Em prol das cotas para a população negra nas universidades

É muito evidente que, embora haja momentos de confluência, a questão da população negra no Brasil não é unicamente socioeconômica, uma vez que essa mesma população carrega em seus corpos as marcas de uma história e de um presente de desumanização; corpos que são continuamente desqualificados por sua origem cultural e suas características. Os reflexos disso, não apenas ditos por mim, mas pelas estatísticas, são uma enorme ausência de pessoas negras em postos de poder/relevância/mídia/padrões hegemônicos e de elevada presença destas pessoas nos índices de marginalização.
A mobilidade social no Brasil é dificílima, mas pode-se aumentar a renda, também troca-se de roupa, mas nunca de corpo. Não basta matemática financeira para resolver algo tão complexo e, ainda que ocorra uma revolução de valores que reveja esse fenômeno, são necessárias medidas emergenciais. Tratam-se de vidas tolhidas, a lentidão de processos históricos arbitrários não dá conta da urgência dessas demandas de humanidade.
Mesmo sanada a questão econômica, o que geralmente não ocorre e torna tudo ainda mais difícil, as marcas da discriminação continuam a prejudicar a trajetória de quem passa por isso. Não se está apenas diante de condenação a uma natureza inferior, mas de uma socialização inferiorizante. A questão é sociológica e não biológica, não custa reafirmar. É como se uma/um negro tivesse que correr uma maratona com toneladas nas costas, toneladas impostas, as toneladas do racismo. As cotas são uma espécie de corretor dessa distorção.
O sistema de cotas é um sucesso. Em todo o país, tem formado profissionais excelentes e com o adicional da diversidade de origens culturais. Isso é fato irrefutável! Ganham os/as cotistas, ganham as universidades, ganha-se em conhecimento, toda a sociedade se beneficia.
Ações contrárias são mostras da reação de quem não enxerga o diferente como digno e quer manter a exclusão para assim também manter privilégios. Todos (as) cotistas são aprovadas no vestibular. Não há critérios facilitadores, há apenas concorrência específica: negros concorrem com negros dentro daquele percentual de vagas. As provas e os critérios são os mesmos. E mesmo assim, além do mérito da prova, pessoas negras, assim como outras pessoas de grupos preteridos, possuem o mérito de uma trajetória de superação. Há menos de 150 anos, o Brasil mantinha senzalas e ainda hoje as mantém em seus padrões de exclusão desumanizadora. Não há esforço individual capaz de ignorar a força das condicionantes de origem estrutural.
Se as cotas são importadas dos EUA? Absolutamente não, e ainda que fossem, importa-se tudo, moda e teorias científicas, inclusive vícios e dominação. Por que agora é errado importar medidas positivas? Não há importação e sim esforço transnacional conjunto e adaptado à realidade de cada país. O Brasil é signatário de acordos internacionais que prevêem essas medidas e que aqui representam força de lei. Não há aí inconstitucionalidade, mas sim reparação de uma dívida histórica.
Cotas mudam imagens, possibilidades profissionais, padrões culturais, dinâmica de espaços de poder; criam combinações intelectuais mediante a proximidade de pessoas antes apartadas, podendo inclusive gerar idéias e resoluções; afetam toda uma estrutura e não apenas sujeitos individualizados, levam a sociedade a rever suas regras e a experimentar o poder de nelas intervir; não desqualificam outros grupos ou outras questões, antes abrem espaço para a ampliação da noção de igualdade em todas as formas que esta pode assumir; não excluem outras medidas como a melhoria do ensino no geral, ou distribuição de renda e sim fazem parte desse esforço conjunto para superação das desigualdades de todas as origens.
Nada disso é fácil de ser alcançado, assim como não é fácil dar continuidade ao atual estado das coisas. Para coabitarmos neste mundo não há saídas possíveis fora do esforço de transformação.
Por Natália Maria Alves Machado
Fórum de Mulheres Negras do DF