Redes acertam ao bloquear Trump, mas poder de censura ameaça democracia

 

“Mr. Pence não teve a coragem de fazer o que deveria.” “Vamos andar até o Capitólio e lá vai haver um evento. Hoje a história será feita.” “Não vamos desistir enquanto houver fraude.” “Estaremos aqui por vocês.”

 

 

Declarações do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, feitas em vídeo e em postagens, nesta quarta (6), foram removidas das redes sociais por terem violado as políticas das plataformas digitais relacionadas à desinformação, conteúdo relacionado a eleições e incitação à violência. O presidente chegou a ter as contas bloqueadas.

Mas qual o limite da atuação dos gigantes digitais em momentos como este? Cabe às redes sociais cercear a expressão de discursos políticos? Se sim, em que contextos? As respostas dizem respeito não apenas aos Estados Unidos, mas também ao Brasil – que, como ameaçou o próprio presidente Jair Bolsonaro, pode passar por algo parecido em 2022.

O YouTube considerou que um vídeo de Trump violou sua política ao alegar fraude nos resultados daquele país.

O Twitter, além de remover o vídeo pelo mesmo motivo, solicitou a Trump que apagasse os tuítes que, repetidamente, violavam sua regra para integridade eleitoral. A empresa o notificou de um bloqueio de 12 horas após a remoção das postagens e avisou que, se elas permanecessem no ar, a conta seguiria impedida de publicar.

Já o Facebook decidiu, após rotular e reduzir o alcance das primeiras postagens, removê-las e bloquear as contas do presidente na rede social e também no Instagram – plataforma de sua propriedade. Primeiro, por 24 horas. Depois, pelo menos, pelas próximas duas semanas. A justificativa foi a de que os riscos de Trump seguir usando a plataforma neste período são muito grandes, já que houve uma escalada de desinformação e incitação à violência no país.

Mark Zuckerberg disse que o público tem o direito de ter amplo acesso a discursos políticos, mesmo que controversos, mas que o contexto atual é fundamentalmente diferente, ao envolver o uso da plataforma para incitar uma insurreição violenta contra um governo democraticamente eleito.

A marcha ao Capitólio, como é chamado o Congresso dos EUA, foi parcialmente organizada em grupos e páginas do Facebook e em redes como Gab e Paler, que seguem usadas por grupos de extrema-direita. Nelas, a incitação aberta à violência, incluindo uma caçada ao vice-presidente Mike Pence, foi ainda maior.

Como mostrou a pesquisa “Fake news: como as plataformas enfrentam a desinformação”, realizada pelo Intervozes, as redes sociais alteraram significativamente seus termos de uso desde o início da pandemia do coronavírus para rotular, reduzir o alcance e remover conteúdos desinformativos em caso de dano grave e imediato.

Pelo mesmo risco de dano, também passaram, nos últimos anos, a tirar do ar conteúdos que comprometam resultados eleitorais, além de postagens que fomentem a violência contra grupos específicos.

Contextos excepcionais – como o da covid-19 e de uma insurreição violenta insuflada por fake news em andamento – podem justificar medidas como as tomadas nos últimos dias.

Em se tratando de Donald Trump, vale lembrar que os limites de exercício da liberdade de expressão já foram, por inúmeras vezes, extrapolados. O histórico do presidente de propagação do racismo, de violência contra imigrantes e de desinformações na área de saúde, que causaram milhares de mortes naquele país, não é pequeno. Muitos defendem que, há tempos, Trump deveria ter sido banido das redes.

Entretanto, como nossa pesquisa mostrou, uma sociedade democrática não pode ficar refém ou depender exclusivamente da ação de empresas no enfrentamento a conteúdos significativamente danosos.

Primeiro, porque delegar a entes privados o que cabe ou não no exercício democrático da liberdade de expressão é algo arriscado por demais. São inúmeros os casos, em todo o mundo, de decisões erradas ou questionáveis das plataformas alcançando a perigosa linha da censura.

Com base em diretrizes e decisões pouco transparentes, redes sociais derrubam milhares de conteúdos por dia, de modo automatizado e sem a garantia de devido processo – ou seja, sem possibilitar que quem teve postagens moderadas seja devidamente notificado e possa recorrer de forma eficaz.

É fundamental que sistemas regulatórios constituídos democraticamente limitem o tamanho poder conquistado pelas plataformas digitais, assim como garantam o direito de usuários de se expressarem legitimamente nesses espaços.

Em segundo lugar, porque é mais do que urgente que autoridades administrativas e judiciais se engajem no enfrentamento de fenômenos como este, que tendem a se multiplicar.

Não é cabível que, até o momento, a Justiça dos Estados Unidos não tenha se pronunciado, nem cautelarmente, sobre a responsabilidade de Trump de fomentar os atos criminosos desta quarta-feira. Tampouco que decisões do Judiciário norte-americano tenham até hoje se limitado a garantir que o presidente parasse de bloquear jornalistas em suas contas.

Sem a atuação célere e eficaz do poder público, o poder das plataformas e a ideia de que seus termos de uso equivalem a leis só serão reforçados.

Num cenário em que essas mesmas plataformas seguem promovendo discursos extremistas via algoritmos em busca de engajamento (o que se traduz em receita para elas) e que muito pouco se faz em termos de políticas públicas de promoção da pluralidade e diversidade midiática em boa parte dos países, a crise democrática só vai se acentuar se forem as redes sociais que seguirem, no dia a dia, decidindo o que circula ou não no ambiente digital.

Bia Barbosa é mestra em políticas públicas, integra a Coalizão Direitos na Rede e representa a sociedade civil no Comitê Gestor da Internet no Brasil; Helena Martins é doutora em Comunicação Social e professora da Universidade Federal do Ceará ; Jonas Valente é doutor em sociologia da tecnologia e professor de comunicação da Universidade de Brasília. Todos são jornalistas e integrantes do Intervozes.

 

Reprodução: CUT