Reformas eliminam políticas que diminuem desigualdades entre homens e mulheres

“Penso que Simone de Beauvoir tinha razão quando dizia que em momentos de crise que penalizam o conjunto da população, sempre as mulheres são mais penalizadas. Até porque vivemos numa sociedade que ainda não fez o luto do colonialismo, quando os donos das terras se sentiam também donos das mulheres, das crianças, dos trabalhadores”.
É com esse pensamento que a deputada federal Erika Kokay (PT-DF) resume as consequências de todas as reformas do governo Michel Temer aprovadas, aprovadas de forma açodada pelos parlamentares, no Congresso Nacional. Uma análise aprofundada da reforma da Previdência – encaminhada pelo governo federal, em dezembro de 2016 – e das reformas já aprovadas pelo Congresso Nacional indicam que as desigualdades entre homens e mulheres irão se aprofundar no Brasil.
No caso da Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 287-A (reforma da Previdência), que está pronta para ir a Plenário, a equiparação dos critérios de idade e tempo de contribuição fará com que as trabalhadoras rurais e urbanas, como as professoras e as camponesas, percam os dois requisitos que atualmente são os diferenciais para efeito de aposentadoria: a idade e o tempo de contribuição.
As reformas não consideram que a dupla e até tripla jornada de trabalho das mulheres é, em média, 50 horas semanais e, a dos homens, 41 horas. Também não considera que as mulheres têm uma jornada não remunerada e sem qualquer tipo de direitos. As tarefas domésticas, que dizem que é coisa de mulher, como se as pessoas que morassem na casa não tivessem as mesmas responsabilidades, é o que aumenta a jornada das mulheres e faz com que elas trabalhem muito mais do que os homens.
Assim, se as mulheres e os homens se aposentarem com 65 anos, as mulheres irão trabalhar em média 9,6 anos a mais do que eles. O Brasil, como no resto do mundo, existe essa realidade em que as mulheres trabalham mais do que os homens e ganham menos. E são as primeiras a serem demitidas.
REFORMA DA PREVIDÊNCIA – “O percentual das demissões no Brasil mostra que esse problema atinge mais as mulheres do que os homens. A desigualdade no mercado do trabalho só é visível e só se busca superá-la com uma única política pública que é a política pública da previdência e se o governo federal desconstrói isso ou fere essa política pública, ele está aprofundando a desigualdade de direitos entre homens e mulheres no mundo do trabalho”, afirma a deputada federal Erika Kokay (PT-DF).
A maioria das mulheres se aposenta por idade e não por tempo de serviço. Isso acontece porque a dedicação das mulheres ininterrupta ao mercado do trabalho é menor do que a dos homens. Uma pesquisa da Codeplan do Distrito Federal apontou que, quando nascem os filhos, as mulheres saem do mercado de trabalho e, os homens, adquirem outros vínculos trabalhistas.
Daí, afirmar que a equiparação proposta pela PEC 287-A é justa – afinal trataria de forma paritária todos os trabalhadores – desconsidera todas as desigualdades do mercado de trabalho. E, ao não enfrentá-las, aprofunda-as no momento da aposentadoria. O diferencial entre homens e mulheres na previdência social é o único mecanismo a reconhecer a divisão sexual do trabalho, que destina às mulheres piores salários, piores condições de trabalho e maiores responsabilidades do trabalho não remunerado.
Comprovadamente, são as mulheres que trabalham mais do que os homens e grande parte delas se aposenta por idade e não por tempo de serviço, mas as que se aposenta por idade, dificilmente, completou 25 anos de serviço. Porque não estamos falando, na reforma da Previdência, somente do limite de idade. Estamos falando também do tempo de 25 anos de trabalho. Para sair com 70% da remuneração percebida na época da aposentadoria, ou seja, com a média dos seus salários, a pessoa terá de trabalhar 40 anos.
“Não faz sentido desvincular a realidade do mercado de trabalho da previdência social. Se aprovar essa PEC, o Brasil vai acabar com o único mecanismo compensatório para as mulheres, sem ter solucionado as desigualdades no mundo do trabalho”, afirma Natália Mori, assessora técnica do Centro Feminista de Estudos e Assessoria (CFEMEA).
Para os servidores públicos, isso significa que ele irá trabalhar por muito tempo a mais do que 40 anos para poder sair com aposentadoria que corresponda ao que ele ganhava na ativa.No caso das educadoras, “se elas têm aposentadoria especial é porque se reconhece o caráter penoso do próprio trabalho. Se reconhece duas coisas: a importância social e libertária da educação e, ao mesmo tempo, o caráter penoso da própria atividade. Nesse quadro, a reforma da Previdência é extremamente cruel”, analisa a deputada Erika Kokay.
Relatório apresentado este ano pelo Fórum Econômico Mundial classifica a participação política e econômica das mulheres na 79ª posição do índice global, entre os 144 países avaliados. O índice de participação econômica e oportunidades é de 64%. Estima-se que, no ritmo de 2015, países como o Brasil demorem 170 anos para alcançar a igualdade econômica entre mulheres e homens.
Essa menor participação econômica e consequente menor capacidade contributiva para a previdência social se relaciona diretamente com os diferentes papeis sociais que homens e mulheres desempenham no trabalho. Mulheres ocupam postos mais precários. A Relação Anual de Informações Sociais (RAIS) 2014 prova que a permanência das mulheres no mercado de trabalho formal é menor: ficam, em média, 37 meses no mesmo trabalho, período inferior ao dos homens, que é de 41,7 meses. E elas também sofrem mais com a segunda jornada.
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD) 2014, revelou que 90,6% das mulheres brasileiras realizam afazeres domésticos. Entre os homens, esse percentual é 51,35%. Entre elas, a média é de 21,35 horas semanais dedicadas ao trabalho de cuidados sem remuneração. Para eles, é menos da metade disso (10 horas).
A dupla jornada limita as possibilidades de ascensão profissional das mulheres e, com isso, a elevação da sua remuneração. “Como têm menor poder de contribuição e dependem da sua idade ou da morte do cônjuge para obter o benefício, as mulheres recebem um benefício médio menor”, explica a assessora do Dieese Lilian Arruda. Apesar de receberem 56,9% do total de benefícios previdenciários emitidos, conforme dados de 2015, as mulheres ficam com 52% dos valores. Isto é, apesar de ficarem menos tempo aposentados, os homens recebem mais.
CONGELAMENTO DOS GASTOS PÚBLICOS E REFORMA TRABALHISTA – A senadora Vanessa Grazziotin (PCdoB-AM) e a deputada federal Erika Kokay consideram a reforma mais cruel o congelamento dos gastos nos serviços público. “É o pai e a origem de todas as crueldades do governo Temer porque, com o congelamento dos gastos públicos, ele optou por um modelo de país que não investe em políticas públicas para diminuição das desigualdades, até porque isso não é gastar o que se arrecada porque o Estado irá gastar com despesas primárias apenas a variação da inflação. Assim, está tudo congelado do ponto de vista de gasto real com as despesas primárias e não o que se arrecada.
“Se você arrecadar 300 e a variação da inflação for 100, o Estado, segundo a Emenda Constitucional 95 (EC95/2016), de 2016, só gastará 100 com políticas públicas. Os outros 200 serão destinados às despesas financeiras. Ali se fez uma opção de modelo de país subservientes, sabujo dos rentistas, pessoas que ganham muito dinheiro com os serviços de uma dívida pública que o governo se nega a fazer uma auditoria sobre ela”, explica a deputada Erika Kokay.
Grazziotim diz que a Emenda Constitucional nº 95 (EC95), do congelamento dos gastos, faz com que a metade do Orçamento brasileiro vá para pagar os serviços dos juros da dívida. “Ainda que ele tenha feito esse brutal ajuste fiscal, como ele não mexe com a principal despesa que o país tem, que são as despesas com as operações financeiras, o rombo continua. Estamos com um rombo nas contas públicas que continua e irá se aprofundar porque a maior despesa que o país tem é com os serviços da dívida que não gera nenhum emprego e não tem nenhuma relação com a produção porque agiota não produz nada e não gera emprego”.
Kokay, por sua vez, afirma que o corte de gastos com as despesas primárias e a liberação do Orçamento para pagamento da dívida significa que o Estado brasileiro está alimentando 27 mil investidores e dedicando a esses investidores, pessoas físicas e jurídicas, quase metade do Orçamento do país. “Isso significa congelar os gastos com saúde, educação, segurança, previdência entre muitos outros direitos que fazem parte das despesas primárias. Importante lembrar que 88% das despesas primárias são obrigatórias, das quais o governo não pode prescindir”, esclarece.
O trabalhador está sustentando os recursos que não voltam para ele em política pública e vai para favorecer rentistas e pagar juros e serviços da dívida pública. O contingenciamento retira recursos de 60% das políticas públicas de combate à violência contra a mulher e corte de recursos nas políticas de geração de autonomia para as mulheres, uma vez que a gente só se reconhece enquanto humanidade quando nos sentimos donos de nós mesmos, do nosso corpo e da nossa vida.
A reforma trabalhista é ainda mais cruel porque as mulheres ganham menos, são as maiores vítimas de acidente de trabalho, do assédio moral, do assédio sexual, de psicopatologias – doenças relacionadas ao trabalho porque exercem muitas atividades que têm movimentos repetitivos. E não só isso. Tem o sofrimento provocado pela culpa e pelo medo, que são os instrumentos de dor das mulheres.
“O Brasil é um país em que 85% das mulheres têm medo de sofrer violência sexual. E se somos mulheres, mães de outras mulheres, esse medo é recrudescido e redobrado, num país que tem a cultura do estupro e que estupra por volta de quinhentas mil mulheres por ano”, afirma a deputada federal Erika Kokay. A contenção de despesas públicas e ao mesmo tempo com a gênese fundamentalista no golpe, que foi a espinha dorsal do golpe, temos um cenário extremamente dilacerador dos direitos das mulheres.
NEGRAS E RURAIS MAIS VULNERÁVEIS – Uma  pesquisa “Mulheres e trabalho: breve análise do período 2004-2014”, elaborada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) mostra disparidades entre os diferentes grupos de mulheres: 39,1% das mulheres negras ainda ocupavam postos precários.
Como trabalhadores precários, estão os com renda de até dois salários mínimos e com as seguintes posições na ocupação: sem carteira assinada, ou construção para próprio uso, conta-própria (urbano), empregador com até 5 empregados (urbano), produção para próprio consumo (urbano) e não-remunerados (urbano).
“Mesmo ante uma conjuntura de crescimento econômico e de ampliação da ‘formalização’ das relações de trabalho, não houve reversão do quadro de divisão sexual e racial do trabalho”, afirma o documento. Uma parte significativa das mulheres negras que ingressaram no mercado do trabalho teve nos contratos atípicos, na terceirização ou no autoempresariamento precário a sua via de acesso.
“Se as mulheres negras estão nas piores ocupações, expostas a menos tempo de descanso, já que não têm assegurados direitos como descansos semanais e férias, por exemplo, em que condições de saúde conseguem chegar aos 65 anos?”, questiona Vilmara Carmo, coordenadora da Secretaria para Assuntos e Políticas para as Mulheres.
Ela explica que, no caso das mulheres rurais, as perdas vêm de dois lados. A equiparação entre rurais e urbanos desconsidera o volume e as condições de trabalho diário a que estão submetidos e a idade em que começam a auxiliar na produção familiar. A equiparação entre homens e mulheres desconsidera o maior volume de trabalho doméstico sem remuneração em relação aos homens.
Entre as mulheres que se dedicam à atividade agrícola, 97,6% realizam afazeres domésticos, enquanto os homens, apenas 48,22% realizam. Elas dedicam, em média, 28,01 horas semanais a esse trabalho. É quase um terço a mais do que a média das mulheres e quase três vezes mais que os homens na mesma atividade econômica. Esse cenário, na avaliação do pesquisador da área de gênero e raça do Ipea, Antonio Teixeira, revela que o esforço da reforma é o de aproximar o tempo de aposentadoria com o tempo de morte.
“Com os processos de adoecimento físicos e psíquicos advindos das relações precárias, o plano parece ser o de obrigar algumas pessoas, cidadãs e cidadãos mais vulneráveis, a dedicar todo o tempo de vida a serem exploradas pelo trabalho”, afirma. O que restará após a aposentadoria?
Apesar de responderem por 17,2% dos benefícios previdenciários, em 2015, as trabalhadoras rurais ficam com apenas 12,1% do total de valores. Isso mostra que o impacto das mudanças de sua aposentadoria nem sequer se refletiriam em grande ganhos na reforma. Quem explica o cálculo é Lilian Arruda, assessora do Departamento Intersindical de Estatísticas e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Ela diz que, no curto prazo, não é indicado realizar uma reforma da Previdência para resolver um problema conjuntural, de crise econômica e fiscal e que é importante avaliar os impactos das mudanças demográficas e as possíveis necessidades de ajustes para o longo prazo, portanto, para gerações futuras. “Não só na previdência, mas também em todos os setores”, ressalta a especialista.