O governo federal atual, ilegítimo, porque alcançou o poder por meio de um golpe (político-midiático-jurídico), implantou um conjunto de medidas tão violadoras aos brasileiros (reforma trabalhista, Emenda Constitucional 95/16, privatizações, venda das riquezas nacionais) que é muito explícito seu compromisso com o capital financeiro e com os países hegemônicos, como os EUA, revelou sua completa falta de compromisso com a população que paga impostos, ainda que esteja desempregada, e demonstrou seus interesses privatistas com a prestação total de serviços que o Estado precisa realizar, especialmente para o asseguramento de direitos sociais, como o direito à saúde, à educação, à cultura, dentre outros, como direitos fundamentais e até humanos. É essa a lógica que faz propor o pagamento de R$ 150,00 por 8 horas de trabalho pedagógico a um Assistente de Alfabetização”, ressalta.
No entendimento de Natália, “paralelamente a esse processo, para acessar o fundo público, a iniciativa privada está se credenciando para prestar serviços. Isso é mercantilização e precarização da educação, da saúde. Ora, só estão interessadas em gerar lucro com serviços de péssima qualidade que expropriam o trabalhador. É só observar o que ocorreu no ensino superior e o que vem ocorrendo na educação básica. Essa é a relação perigosa que todos nós precisamos vigiar, enfrentar e resistir”.
Confira abaixo as três primeiras matérias da série “Terceirização no magistério público do DF”:
GDF manipula informação para população pensar que Rollemberg cumpre o PDE
Programa Mais Alfabetização e a precarização do trabalho docente no DF
Contratação de Assistentes de Alfabetização desqualifica o pedagogo e o trabalho da mulher