Relatório do FUNDEB contradiz objetivos da Emenda Constitucional 108 e ameaça gravemente os profissionais da educação

Desde a primeira versão do relatório do deputado Felipe Rigoni (PSB-ES) ao PL 4.372/20, que trata da regulamentação do art. 212-A e de outros dispositivos da EC 108, que aprovou de forma permanente o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação – FUNDEB, a CNTE tem se manifestado contrária a diversos dispositivos do relatório, pelo fato de não estarem adequados aos objetivos da Emenda 108. Pelo contrário: tentam resgatar conceitos rejeitados por ampla maioria por ocasião do debate e aprovação da PEC 15/2015, que deu origem à EC 108.

Entre as questões ressuscitadas pelo relator, destacam-se, a priorização de repasses públicos para instituições privadas, expandindo os atuais limites da Lei 11.494; a inserção de critérios meritocráticos que prejudicam a gestão democrática e a ampliação do financiamento às redes públicas de ensino que mais necessitam de investimentos; a inviabilidade de participação da sociedade nas diversas instâncias que tratam da formulação, do monitoramento, do controle e da avaliação do fundo público da educação básica, desprezando os preceitos do parágrafo único do art. 193 da Constituição Federal; a possibilidade de privatização quase irrestrita das escolas públicas e de terceirização de seus profissionais ao não fixar travas para as ações redistributivas dos entes públicos às suas escolas; o descaso em estabelecer critérios de expansão das matrículas nas áreas com maior déficit de atendimento (creche e EJA), menosprezando as políticas de busca ativa por novas vagas e a contabilização das mesmas no FUNDEB nos diferentes anos em curso.

Para além dessas e outras omissões e contradições, alguns pontos são ainda mais caros à CNTE, entidade representativa dos/as trabalhadores/as da educação básica pública. Além de lutar pelo direito à educação de todos/as os/as brasileiros/as, nos termos definidos pela Constituição Federal (que elegeu a oferta pública como prioritária), compete à CNTE defender os interesses de sua categoria profissional. E ao longo de décadas a Confederação, em diálogo com diferentes governos e com o parlamento, tem avançado nas políticas de
reconhecimento e valorização dos profissionais da educação, as quais começaram a sofrer graves ameaças.

O FUNDEB foi uma grande conquista da sociedade brasileira, na medida em que aprofundou o regime de cooperação entre os entes federados (com maior participação da esfera federal no financiamento da escola de nível básico), possibilitando maior inserção de estudantes em todas as etapas e modalidades com mais qualidade (embora seja preciso avançar nesse quesito) e equidade no atendimento público. Outro avanço inequívoco, porém ainda incipiente, diz respeito à valorização dos profissionais da educação, historicamente
aviltados em seus direitos, salários e condições de trabalho, mas, contraditoriamente, quase sempre responsabilizados pelo “insucesso” escolar das crianças e jovens.

Neste sentido, o FUNDEB tem por objetivos universalizar o atendimento escolar nas esferas públicas, melhorar a qualidade do ensino público e valorizar os profissionais da educação pública, não podendo o Fundo sofrer mitigações em benefício do setor privado. Este, por sua vez, é reconhecido na Carta Magna e ocupa função complementar, inclusive sem direito a reserva de mercado em sua atuação. Importante observar que existem limites constitucionais para os convênios de matrículas escolares com as redes públicas, porém muitos parlamentares e o próprio relator parecem fazer vistas grossas para essas condicionantes, que poderão ensejar inconstitucionalidades na lei de regulamentação do novo FUNDEB.

 

Sobre os profissionais da educação
A escola é constituída, sobretudo, por estudantes e por profissionais dispostos no artigo 61 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), especialmente nos incisos I a III do referido artigo que regulamentou o parágrafo único do art. 206 da Constituição Federal (Lei 12.014/09). As famílias e as comunidades que convivem aos arredores da escola também dela participam.

A qualidade da educação é composta por inúmeros fatores, que vão desde o financiamento compatível às demandas escolares, até a profissionalização e valorização dos trabalhadores em educação (professores, pedagogos/especialistas e funcionários da educação: merendeiras, porteiros/as, técnicos/as em multimeios didádicos, em infraestrutura, em gestão das secretarias escolares, enfim, aqueles trabalhadores dispostos na 21ª área profissional de apoio escolar). Tanto a LDB como as normativas do Conselho Nacional de Educação asseguram e promovem a profissionalização dos/as educadores/as escolares. E é preciso respeitá-las!

Também a Lei 13.005, que aprovou o Plano Nacional de Educação, dispôs de quatro metas específicas para valorizar os profissionais da educação, assegurando políticas ondissociáveis de formação, salário, carreira, jornada, acesso às redes públicas por concurso público, piso salarial nacional com base no art. 206, VIII da Constituição Federal, entre outros. De modo que a tentativa do relator do FUNDEB, na Câmara Federal, de surrupiar as conquistas dos profissionais da educação, muitas ainda pendentes de regulamentação ou de efetividade por parte expressiva dos poderes públicos, contradiz os objetivos do próprio Fundo – que se destina à valorização dos profissionais da educação –, tornando contraproducentes os esforços que o país tem feito para alavancar a valorização desses profissionais nos últimos anos.

Como apontado em documentos anteriores da CNTE, as propostas do relator Felipe Rigoni regridem as políticas de valorização dos profissionais da educação nos seguintes aspectos:

1. Amplia o rol de profissionais a serem remunerados com recursos do FUNDEB, excedendo os limites da própria EC 108, que trata exclusivamente dos profissionais da educação. Incluir psicólogos, assistentes sociais e demais profissionais que prestam serviços às escolas, mas que não integram as carreiras dos profissionais da educação, atenta não só contra a legislação pátria, como contraria os objetivos de valorização profissional de professores, especialistas e funcionários. Frise-se que a LDB veda expressamente o pagamento de equipes de psicólogos, assistentes sociais, nutricionistas, médicos, farmacêuticos, entre outros, as quais podem (e devem) desenvolver atividades em conjunto com as
escolas, mas que não compreendem as despesas com manutenção e desenvolvimento do ensino (art. 71, inciso IV da Lei 9.394/96). E tentar incluir esses e outros profissionais (contadores, militares, advogados etc) na subvinculação do FUNDEB, ou mesmo no total da vinculação constitucional da educação, pelo fato de prestarem serviços vinculados às redes escolares, fere dispositivos legais e retrocede avanços recentes na valorização dos profissionais da educação.

2. Não vincula as políticas de valorização dos profissionais da educação aos indicadores para a complementação da União VAAR, sobretudo o cumprimento do piso salarial nacional e a efetivação de planos de carreira para o conjunto da categoria nos diferentes entes da federação, de forma a estimular a consecução das metas e estratégias do Plano Nacional de Educação.

3. Ignora o compromisso de regulamentação do piso salarial nacional previsto no art. 206, VIII da Constituição e não faz referência a título de maior segurança legal à vigência do piso salarial do magistério, até que o piso de abrangência mais ampla seja regulamentado. Em razão do exposto, bem com das inúmeras manifestações legítimas e pertinentes de segmentos da sociedade que se mostram contrários ao parecer do relator Felipe Rigoni, a CNTE tem requerido às lideranças partidárias na Câmara dos Deputados que adiem a votação da regulamentação do FUNDEB, possibilitando maior diálogo com a sociedade e o aperfeiçoamento do texto à luz do que foi aprovado na Emenda 108.

Brasília, 10 de dezembro de 2020
Diretoria da CNTE

 

Reprodução: CNTE