Contratação de Assistentes de Alfabetização desqualifica o pedagogo e o trabalho da mulher

Quando Darcy Ribeiro disse que “a crise da Educação no Brasil não é uma crise, e sim um projeto”, ele não poderia imaginar que aquela situação imposta pelos generais poderia piorar mil vezes mais de 20 anos depois de abolida a ditadura militar. Ele disse isso em 1977, numa palestra que denominou de “Sobre o óbvio”, num congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC).
A frase do antropólogo, educador, romancista e político soa hoje como um vaticínio, ou um mau presságio. A prova está no Distrito Federal. Guiado por uma sanha irrefreável de privatização, desde que ocupou o Palácio do Buriti, o governador Rodrigo Rollemberg (PSB) busca uma forma (ou fórmula) neoliberal de introduzir na educação pública e gratuita do DF aquilo que os militares tentaram impor nos anos 1960 e 1970: um sucateamento irreversível, pensado e elaborado pelo projeto MEC-USAID, que vai desde a não ampliação de rede para não atender adequadamente à demanda sempre crescente da sociedade brasiliense por educação pública e gratuita até a adoção da terceirização como instrumento de salvação do objeto sucateado e mecanismo de mercantilização do direito social à educação.
Nesta terceira matéria da série “Terceirização no magistério público do DF”, o Sinpro-DF mostra como a adesão do Governo do Distrito Federal (GDF) ao Programa Mais Educação, de um governo ilegítimo na esfera federal, visa a, dentre outras formas de sucateamento, desqualificar a pedagogia e desvalorizar a importância da presença do(a) pedagogo(a) na alfabetização de crianças e até mesmo de adultos no sistema de ensino.
É quase unânime, entre professores(as) e orientadores(as) educacionais, a opinião de que a contratação, em curso, de Assistentes de Alfabetização, sem a formação necessária, como prevê o Programa Mais Educação, é um mecanismo do governo ilegítimo de Michel Temer, e também do governo neoliberal de Rollemberg, de precarizar o trabalho docente para mercantilizar a educação pública e gratuita e usar as vagas de pedagogo(a) e professor(a) para uso político e contratação sem vínculo empregatício de qualquer pessoa para alfabetizar crianças.
“Um prejuízo absoluto não só para a categoria e carreira do magistério público, mas também para as crianças brasilienses em formação pela rede pública de ensino. No Distrito Federal, essa alfabetização sem a qualificação necessária isso não se aplica. Nós, desde 2008-2009 trabalhamos com blocos de iniciação que compreende 3 anos. Não se fala mais em alfabetização em 2 anos. A gente trabalha por 3 anos nesse bloco inicial. 1º, 2º e 3º Anos. E esse processo é dentro de um ciclo. Essa criança não vai ficar retida numa etapa, num período porque ela não construiu determinadas propostas, não alcançou determinados objetivos propostos”, analisa a diretoria colegiada do Sinpro-DF.
A diretoria esclarece que, no DF, a criança avança com seus pares para as etapas seguintes porque também nessa perspectiva sociointeracionista de ela se vir junto com seus pares e aprendendo junto com eles dentro de um contexto que lhe é de afinidade, dentro de seu campo de afinidades, com colegas que ela conhece, não existe isso de ela ficar para trás e os outros avançarem. No DF temos um ciclo de 3 anos. A criança será respeitada no seu processo infantil, de maturidade cognitiva, motora, até mesmo, neurológica, e dentro desse processo e dessas etapas do desenvolvimento esta criança vai sendo instrumentalizada com os processos dos códigos linguísticos e outros procedimentos curriculares para aprender a leitura e a escrita dentro de um contexto social necessário.
Onze prejuízos imediatos
Anderson de Oliveira Corrêa, diretor de Política Educacional do Sinpro-DF, enumera onze problemas relacionados a essa contratação. ” Primeiro, é um programa que desvaloriza o magistério público com contratações precárias de pedagogos;  segundo, contrata de forma precária os docentes, prejudicando as nomeações de professores na rede pública de ensino; terceiro, no DF, na rede pública de ensino, temos a gestão democrática, a direção não pode tomar essa decisão sozinha, e sim com professores/as, orientadores/as e toda comunidade escolar;  quarto, ao precarizar, subtrai a autonomia do professor e da própria escola;  quinto, a alfabetização desqualificada tem a ideia reducionista de que a escola é apenas transmissora de conteúdos, prejudicando o desenvolvimento motor e cognitivo do estudante, a escola deixa de ter o papel fundamental de formação humana; sexto, essa contratação apresenta-se com mão de obra barata sem direitos trabalhistas, apenas um colaborador no sistema educacional; sétimo e oitavo, segundo Paulo Freire, os princípios freirianos são organizados por eixos temáticos com propostas de alfabetização, esse método deve ser organizado na rede pública por profissional qualificado e formação continuada; nono, o alfabetizador desqualificado é um transmissor de conteúdos sem metodologia com didática rígida e sem rota de aprendizagem, o pedagogo com formação superior e continuada alfabetiza com ênfase no desenvolvimento motor e cognitivo do educando, produz conteúdos interativos de forma planejada e sistemática; décimo, a escola integral auxilia no conjunto de aprendizagens necessárias para alfabetização na idade certa; e, décimo primeiro, trata-se de um profissional essencial no auxilio da alfabetização na educação infantil, pois essa atividade promove estímulos físicos, intelectual e cognitivo do educando”.
Assim, na opinião do diretor, ao aderir ao programa do Ministério da Educação (MEC) e pôr em curso a seleção simplificada para contratação de Assistentes de Alfabetização por meio da lei do voluntariado, mas pagando aos contratados um valor irrisório de R$ 150 ou R$ 300 para atuarem durante 4, 5 horas por dia em sala de aula como auxiliares alfabetizadores, mais do que sucatear a educação, o governo Rollemberg prejudica milhões de crianças que precisam da rede pública de ensino para sua formação inicial.  Na avaliação da diretoria colegiada do Sinpro-DF, um governante sério considera fundamental que a alfabetização de crianças seja conduzida e executada por pessoa concursada, qualificada, com formação (inicial e continuada) do pedagogo para atuação em alfabetização.
“Se não é a ideal, que seja a melhor possibilidade de chegar ao estudante com dificuldade de aprendizagem e alfabetizá-lo ao seu tempo e ritmo. É o profissional pedagogo quem se preparou para cumprir esta tarefa e não será um monitor que vai dar conta dessas respostas. Poderá ele tapar o sol com a peneira e é isso que o governo pretende ao não investir em contratação por meio de concurso público de mais professores dos anos iniciais, colocar um provisório não resolverá o problema. Além de contratar, evidentemente, será necessário dar as condições para a atuação e o trabalho docente nas turmas de alfabetização e, claro, em todo o sistema de ensino. Isso requer investimento”, assegura Cláudio Antunes, coordenador de Imprensa do Sinpro-DF.
Categoria docente entre o espanto e a dúvida
Entre a categoria docente, há um misto de espanto e dúvida sobre esse procedimento. Mas, em várias escolas, as diretorias não titubearam. Identificaram o pretexto do programa federal e não aceitaram a proposta do governo. Perceberem uma “jogada” que, dentre vários tipos de prejuízos, visa a desvalorizar os(as) professionais de pedagogia e a própria educação pública. Diante dessas evidências, gestores de várias unidades escolares recuaram e, outros, recusaram-se a receber nas escolas em que administram uma mão de obra precarizada, tida como voluntária, mas a receber uma espécie de pró-labore para “auxiliar” professores(as) de Atividades. Leila Maria de Jesus Oliveira, professora da Secretaria de Estado da Educação do DF (SEEDF), mestre em educação e educadora popular, considera um assombro, na alfabetização de crianças, a atuação de pessoas leigas na pedagogia em turmas de alfabetização, preenchendo uma lacuna de investimento na contratação de professores(as) para os anos iniciais.
“O que parece ser uma salvação para as escolas, que vivem no atual governo uma instabilidade muito grande, haja vista a baixa nos recursos do PDAF, turmas que voltam a estar lotadas, alimentação escolar que não supre o mínimo e a baixa contratação de professores concursados, na verdade cria uma cortina e aumenta a instabilidade nas relações pessoais e pedagógicas nas escolas. Não creio que o auxílio externo de uma pessoa leiga em pedagogia, nos processos de desenvolvimento infantil, no desenvolvimento das aprendizagens possa colaborar com a alfabetização de crianças que por diversos motivos ainda não alcançaram plenamente a alfabetização. Para mim, um grande risco será confundir a aprendizagem com a decoreba e um processo mecânico e repetitivo de alfabetização se instalar nas escolas e nas turmas de alfabetização”.
Leila alerta para o fato de que não se pode justificar essa contratação com o argumento de que o Método Paulo Freire permite que a alfabetização seja ministrada por qualquer pessoa. “As crianças que estão em estado de desenvolvimento físico, psíquico e intelectual. Estão constituindo os seus saberes de vida. Qualquer movimento desajustado pode influenciar sobremaneira na via escolar deste estudante. Requer, por isso, um conhecimento muito maior do que um livro cartilha ou didático. Requer saber aspectos do desenvolvimento infantil, da aprendizagem, do motor que somente em anos de estudo (e para mais que anos de estudo) se pode ter acesso e aprofundar. Não é somente entrar na sala e “alfabetizar” mecanicamente”.
E explica que “não se pode confundir a alfabetização de jovens e adultos com a alfabetização de crianças. Na educação de pessoas jovens e adultas a maior preocupação é não infantilizar o processo educativo e o currículo. Uma abordagem de leigos na alfabetização de pessoas jovens e adultas é uma relação de troca de saberes e aprendizagens entre sujeitos de uma mesma maturidade emocional e cronológica. É uma relação de sujeitos adultos em que ambos ensinam e aprendem com suas experiências de vida. Não há o saber mais ou o saber menos, como aponta Paulo Freire, são saberes diferentes. Isso influencia na relação ensino-aprendizagem em que um método de alfabetização pode ser aplicado por pessoas leigas em pedagogia para pessoas adultas não escolarizadas”.
A precarização do trabalho da mulher
Olga Cristina Rocha de Freitas, pedagoga, professora itinerante da Escola Bilíngue de Taguatinga, especialista em educação, gestão e democracia,  mestra em neurociência do comportamento e doutoranda em educação, diz que, para além da  desqualificação do curso de Pedagogia e da precarização do trabalho das pedagogas, a contratação de Assistentes de Alfabetização nos termos em que o Programa Mais Alfabetização propõe, significa também uma precarização do trabalho da mulher.
“Se considerarmos que, em todo o Brasil, apenas na carreira magistério, as mulheres são quase 80% do quadro – era 76,4%, em 2015 – e se considerarmos ainda que  o maior número de professoras atua nos anos iniciais e na educação infantil, etapas em que se situa o maior número de estudantes, nós também poderemos refletir que a precarização do trabalho das(os) pedagogas(os) é uma precarização do trabalho da mulher. Significa dizer  que a cultura machista do século XIX, que autorizou a mulher a ingressar no mundo do trabalho por meio do magistério, ainda está muito presente, muito latente na sociedade de agora. O  que se está dizendo nas entrelinhas  é que este é um trabalho que não requer especialização, grandes estudos;  que pessoas leigas podem realizá-lo,  porque apenas extensão da “vocação natural” da mulher para os cuidados com os pequenos e, portanto, trivial.  Mas este é um pensamento retrógrado,  que vai na contramão   daquilo que já está consolidado, científica e academicamente:  não é algo trivial alfabetizar uma criança;  não é tarefa que dispense  a especialização de saberes, o conhecimento específico sobre o desenvolvimento infantil e suas interfaces com as outras áreas do conhecimento, por exemplo”, avalia.
Ela afirma “o curso de Pedagogia é  único, pois alia o conhecimento das etapas e processos do  desenvolvimento infantil aos fundamentos teórico-metodológicos necessários à implementação de estratégias de ensino em todas as  áreas do conhecimento.” E explica ainda que o curso de pedagogia também contempla em seu currículo disciplinas como Sociologia, História e Filosofia da Educação, que propõem uma visão reflexiva sobre o função social da educação e da escola,  e a importância da(o) professora(or) como agente de transformação da sociedade. E não se pode deixar de mencionar os estudos sobre os diferentes tipos de deficiências e necessidades especiais, que requerem diferentes organizações do trabalho pedagógico e estratégias de ensino.
Todos esses conhecimentos reunidos formam uma profissional singular, competente para atuar nas primeiras fases da infância, em diferentes contextos, promovendo uma aprendizagem significativa, duradoura e exitosa. “Mas o GDF confirma sua opção pelo desmonte da educação pública  e, desconsiderando que a alfabetização é a mais importante fase da escolarização, insiste na contratação de pessoas leigas, para as quais será ofertada uma formação mínima,  meramente instrucionista, com foco no processo mecânico de codificação/decodificação da língua”, diz Olga.
Ela diz que o pior é a falta de uma formação sólida, consistente, como a do curso de Pedagogia, sem dúvida, resultará em “assistentes” que irão simplesmente reproduzir uma metodologia,  sem a necessária reflexão, crítica, contextualização. É tudo o que um projeto de governo neoliberal,  retrógrado, precisa e deseja. Ao se preparar mecanicamente os formadores, estes replicarão, também mecanicamente, o que lhes foi orientado,  contribuindo para  a formação de uma população acrítica, ensinada apenas a reproduzir, sem a devida contextualização, os códigos linguísticos; sem associar a tecnologia da leitura e escrita ao cenário em que ela se dá;  ao seu próprio contexto sócio-histórico. Ler e escrever são ferramentas políticas, de libertação, emancipação dos sujeitos. Se desenvolvidas nessa perspectiva, tornam-se um risco a quem tira proveito da ignorância alheia.
“Não se trata apenas da apropriação do código linguístico, mas do uso social desse código, do letramento de quem o usa, ou dos letramentos, porque ler e escrever abre as portas para o letramento matemático, científico, tecnológico.” E o curso de pedagogia é, hoje,  o único curso de formação de professoras/es que contempla, em seu currículo, disciplinas que oferecem ferramentas didático-pedagógicas para o ensino das linguagens, das ciências sociais e humanas, das ciências da natureza e da matemática”,  e de acordo com as etapas de desenvolvimento da criança. “Claro que ainda há  uma grande lacuna entre teoria e prática  nos cursos de pedagogia que, em geral, são mais teóricos. A (o) estudante de pedagogia chega à escola com  um repertório experiencial insuficiente para atuar com autonomia e considerando a diversidade de estilos cognitivos, mas, mesmo assim, é o único curso que oferece essas ferramentas, sem as quais, a alfabetização, principalmente numa perspectiva histórico-crítica, terá pouco ou nenhum êxito”, afirma Olga.
Confira a seguir, as duas primeiras matérias da série “Terceirização no magistério público do DF”:
GDF manipula informação para população pensar que Rollemberg cumpre o PDE
O Programa Mais Alfabetização e a precarização do trabalho docente no DF