A extinção judicial do Escola sem Partido

2020 07 10 educacaonamidia artigo

Antes tarde do que nunca. O STF decidiu dar fim a uma das mais danosas farsas jurídicas da atualidade: as legislações antigênero na educação, que proliferam no Brasil desde 2014. Disseminadas por movimentos reacionários e grupos fundamentalistas junto aos Legislativos, essas normas e os debates parlamentares que as antecedem dão suporte institucional à cruzada antigênero e à censura nas escolas, servindo de plataforma ao pânico moral e suas consequências políticas e sociais.1 Há anos contestadas em mais de uma dezena de ações judiciais, desde fins de abril deste ano tais normas vêm sendo julgadas e declaradas inconstitucionais, uma a uma, por unanimidade, no discreto Plenário Virtual do STF.

É, portanto, o fim de um ciclo, ao menos no relevante plano dos embates jurídico-formais sobre a censura nas escolas. Neste ensaio, analisamos o contexto e, sobretudo, os efeitos práticos das decisões para a reconstrução dos ambientes pedagógicos e das dinâmicas da gestão escolar democrática, há anos vandalizados pela ação articulada de grupos reacionários e fundamentalistas.

A construção de uma farsa de graves consequências

O primeiro palco de encenação se deu entre 2013 e 2014, fase final de tramitação do Plano Nacional de Educação – PNE (Lei n. 13.005, de 25 de junho de 2014). Ali, entre outras polêmicas igualmente importantes, embora menos ruidosas, reacionários e fundamentalistas lograram emplacar uma falácia jurídica: a redação final do PNE teria excluído a abordagem de gênero e diversidade sexual, uma vez que a diretriz sobre a “erradicação de todas as formas de discriminação”2 não contemplara, por veto político desses grupos e omissão da maioria parlamentar, emendas que buscavam afirmar expressamente aquelas dimensões de desigualdades a serem combatidas. Formalmente, a questão não passa de uma polêmica terminológica, juridicamente estéril, como veio a reconhecer o STF nas últimas semanas. Ainda assim, foi suficientemente marcante para alastrar o tema nos debates legislativos dos planos municipais e estaduais de educação que se seguiram ao PNE.

Não à toa, foi nesse mesmo ano de 2014 que se iniciou a tramitação do primeiro projeto de lei nacional identificado ao Escola sem Partido (EsP), o PL n. 7.180/2014, que foi seguido do PL n. 867/2015, este um protótipo dos projetos apresentados no estado e no município do Rio de Janeiro pelos irmãos Flávio e Carlos Bolsonaro, respectivamente. Em seguida, surgiu um punhado de novos PLs com foco específico na temática antigênero.

As matérias, caras à família presidencial, ganharam destaque nacional com a criação de uma Comissão Especial do Escola sem Partido na Câmara dos Deputados, onde tudo foi reunido, hegemonizada desde lá pela nata do que viria a ser o bolsonarismo parlamentar, com a participação ativa de Jair e Flávio Bolsonaro, já então deputado federal como o pai. O projeto e seus defensores parlamentares mais destacados viajaram o país nos anos que se seguiram, disseminando a ideia e, mui oportunamente, corporificando o caldo de cultura em franca expansão. Desse périplo resultaram pelo menos 201 projetos de lei e 46 leis aprovadas que tratam dos temas,3 seguidos de dezenas de questionamentos judiciais.

Os alertas de movimentos feministas, LGBTQIs e educadores quanto aos impactos mais amplos dessas leis e o cenário em gestação nos debates foram inicialmente minimizados: “Isso é cortina de fumaça”, ouvia-se. A cegueira quanto à centralidade dessa agenda no projeto antidemocrático que se anunciava, em alguma medida, perdurou até que seus efeitos foram duramente sentidos no debate eleitoral. Simbolicamente, na edição do Jornal Nacional de 28 de agosto de 2018, o então candidato Jair Bolsonaro apresentou ao país a falsa prova de livros didáticos que teriam sido distribuídos pelo Ministério da Educação (MEC), com conteúdo sexual impróprio para menores, enquanto uma rede de robôs e aguerridos militantes complementavam a desinformação, disseminando maciçamente fotos de apetrechos eróticos que igualmente estariam em uso nas escolas. O estrago eleitoral estava feito. O programa máximo desses movimentos é estabelecer a censura real nas escolas, de preferência a autocensura, aquela que alcança mais gente e dá menos trabalho. Para isso, apostaram nas investidas legislativas para criar deveres genéricos e constrangedores ao exercício do magistério, cuja indeterminação jurídica tornaria sempre presente o fantasma da ameaça de processos administrativos e ações judiciais. Essa sombra estaria em cada sala de aula brasileira, emanada de um cartaz obrigatório, com os “Deveres do Professor”.

O mecanismo de censura na educação, contudo, não se fechou. Não foi aprovada uma lei federal sobre o tema – em consequência, nenhum cartaz oficial foi afixado – e, na visão da militância “raiz” desses movimentos, há inépcia do MEC na condução da agenda, como fica evidente nas críticas públicas desse segmento ao que interpretam como traição e abandono oficiais. Mais que bravatas sobre a “feiura” de Paulo Freire e as “balbúrdias” acadêmicas, queriam ações concretas de censura e perseguição; queriam, enfim, uma nova legislação federal. É nesse contexto de embates no interior do campo reacionário, de reaquecimento da pauta no Congresso Nacional com a criação de uma nova Comissão Especial,4 que ganham importância as recentes decisões do STF, ao desautorizar suas teses jurídicas mais elementares.

O conteúdo das decisões do STF

Há no STF atualmente quinze ações sobre o tema, a maior parte contra legislações municipais antigênero. Dessas, quatro foram julgadas sucessivamente, entre 27 de abril e 26 de junho deste ano, data do último julgamento. Foram eliminadas as leis dos municípios de Novo Gama (GO), Foz do Iguaçu (PR), Ipatinga (MG) e Cascavel (PR).5 Por unanimidade, cada novo caso reitera os anteriores, formando o que no campo do Direito se entende como uma posição consolidada do Tribunal, um conjunto de precedentes vinculantes que extrapolam os casos específicos, um conjunto estável de teses de interpretação constitucional de grande repercussão.

Podemos resumi-las a cinco teses:

1. A censura às temáticas de gênero, sexualidade e orientação sexual nas escolas viola a liberdade constitucional de ensinar, aprender, divulgar a arte e o saber e interdita o pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas.

2. Professores têm liberdade de expressão no exercício profissional, e a censura prévia às suas atividades é incompatível com as liberdades fundamentais de opinião e pensamento.

3. Crianças e adolescentes têm direito fundamental ao conhecimento e à proteção que os estudos escolares sobre gênero e sexualidade proporcionam.

4. O Estado tem o dever de zelar pelas liberdades, direitos e garantias anteriores e de atuar por meio de políticas públicas e sistemas de ensino, de escolas públicas e privadas, para o enfrentamento de todas as formas de discriminação com fundamento em gênero e orientação sexual;

5. Quanto aos pais, entre os direitos sobre a educação de seus filhos não se incluem poderes para questionar ou vetar conteúdos específicos do ensino que compõem os objetivos republicanos e democráticos do direito à educação.

Tais teses reconhecem ideias presentes no Manual de defesa contra a censura nas escolas (www.manualdedefesadasescolas.org.br), levadas ao STF por organizações e movimentos do campo educacional que lá intervêm como Amici Curiae.6

O fim de uma retórica de censura: tirar o PNE da defensiva

O fato é que onde os ideólogos do EsP e os movimentos antigênero viram censura o STF viu o contrário. O PNE inclui entre suas diretrizes a “superação das desigualdades educacionais, com ênfase na promoção da cidadania e na erradicação de todas as formas de discriminação”. Entre estas, entendeu o Tribunal, compreendem-se as discriminações com fundamento em gênero e orientação sexual, reiterando para a educação escolar o entendimento já firmado desde a decisão de 2011 sobre direito à união civil de pessoas do mesmo sexo.

No campo educacional, entretanto, tal interpretação tem efeitos que devem ir além do mero reconhecimento e proteção, mas impõe a adoção de políticas públicas de diversas naturezas, na formação de professores, disseminação de materiais didáticos e projetos curriculares adaptados a cada fase do desenvolvimento do educando: “o dever estatal de promoção de políticas públicas de igualdade e não discriminação impõe a adoção de um amplo conjunto de medidas, inclusive educativas, orientativas e preventivas, como a discussão e conscientização sobre as diferentes concepções de gênero e sexualidade”.7

O alcance das decisões do STF

Ainda que as quatro ações julgadas digam respeito, cada uma, a um município em específico, os fundamentos das decisões de controle de constitucionalidade no STF impõem efeitos nacionais que, na prática, inviabilizam a proliferação jurídica da censura nas escolas.

Pela Constituição de 1988, uma decisão de controle de constitucionalidade do STF estabelece obrigações vinculantes às demais esferas do Judiciário e aos demais poderes, alcançando a todos, o que inclui, por óbvio, os órgãos da administração educacional de todos os municípios, Estados e da própria União, além de escolas públicas e privadas. Isso porque tais decisões não apenas retiram da esfera jurídica as leis em debate, mas também colocam nessa mesma esfera as teses constitucionais em que se fundamentaram.

Nas demais instâncias do Judiciário e no próprio STF, as teses contra a censura e a favor da educação em gênero e sexualidade devem ser reproduzidas em julgamentos futuros. Decisões de instâncias inferiores que contrariem os fundamentos desses casos podem ser objeto de reclamação diretamente ao STF, por descumprimento de seus julgados, que as julgará cassadas. E mais, havendo processo judicial em seu desfavor, abre-se uma via rápida para que qualquer professor, formalmente perseguido ou ameaçado, possa reclamar seus direitos diretamente no STF.

Na prática, os Tribunais de Justiça estaduais que hoje analisam dezenas de ações sobre a inconstitucionalidade de normas similares devem resolver rapidamente a questão, uma vez que ficou inviável dar interpretação dissonante ao tema. Mesmo que novas leis de censura venham a ser aprovadas, confrontando as decisões do STF, não poderão ser aplicadas na prática e, uma vez questionadas no Judiciário, serão eliminadas.

Juízes de primeira instância também estão vinculados aos fundamentos dessas decisões, com destaque para dois prováveis efeitos práticos em favor dos professores. Primeiro, devem ser extintas, também de imediato, as ações judiciais de responsabilização contra docentes, movidas sob o incentivo da militância pró-censura com o objetivo de constranger a ação pedagógica e o debate de temas sensíveis a determinadas visões políticas ou religiosas. O mesmo vale na esfera da administração pública, em que as decisões do STF afastam definitivamente a possibilidade de uso de procedimentos disciplinares como estratégias de perseguição. Aliado à ação legislativa, esse é o outro foco de atuação cotidiana dos movimentos reacionários, para a disseminação do pânico moral e do medo na base dos sistemas educacionais, mantendo viva a ameaça constante de denúncias infundadas, de notificações “extrajudiciais” e, claro, disso tudo articulado à exposição nas redes sociais.

Portanto, procedimentos de apuração ou disciplinares em curso com fundamento em censura pedagógica devem ser sumariamente arquivados. Autoridades e superiores que persistam em sentido contrário podem, estes sim, ser responsabilizados por improbidade. Em suma, não cabe mais discutir penas judiciais ou administrativas aos educadores nesses conflitos, que devem se limitar, portanto, ao ambiente político-pedagógico das escolas.

Complementarmente, ficam fortalecidos os educadores em sua defesa contra agressões injustas e infundadas, quando os casos de censura venham a configurar algo mais grave, como constrangimento ilegal e outros crimes eventualmente praticados contra si no exercício regular de suas atividades de ensino. Nesses casos, as decisões do STF reforçam a ideia de que as escolhas pedagógicas são parte do exercício regular da condição docente, sendo inclusive parte de sua liberdade fundamental de expressão na profissão. Eventuais equívocos técnicos e pedagógicos têm preservados seus espaços de revisão e supervisão, já regulamentados em todos os sistemas de ensino. Reforçam também que as diversidades de abordagens e de métodos são valores educacionais, não problemas a serem combatidos.

Professores e estudantes devem ter assim assegurado e protegido o ambiente escolar contra os impulsos litigiosos de movimentos fundamentalistas e pró-censura. Estudantes, pais e responsáveis têm direito a participar dos canais de gestão democrática das escolas e da política educacional, mas tal participação, assim como nos legislativos, não pode afrontar direitos e garantias constitucionais. Conforme propõe o Manual de defesa, quando surjam os conflitos, deve-se privilegiar, sempre que possível, seu tratamento no próprio ambiente escolar, mediante estratégias político-pedagógicas; mas ações violentas e inaceitáveis de censura por grupos organizados merecem respostas exemplares.

O decidido no STF, portanto, também produz efeitos para os governos. Além do efeito no exercício do poder disciplinar, já comentado, abre-se a possibilidade de reconstruir o espaço de políticas públicas contra-hegemônicas de educação para as relações de gênero e sexualidade.

Governos devem enfrentar esse desafio nas três esferas federativas. Isso porque as decisões afastaram definitivamente a ideia de que, em matéria de combate à discriminação de gênero e orientação sexual, seria suficiente ao Estado, quando muito, uma obrigação passiva e punitiva, ou seja, evitar e apurar discriminações. Não é um tema que se esgota na delegacia de polícia.

É obrigatório adotar políticas públicas ativas, educacionais e em outras áreas para erradicar todas as formas de discriminação, o que deve alcançar o conteúdo de bases curriculares, projeto pedagógico, planos de ensino, material didático, atividades de extensão, formação de professores e financiamento adequado e permanente dessas ações. Um renovado plano nacional de combate à homofobia nas escolas, entre outras ações.

Determina-se, assim, o tratamento profissional das temáticas de sexualidade, gênero e orientação sexual nas escolas, como dimensão do direito à educação e dos direitos de crianças e adolescentes. Tais temáticas são um dever do Estado na educação. A omissão nesse ponto é que passa a ser questionável, inclusive judicialmente, o oposto do que pretendiam os censores.

O fato de tais obrigações serem ignoradas no governo Bolsonaro não as deslegitima, pelo contrário, reafirma sua urgência.

Salomão Ximenes é doutor em Direito (USP), professor da UFABC e membro do grupo de pesquisa Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola (DiEPEE/CNPq) e da Rede Escola Pública e Universidade (Repu). E-mail: salomao.ximenes@ufabc.edu.br. Fernanda Vick é advogada, mestra em Direito (USP) e membro da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. E-mail: fernanda.vicksena@gmail.com.

1 Ver Rogério Junqueira, “A invenção da ideologia de gênero”, Revista Psicologia Política, v.18, n.43, São Paulo, set.-dez. 2018

2 PNE, art. 2º, inciso III. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l13005.htm.

3 Professores contra o Escola sem Partido, Levantamento Parcial de Projetos de Lei e Leis de Censura Escolar. Disponível em: https://profscontraoesp.org/vigiando-os-projetos-de-lei/.

4 Carol Siqueira, “Câmara recria comissão especial para analisar Escola sem Partido”, Agência Câmara, 4 dez. 2019.

5 São resultado do julgamento das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) n.457, 467, 526 e 460, respectivamente.

6 Ação Educativa, “Em nova decisão, STF afirma que é dever do Estado abordar gênero e sexualidade na escola”, 2 jun. 2020.

7 Trecho do Acórdão da ADPF 457, relatoria do ministro Alexandre de Moraes.

por Salomão Ximenes e Fernanda Vick

(Portal Diplomatique, 01/07/2020)