“Cala a boca, seu velho safado”: ataque à liberdade de cátedra cresce nas escolas do DF
No dia 13 de abril, uma terça-feira, o professor de História do CEF 08 de Taguatinga Antônio Vieira Neto finalizava a aula remota com seus alunos do 8º ano do ensino fundamental. Na despedida, ele recomendou: “pessoal, estamos ainda na pandemia. Todo cuidado é pouco. Lavem sempre as mãos com sabão, usem álcool 70%, evitem aglomerações, evitem sair de casa e, se saírem, usem máscara. E muito cuidado com esse discurso contra a vacina, contra o uso de máscara, como faz, por exemplo, o presidente da República. Vacina não transforma ninguém em jacaré, nem mulher em homem, nem homem em mulher. Isso não é verdade”.
“Seu merda! Cala a sua boca, seu velho safado. Cala a sua boca, cala sua boca!”, interrompeu o pai de um estudante que invadiu a sala virtual do professor Antônio quando, na prática, ele apenas reproduzia as recomendações da Organização Mundial de Saúde (OMS) e descrevia o comportamento não velado de Jair Bolsonaro, criticado internacionalmente por ser antivacina e espalhar desinformação sobre o vírus mais temido do século.
“Além da agressão verbal, ele começou a me ameaçar fisicamente. Ele falou: ‘eu vou te pegar, eu vou te pegar. Olha, você vai saber o que é ditadura. Eu vou te pegar’”, desabafa o professor Antônio Neto. “Comecei a dar aula na ditadura, em 1983, e nem na ditadura do governo Figueiredo tinha essa relação de ódio”, completa o professor que, com o auxílio do Sinpro-DF, entrou com ação na Justiça para cobrar punição ao agressor.
O caso se espalhou rapidamente. Poucas horas depois, o professor Antônio recebeu telefonema de uma professora se solidarizando com o docente e afirmado que também havia sido vítima de violência da mesma pessoa que o agrediu.
Cinco meses depois, em uma cidade que fica pouco mais de 24 quilômetros da CEF 08 de Taguatinga, onde o professor Antônio Neto atua, outra professora se tornou vítima de agressão durante a aula virtual. Com medo do que o agressor, também pai de aluno, pode fazer contra ela, a docente prefere não dizer o nome e nem a escola onde trabalha.
O “motivo” do ataque foi incentivar, com ponto extra, estudantes e seus familiares a se vacinarem contra qualquer doença. “Quer fazer sua defesa de ideias? Faça, mas não aqui onde há regras e ordenamentos a serem seguidos. Faça isso em suas mídias sociais, ruas e praças e nunca usando incentivos e persuasão fora do seu escopo de atuação e influenciando na educação e valores familiares dos outros (…) Isso é uma atitude covarde”, diz trecho da mensagem dirigida à professora que se declara “completamente abalada” após ter sofrido a agressão.
O ataque à liberdade de cátedra vem avançando com rapidez desde 2014, quando os filhos 01 e 02 de Jair Bolsonaro apresentaram os primeiros projetos de lei para criar o Escola Sem Partido, movimento iniciado em 2004. As propostas, sugeridas para as escolas do Rio de Janeiro, foram do então vereador Flávio Bolsonaro, o 01 de Bolsonaro, hoje senador pelo Patriota-RJ, e Carlos Bolsonaro, o 02 do presidente, que está na quinta legislatura como vereador do RJ pelo Republicanos.
Com o Escola Sem partido, temas como educação moral, sexual e religiosa, análises e reflexões sobre o cenário político, abordagem de gênero, sexualidade e outras questões estão proibidas de serem tratadas em sala de aula, ficando restritas à esfera privada. Além disso, estudantes ainda são instigados a filmar e fotografar professores durante as aulas, para realizar possíveis denúncias de seus comportamentos.
O Escola Sem Partido ganhou ainda mais visibilidade em 2015, quando deslanchou a articulação do golpe contra a presidenta Dilma Rousseff. E na corrida eleitoral de 2018, a proposta foi uma das mais citadas pelo então candidato à presidência da República Jair Bolsonaro. A ação foi definitiva para impulsionar o movimento contra a suposta “doutrinação de esquerda dos professores”.
Ao assumir a principal cadeira do Executivo Federal, Bolsonaro continuou fazendo coro ao Escola Sem Partido, dizendo inclusive que o projeto estava em operação.
“Como principal representante do Brasil, ele (Bolsonaro), através dos seus discursos e da sua postura, encoraja pessoas a invadirem salas de aula, virtuais ou físicas, e tentarem limitar a liberdade de cátedra dos professores, utilizando de todo tipo de violência, inclusive a física”, afirma a dirigente do Sinpro-DF Letícia Montandon.
Segundo ela, o Sindicato nunca recebeu tantas denúncias de professores que foram vítimas de violência por fazerem uso do direito à liberdade de cátedra. “Xingamento, soco no rosto, ameaça de morte e tantas outras violências vêm sendo registradas nos últimos dois anos, momento da história que mostrou a ciência de um lado e o presidente da República do lado completamente oposto. Em sala de aula, professores e professoras, que têm o dever de ter a ciência como base para qualquer assunto, são atacados brutalmente sob a justificativa de estarem ‘doutrinando’ os estudantes”, afirma.
Constituição em xeque
A liberdade de cátedra está garantida no artigo 206 da Constituição Federal de 1988. Nele se prevê que o ensino será ministrado nos princípios da “liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber” e no “pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas”.
Na prática, a liberdade de cátedra seria a liberdade de expressão aplicada ao campo acadêmico, como forma de transformar a informação em conhecimento: única possibilidade de fazer ciência.
“Há dois motivos para o ataque ostensivo do governo Bolsonaro à liberdade de cátedra. O primeiro é a recusa à humanização da ciência, que confronta o negacionismo tão propagado e estratégico para governos fascistas. O segundo, não menos importante, é o medo de os grupos historicamente prejudicados e invizibilizados se emanciparem pela educação e representarem um ‘risco’ para esse 1% rico do Brasil”, avalia a dirigente do Sinpro-DF Rosilene Corrêa.
Para ela, o prejuízo do ataque à liberdade de cátedra, mais que professores, ataca o Brasil. “Neste dia dos professores e das professoras, a gente precisa lembrar que sem liberdade de cátedra somos apenas ferramentas de um sistema opressor. Não existe essa coisa de retirar ideologia das salas de aula. A gente precisa ter clareza para entender que esse falso pressuposto quer implantar uma supremacia no ambiente escolar: a de alunos como máquinas, como receptores de conteúdo, formados sem pensamento crítico para servir ao mercado sem questionar. E, dessa forma, teremos sempre um Brasil marcado pela desigualdade, pela injustiça e pela exploração do povo.”
Além de estar vigente na Constituição Federal de 1988, a liberdade de cátedra também está garantida na Lei de Diretrizes e Base da Educação Nacional, quando afirma que a Educação deve proporcionar o pleno desenvolvimento da pessoa humana.
Embora pareça uma conquista moderna, a liberdade de cátedra já estava prevista na Carta Magna de 1934, que garantia a autonomia de métodos e pluralidade de ideias para o ensino e a aprendizagem.
Realidade sufocada
Em um Brasil com mais de 20 milhões de pessoas sem ter o que comer, as mulheres têm mais medo da violência que da fome. O dado foi apresentado na pesquisa sobre violência contra a mulher realizada pelo JUSBarômetro, da Associação Paulista dos Magistrados (Apamagis), divulgada em setembro.
Mesmo assim, a questão de gênero é um dos principais pontos atacados por aqueles que se voltam contra a liberdade de cátedra. Para o Escola Sem Partido, este é um tema que não pode ser discutido em sala de aula.
Em 2017, o governo Michel Temer alterou drasticamente o texto da Base Nacional Comum Curricular ao retirar ao menos dez menções a gênero do guia de aprendizado da educação básica.
“O esforço é para que jamais abordemos esse tema (gênero) em sala de aula; para que projetos que tenham o objetivo de discutir essa questão sejam engessados; para que professores fiquem de mãos atadas. Isso é uma crueldade. Temos meninas que são estupradas e não sabem. E querem que nossas meninas cresçam caladas diante da violência estrutural contra a mulher. Para apoiadores simpáticos ao Escola Sem Partido, atuar para que meninas não sejam estupradas e violentadas é ‘ameaça comunista’. Não podemos admitir isso”, repudia a dirigente do Sinpro-DF Vilmara do Carmo.
Apagar para calar
A onda de ataque à liberdade de cátedra se amplia para todas as formas de expressão nas escolas. Em agosto deste ano, um grupo de pais, mães e responsáveis pelos estudantes do Centro de Ensino Fundamental 120 de Samambaia quiseram apagar pintura da imagem da vereadora Marielle Franco (PSOL) feita no muro da unidade escolar. Eles abriram um processo na ouvidoria do GDF alegando que “a pintura atende os interesses de uma classe política e de militantes de esquerda da região e da própria escola”. “A comunidade de Samambaia zela por um ensino de qualidade e sem viés ideológico (…) Professores têm que fazer suas campanhas políticas socialista comunista no seu meio de convivência e não no local de trabalho”, diz a denúncia. Após diálogo da equipe gestora com a comunidade escolar, a pintura se manteve no muro do CEF 120.
Em fevereiro de 2019, grafite com o rosto do ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela foi apagado do CED 1 da Estrutural, militarizada. Após repercussão negativa na mídia, o desenho foi refeito e trouxe de volta ao muro da escola a frase: “A Educação é a arma mais poderosa que você pode usar para mudar o mundo”, dita pelo ícone da luta pela igualdade racial.
“O movimento é para calar. Mas escola é lugar de diálogo, de criação, de ciência”, rebate a dirigente do Sinpro-DF Berenice D’arc.
As iniciativas para apagar do muro das escolas pinturas que tragam reflexão sobre gênero, sexualidade, religião, raça e qualquer outra questão controversa ao Escola Sem Partido acontece nacionalmente. A prefeitura de São Paulo, por exemplo, recentemente apagou do muro de uma escola municipal na Pompeia um grafite da imagem de uma santa negra, que parecia ser Nossa Senhora Aparecida, mostrando o dedo do meio, acompanhada da frase “Nossa Senhora do Matriarcado”. A pintura foi apagada pela prefeitura sem nem mesmo consultar o conselho escolar.
Denuncie
Professoras(es) que tiverem seu direito à liberdade de cátedra ameaçado não devem ficar calados. A orientação do Sinpro-DF é para que a vítima de qualquer tipo de violência entre em contato com o(a) dirigente do Sindicato que visita sua escola. O objetivo é garantir à vítima apoio psicológico e jurídico. Acesse a lista com os telefones dos dirigentes do Sinpro-DF no link https://bit.ly/2Xjjmbc
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