Brincantes, brincadeiras e brinquedos populares: as infâncias resistem

(*) Por Aluízio Augusto Carvalho Santos

  Nas memórias dos brinquedos e brincadeiras da infância dos anos 1970/80, em Belém (PA), há uma especial, a dos brinquedos de miriti com que nossa mãe nos presenteava quando  retornava da procissão do Círio de Nazaré[1]. Encantava-me pela singeleza e possibilidades daqueles brinquedos, eram rói-róis, ratinhos, barcos, aviões, pássaros-na-comida e muitos outros que fizeram parte dos meus anos de infância.

Acho que o quintal onde a gente brincou é maior do que a cidade. A gente só descobre isso depois de grande. A gente descobre que o tamanho das coisas há de ser medido pela intimidade que temos com as coisas. Há de ser como acontece com o amor.

Assim, as pedrinhas do nosso quintal são sempre maiores do que as outras pedras do mundo. Justo pelo motivo da intimidade.

Mas o que eu queria dizer sobre o nosso quintal é outra coisa. Aquilo que a negra Pombada, remanescente de escravos do Recife, nos contava. Pombada contava aos meninos de Corumbá sobre achadouros. Que eram buracos que os holandeses, na fuga apressada do Brasil, faziam nos seus quintais para esconder suas moedas de ouro, dentro de baús de couro. Os baús ficavam cheios de moedas dentro daqueles buracos.

Mas eu estava a pensar em achadouros de infâncias. Se a gente cavar um buraco ao pé da goiabeira do quintal, lá estará um guri ensaiando subir na goiabeira. Se a gente cavar um buraco ao pé do galinheiro, lá estará um guri tentando agarrar no rabo de uma lagartixa. Sou hoje um caçador de achadouros de infância.

Vou meio dementado e enxada às costas a cavar no meu quintal vestígios dos meninos que fomos. […] (BARROS, 2008, p. 9).

 

            Ao escavar os vestígios da memória até os confins da infância, também reencontro o fazedor de brinquedos que nunca deixei de ser. Logo, precisamos compreender que no imaginário das crianças o brinquedo (objeto) e o brincar (ato) estão ligados. Assim a história, a cultura e as relações influenciam cada ciclo de desenvolvimento das nossas infâncias, mas se não entendermos a importância fundamental que o aspecto do brincar ocupa na vida das crianças e, principalmente, na educação infantil, fracassaremos em oportunizar tempos e territórios de profunda relação com suas situações imaginárias, como as que Manoel de Barros relata.

A responsabilidade de assegurar o direito ao brincar cabe às famílias, às(aos) educadoras/educadores, gestoras/gestores e à sociedade toda, inclusive no espaço escolar que, ainda, em alguns casos, deprecia o brincar, reduzindo a escola apenas ao tempo-espaço de transmissão de conteúdos.  E não é difícil encontrar escolas privadas que comercializam a educação como um “pacote de conteúdos” a serem testados ao final do ensino médio.

A construção de uma nova perspectiva, teórica e prática, para a infância, faz parte de um processo histórico, o que possibilitou compreender o brincar como essencial nesse período da vida humana, onde o tempo é nosso aliado e a criação é nossa companheira constante. Mas se o brincar e os brinquedos são tão importantes, é só proporcionar os objetos, o espaço e o tempo?

Considerando a história do brinquedo em sua totalidade, o formato parece ter uma importância muito maior do que se poderia supor inicialmente. Com efeito, na segunda metade do século XIX, quando começa a acentuada decadência daquelas coisas, percebe-se como os brinquedos se tornam maiores, vão perdendo aos poucos o elemento discreto, minúsculo, sonhador. Será que somente então a criança ganha o próprio quarto de brinquedos, somente então uma estante na qual pode, por exemplo, guardar seus livros separados dos livros pertencentes aos pais? Não há dúvida: em seus pequenos formatos, os voluminhos mais antigos exigiam a presença da mãe de maneira muito mais íntima; os volumes in quarto mais recentes, em sua insípida e dilatada ternura, estão antes determinados a fazer vista grossa à ausência materna. Uma emancipação do brinquedo põe-se a caminho; quanto mais a industrialização avança, tanto mais decididamente o brinquedo se subtrai ao controle da família, tornando-se cada vez mais estranho não só às crianças, mas também aos pais. (BENJAMIN, 2009, p. 91-92)

Assim, constatamos que o avanço da modernidade resultou no afastamento do brincar e do brinquedo como um processo doméstico de criação e confecção, que unia adultos e crianças, sendo substituído pelo consumo, reforçando a solidão e o individualismo imposto pelo tempo mecânico e vazio das fábricas, indústrias e comércios; dessa maneira, alcançando “as coisas” das crianças, em suas formas, tamanhos e pesos, adequando-se ao estilo de vida dos grandes centros urbanos.

O documentário Brinquedo Popular do Nordeste[2] (1977, cor, 25 min. DF), do diretor Pedro Jorge de Castro – curiosamente o primeiro filme dirigido por um residente da capital federal a ganhar o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro – registra de forma direta  a relação dos brinquedos artesanais com a sociedade, filmando artífices em suas oficinas e as crianças se relacionando com esses brinquedos, e também registra como a massificação dos brinquedos se intensificou no Brasil a partir do final da década de 1970. Porém, ao direcionar o olhar da câmera fora dos eixos do racionalismo academicista e de teorias vazias, podemos acompanhar o percurso da experiência cultural em seu sentido amplo e profundo.

Na generosidade de Mestras e Mestres brincantes da cultura popular, encontramos a resistência contra-hegemônica da qual a infância faz parte e foi muito bem exemplificada no discurso apresentado pela professora estadunidense Angela Davis na Conferência Internacional sobre Crianças, Repressão e Lei na África do Sul (1987):

À medida que esta conferência se desenrolava, conhecemos experiências vividas por crianças que são inimaginavelmente mais terríveis do que qualquer coisa que a maioria dos adultos possa vir a enfrentar em toda a vida. Jovens de dezesseis anos vivenciam a prisão e a tortura com choque elétrico. Ainda assim, o menino que descreveu esse suplício em detalhes vívidos concluiu seu depoimento expressando o desejo de voltar ao seu país a fim de retomar sua participação na luta pela libertação de seu povo. Existe uma evidência incontestável de que há entre as crianças um espírito que se recusa a ser subjugado. (DAVIS, 2017, p. 96. O grifo é nosso.)

Carrinhos de lata ou de garrafa PET, manés-gostosos, rói-róis, ratinhos, traca-tracas… brinquedos populares e tradicionais, em sua maioria construídos com os restos e sobras do consumo dos adultos, são exemplos de como o momento da construção do brinquedo pode ser um momento brincante de encontro entre famílias ou educadores, esses brinquedos ainda encantam por apontar caminhos necessários para resistirmos e construirmos uma sociedade saudável e sustentável, para criarmos paradigmas distintos dos que orientam nossa sociedade atualmente.

Cada ciclo e faixa etária de desenvolvimento tem seus brinquedos e brincadeiras, apropriados, exemplo, é a brincadeira de esconde-esconde, que começa ainda no 0 ano de idade, com os adultos escondendo-se atrás de um lençol, porta, parede, etc… e vai ficando mais complexo com o passar dos anos, ganhando novas regras e espaços. Outro exemplo é o teatro de bonecos, que também pode começar cedo com objetos como a meia até a construção de uma empanada[3] cruzando a sala ou o quarto.

Podemos ampliar nossos entendimentos e incluir as cantigas de roda nas possibilidades, como nas músicas que acompanham e orientam brincadeiras como a de pular corda, os versos de a canoa virou pode render horas infindáveis de uma doce repetição que um dia poderemos encontrar no nosso baú de memórias, sejam com nossos pais ou com nossos filhos. Quem nunca se desafiou a criar versos para lengas-lengas como a velha a fiar “Estava a véia em seu lugar/Veio a ______ lhe atentar”, exemplos e possibilidades podem encher muitos manuais de brinquedos, porém alguns indagamentos ajudam a nos lembrar do quão é essencial a brincadeira: “de quê brinquei hoje com meu filho ou estudante?” “quais brincadeiras/brinquedos  eles gostam?” “o quanto sou brincante?”

José André dos Santos ou Mestre Zezito (1951-2006), iniciou a confecção e construção de brinquedos ainda muito cedo – com dez anos começou a produzir carrinhos com latas de sardinha – que foi se formando brincante e educador de tantas outras pessoas, e que também era artista circense, Palhaço Pilombeta, erguendo sua lona e formando a Companhia Circo, Boneco e Riso, que foi a escola e a casa de crianças, adolescentes e jovens em Águas Lindas de Goiás/GO, cidade periférica próxima a Brasília,  e referência para artistas do Distrito Federal:

Os diferentes tipos de brinquedos fabricados pelo mestre Zezito e seus aprendizes eram confeccionados a partir de material recolhido em lixos ou doados por pequenos comerciantes, e posteriormente estes brinquedos eram comercializados por preços bem abaixo do valor de mercado. Com o desenvolvimento da cidade, crescia o número de crianças e adolescentes em situação de risco. (SOARES, 2012, p. 25)

Foi reconhecido como Mestre por sua comunidade, artistas e educadoras/educadores descobriu muito cedo o valor do brincar; somente com o primeiro ano do ensino primário, não precisou realizar estudos acadêmicos para aprofundar-se nos brinquedos e brincadeiras fundamentais para crianças, adolescentes e jovens. Compartilhou seus saberes e fazeres, desenvolvidos laboriosamente na sua oficina que mantinha nos lugares onde residiu, formando outras pessoas que transmitem seus ensinamentos atualmente.   

Em 1997, no Distrito Federal, uma inovadora proposta aconteceu para aproximar o universo dos brinquedos populares e a educação. Mestre Zezito, em parceria com o Sindicato dos Professores do Distrito Federal (SINPRO/DF) organizou um curso de 80 horas intitulado “Confecção e Manipulação de Brinquedos Populares Tradicionais”, oferecido a professoras e professores da educação pública para auxiliá-las(os) a reconhecer a importância dos brinquedos populares como linguagem primordial das infâncias. Contudo, essa experiência que fomentou a criação e a produção de intervenções culturais e educativas entre educadoras/educadores é rara, tão rara quanto a inclusão do brincar nos planejamentos pedagógicos ou intencionalmente compartilhados em família.

Ao brincar e construir brinquedos, a criança lida e interage com aspectos sociais importantes, que não podem somente ser verbalizados e que têm significados múltiplos. Forças ancestrais são conectadas e memórias são acessadas.

Criar uma maneira diferente de docência requer ir além dos limites castradores, que são valorizados nas instituições de ensino, e transmitidos nos espaços de formação de professoras e professores. É necessário que os quinze minutos disciplinares do recreio sejam extrapolados para uma aceitação de que brincar é potente em si mesmo, necessita-se de educadoras e educadores capazes de serem afetados pelo prazer criativo que as crianças encontram na brincadeira. (SANTOS, 2017, p. 5)

Provisão, proteção e participação são aspectos que encontram ligação na brincadeira, e que foram legitimados no Brasil pelo Estatuto da Criança e do Adolescente – (ECA) (BRASIL, 1990), logo, é um direito assegurado às crianças, aos adolescentes e aos jovens. Ao garantir o direito ao brincar estamos nos fortalecendo como sociedade e cumprindo nossas atribuições como educadoras/educadores e responsáveis. Portanto, a infância necessária para todos é a que tenha, além de casa, comida, carinho, saúde e educação, um tempo e um espaço de brincar garantidos. E cabe a cada um de nós, especialmente quando lidamos diariamente com as crianças, tentar romper com alguns paradoxos da infância, permitindo e favorecendo o brincar.

As mudanças necessárias à nossa sociedade não serão comercializadas em shoppings, grandes centros comerciais ou importadas de outros países, também não será a criação de mais teorias sobre o brincar atrás dos muros das universidades; provavelmente, para começarmos a trilhar o caminho dessas mudanças precisaremos olhar com mais empatia para as infâncias e para nossas Mestras e nossos Mestres da cultura popular, que ainda resistem com seus ensinamentos para verdadeiramente sermos uma Mátria mãe gentil!

 

Oficina de brinquedos e brincadeiras populares no Acampamento Marias da Terra, do MST (DF) em julho de 2019.

  (*) Aluízio Augusto Carvalho Santos –Palhaço, pesquisador e professor. Foi iniciado nas artes e culturas populares por mestres como Ary Para-raios, Mestre Zezito e tantos outros por mais de 25 anos de experiências nas comunidades com as quais conviveu.

Formado em Pedagogia, desde 2018, pesquisa as áreas da arte, educação, saúde, cultura e produção simbólica, representações dos imaginários e aprendizagem criativa, investigando as expressões artísticas das narrativas das crianças, suas fantasias e seus artefatos, idealiza e realiza cursos, oficinas e projetos que investigam uma pedagogia social contida nos imaginários e linguagens das infâncias.

Atualmente é professor de 4º ano de uma escola do campo e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de Brasília (PPGE/UnB).

    * Fotos feitas pelo fotógrafo Bené França.

 

REFERÊNCIAS

BARROS, M. de. Memórias Inventadas. As infâncias de Manoel de Barros. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2008.

BENJAMIN, W. História cultural do brinquedo. In: Reflexões sobre a criança, o brinquedo e a educação. São Paulo: Editora 34, 2009.

BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, p. 13563, 16 jul. 1990. Disponível em:

 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/L8069.htm  Acesso em: 24 fev. 2021.

DAVIS, A. Crianças primeiro: a campanha por uma África do Sul Livre. In: Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017.

SOARES, D. O. Associação Castelinho Cultura Ninho dos Artistas: uma referência do trabalho cultural e social em Águas Lindas de Goiás. 2012. 45 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Teatro) – Instituto de Artes, Universidade de Brasília, Brasília, 2012.

SANTOS, A. A. C. Tempo de brincar: reflexões sobre a brincadeira no ambiente escolar. Brasília: PIBIC/UnB, 2017.

[1] Manifestação religiosa e cultural celebrada no segundo domingo de outubro na cidade de Belém, do Pará.

[2] Disponível em: https://youtu.be/UkepUZNLyG8 . Acesso em: 24 jan. 2021.

[3] É o lugar onde os bonequeiros ficam para apresentar o teatro de bonecos.