Ventre livre: Senadores resistiram a avanços sociais

Neste 28 de setembro, em que a Lei do Ventre Livre completa 150 anos de promulgada, é interessante revisitar os arquivos do Senado Federal para observar os discursos dos eminentes senadores de então. Trata-se de um debate bem proveitoso a ser apresentado aos alunos do Ensino Fundamental II e do Ensino Médio. Por que motivos alguém seria contra a aprovação de uma lei que tornaria livres todas as crianças nascidas de pessoas escravizadas?

Até que se chegasse àquele 28 de setembro de 1871, foram três meses e meio de negociações na Câmara dos Deputados, mais três semanas no Senado, onde o projeto de lei do Visconde do Rio Branco (MT) passou por uma discussão rápida, porém conflituosa.

Segundo informações disponíveis nesta matéria da Agência Senado, muitos senadores ficaram preocupados pois, ao se libertarem os nascidos de mães escravizadas, não haveria a natural renovação do contingente de “elemento servil” (expressões da época. Perceba: por mais asquerosa que possa soar neste ano de 2021, a expressão “contingente de elemento servil” ao mesmo tempo transforma uma vida humana numa commodity, mas o faz com uma conotação de importância e neutralidade – para o proprietário do “elemento servil”, claro. No contexto escravocrata do século XIX, era uma expressão usada por gente importante e poderosa.).

A versão original da Lei do Ventre Livre, assinada pela princesa Isabel (imagem: Arquivo do Senado)

A preocupação dos fazendeiros surgia em meio a um contexto em que a renovação do já citado “contingente de elemento servil” estava comprometida, pois desde 1850 o Brasil estava sob a lei Eusébio de Queirós. Por causa dela, uma das fontes de mão de obra escravizada — o tráfico de africanos — secou. A fonte que se manteve foi a do nascimento de bebês escravizados em solo brasileiro.

A Lei do Ventre Livre estabelecia, na verdade, que os filhos permaneceriam junto da mãe escravizada, vivendo no cativeiro, até os 8 anos de idade. Dos 8 aos 21 anos, continuariam na propriedade do senhor, se ele assim desejasse, ou então passariam para a responsabilidade do Estado. O poder público, contudo, não se preparou para cuidar das crianças que completassem 8 anos. Elas, então, permaneceram nas fazendas, trabalhando como se fossem escravizados. Na prática, a liberdade prevista na Lei do Ventre Livre só viria mesmo na idade adulta, aos 21 anos, segundo a reportagem da Agência Senado.

Pois vamos observar como argumentaram então os senadores, para que o “projeto de extinção gradual do elemento servil” fosse derrubado ou, pelo menos, atrasado.

— Qual será o motivo desta urgência? Haverá, porventura, alguma razão oculta que não possa ser revelada ao corpo legislativo? Eu digo que estas medidas podem, sim, ser discutidas em outra sessão [em outro ano] sem nenhum inconveniente — pressionou o senador Joaquim Antão (MG).

— Devemos não esquecer que a liberdade é um direito que tem consequências. A mais preciosa é o direito de sair dos domínios da escravidão para um outro em que o escravo fica com direitos quase iguais e a certos respeitos iguais aos do senhor. Note-se que temos diante dos olhos um futuro próximo de intervenção dos libertos no direito de votar. Teremos uma massa imensa de cidadãos brasileiros e africanos que hão de querer dar o seu voto nas assembleias paroquiais – argumentou Silveira da Mota (GO).

Já o senador Barão das Três Barras (MG) se preocupava em não fornecer argumentos à oposição:

— Consagre-se em lei a ilegitimidade do nascimento escravo, como se pretende fazer, declarando ingênuos [livres] os que nascerem da data da lei, e a propaganda [abolicionista] terá direito de exigir a aplicação aos já nascidos. 

Se você está pensando neste momento “será que alguém falou que o Estado não tem como custear essa libertação?”, observe o argumento do senador Figueira de Melo (CE):

Charge do jornal O Mosquito mostra o Visconde do Rio Branco, o primeiro-ministro conservador responsável pela aprovação da Lei do Ventre Livre (imagem: Biblioteca Nacional Digital)

— Se nós quiséssemos de uma só vez, por uma simples penada, acabar com a escravidão, teríamos ao mesmo tempo a rigorosa obrigação de previamente, na forma da Constituição do Império, indenizar a todos os proprietários com valor correspondente a cada escravo. Mas a nação estaria em circunstâncias de fazer tão grande sacrifício? Poderíamos ter rendas, meios ou impostos suficientes para pagar esses valores? E, se tivéssemos de contrair um empréstimo, que deveria ser avultadíssimo, não levar-nos-iam os respectivos juros quase toda a renda com que atualmente contamos? Decerto.

Altos custos para os produtores e proprietários de escravizados? Perigo no tocante à segurança externa? Teve tudo isso, sim, senhor! De acordo com o Visconde de São Vicente (SP), a escravidão prejudicava inclusive as famílias dos fazendeiros:

— Pelo que toca à segurança externa, é uma nociva causa de enfraquecimento das forças do Estado. Se em vez de 1 milhão de homens escravos, tivéssemos mais esse número de trabalhadores livres, só daí poder-se-ia tirar um exército. O que acontece, porém, é que a população escrava fica nos estabelecimentos dos senhores, e o recrutamento vai pesar sobre os filhos da lavoura.

Márcia Gilda, diretora do Sinpro-DF e Coordenadora da Secretaria de Raça e Sexualidade, lembra que a Lei do Ventre Livre representou uma vitória do movimento abolicionista que vinha se fortalecendo. “A pauta da escravidão perdia força e o debate estava colocado na sociedade. Embora a Lei não tivesse o alcance de todos os escravizados, ela garantiu que os filhos das mulheres negras nascessem livres rompendo com a lógica do sistema escravagista no Brasil.”

Mudam-se os contextos, mudam-se os temas, mas os interesses das elites permanecem os mesmos – tal qual seus argumentos. E, como diria Heleninha Roitman, a personagem de Renata Sorrah na novela Vale Tudo: “Que ano é hoje, mesmo?”

A matéria da Agência Senado traz muito mais informações sobre a aprovação da Lei do Ventre Livre. Leitura de primeira.

 
 

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