Yasmin Anita, a menina que imagina
Uma das criações mais recentes de Yasmin nasceu de um sonho. Nele, um garoto que tinha uma espécie de superpoder fazia com que mãos de petróleo saíssem das paredes e realizassem o que ele mandasse ao ficar estressado. Um suspense que, segundo a estudante da Escola Classe 405 Norte, traz medo e mistério.
Yasmin nunca se cansa de imaginar. Sempre foi assim.
Ela é uma menina negra de 10 anos que foi diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista (TEA) aos 5. Tem um sorriso largo, olhos atentos, uma voz doce. Prefere esmalte colorido e enfeita o cabelo preto com laços e tiaras. Também é inteligente e articulada. E não é preciso conhecê-la intimamente para perceber que seu coração é generoso.
A mãe de Yasmin, Lucy Mary de Araújo, lembra que a primeira história contada pela filha foi a do Mosquito Frederico, aos 3 anos. Lucy, que hoje tem 59 anos, adotou Yasmin assim que ela nasceu. Foi a segunda adoção feita pela servidora pública aposentada. O primeiro filho é Samuel, que completou 27 anos.
Mineira de Araxá, Lucy discorre sobre os primeiros anos de Yasmin de forma fluida. Ela conta que, ainda pequenina, a menina começou a apresentar comportamento irritável. “Yasmin começou a ter uma atitude meio agressiva, de morder muito os amiguinhos. Ela tinha dificuldade do não. Mas uma vez que estava em uma escola particular, com psicólogo, eu esperava que eles atuassem, fizessem alguma coisa”, diz.
Só quando Yasmin estava com 4 para 5 anos começaram a chamar mais a atenção de Lucy, chamando-a repetidas vezes à escola. Foi quando ela recebeu o diagnóstico da filha. “Eu considerava o comportamento dela ‘coisa de criança’. Não sabia nada sobre autismo. Comecei a estudar sobre o tema, a ler muito. Busquei uma psicóloga particular para ver se ajudava. Mas a questão da agressividade aumentava”, conta a mãe.
Lucy, que mostra ser uma pessoa de personalidade forte e determinação inabalável, encontrou apoio no Centro de Atenção Psicossocial Infanto-Juvenil (CAPSi), um dos poucos equipamentos públicos destinados ao cuidado de crianças e adolescentes com Transtorno do Espectro Autista e problemas mentais graves. Mas a grande mudança na vida de Yasmin e de Lucy veio em 2018, quando a menina foi matriculada na Escola Classe 405 Norte.
“Quando a Yasmin tinha crises, não se barganhava com ela. Podia oferecer chocolate, boneca, o que fosse. Ela chorava e ficava exausta de tanto chorar. Juntavam pessoas, achavam que estava batendo na menina. Cheguei a receber a polícia na minha casa. Na escola particular, me chamavam o tempo todo, não conseguiam lidar com as crises. Aí, conheci a escola (EC 405 Norte). Aqui ela foi bem recebida, bem tratada. As crianças acolheram muito bem a Yasmin. Depois que ela veio pra cá, ela teve só duas crises”, diz a mãe da menina que imagina e cria o tempo todo.
Aluna exemplar
Yasmin acaba de concluir o 5º ano do Ensino Fundamental. Edileusa de Sousa, professora da menina, conta que conheceu Yasmin ainda em 2018. Ela era coordenadora da Escola Classe 405 Norte e atendia a estudante quando ela não queria ficar em sala de aula.
“Yasmin é uma menina que gosta demais de ler e de ajudar as pessoas. Tem facilidade de aprender. Às vezes, a dificuldade é prestar atenção. Mas na primeira explicação ela entende. Quando ela não entende de primeira, ela se agita, mas logo a gente explica, pede para ter calma. E ela já percebe quando está se agitando e consegue ter autocontrole”, conta a professora.
Edileusa lembra que quando Yasmin chegou à escola, era uma criança agitada, com dificuldade de entrosamento. “A gente foi trabalhando com as crianças e elas foram entendendo. No dia do aniversário da Yasmin, falamos para ela dar o primeiro pedaço de bolo para a pessoa que ela queria. Ela deu justamente para uma criança que, no início, não a entendia de jeito nenhum”, exemplifica.
Entre as habilidades de Yasmin destacadas pela professora está a facilidade para contar histórias. “Toda sexta-feira a gente tem o momento da leitura. Aí lemos um livro e alguém explica. A Yasmin faz isso como ninguém”, diz a professora, com ar de encanto.
Na sala de Yasmin, há outras cinco crianças com diagnósticos de TDAH (transtorno do déficit de atenção com hiperatividade), TPAC (Transtorno do Processamento Auditivo Central) e dislexia. Junto com a professora, outros dois monitores acompanham as crianças. “Mesmo assim é um desafio”, afirma professora Edileusa.
Há 15 anos na rede pública de ensino do DF, professora Edileusa conta que gostaria muito de fazer curso específico para atuação junto a crianças com autismo, mas ainda não conseguiu. “Para autismo, os cursos são muito concorridos. Tentei duas vezes, não consegui. Estudo por fora. Esse ano vou ver se consigo”, insiste.
Para ela, a Educação Inclusiva é fundamental para todos os estudantes. “As crianças sem deficiência acolhem, aprendem a estar com os diferentes, a entender as dificuldades, a ajudar. A criança que é inclusa aprende a ter mais autonomia, ter autoestima, a se socializar. Mas precisamos ter um cuidado para não excluir. A criança que é inclusa e tem maior potencial, por exemplo, precisa ter também outros tipos diferenciados de apoio para não se sentir alheia. Para isso, precisamos de mais gente, mais recurso”, avalia a professora.
2030: O despertar de Urihi
Foi a possibilidade de ter acesso à Educação Inclusiva com profissionais de qualidade que fez com que que Yasmin Anita percebesse que sua imaginação é algo extraordinário.
No dia 12 de dezembro, ela lançou seu primeiro livro: 2030: O despertar de Uhiri. A obra foi feita em parceria com Andréia Nayrim, monitora de Yasmin, educadora inclusiva, cantora, compositora e escritora.
Ganhadora de dois prêmios Aldir Blanc, Andréia conta que chegou ainda neste ano na Escola Classe 405 Norte, quando começou a estabelecer vínculo com Yasmin. Ela reparou o potencial imaginativo da menina e sugeriu reunir essas histórias em um livro.
“A Yasmin é extraordinária. Começamos o projeto e, em pouco mais de um mês, no final de novembro, concluímos o livro. Nossos encontros eram de 15 minutos, após o intervalo”, conta Andréia, por quem Yasmin mostra carinho imenso.
“Quando a tia Andréia chegou, eu percebi que ela me apoiava muito. Aí comecei a desenvolver uma relação com ela. Quando eu comecei a imaginar e criar histórias, eu pensava que ninguém ia querer. Pensei em desistir de escrever. Quando eu entrei nessa escola que comecei a escrever mesmo”, revela Yasmin.
2030: O despertar de Urihi é uma aventura que traz como cenários o Ártico e a Amazônia. O desenrolar da trama é feito por duas meninas diferentes, mas que trazem em comum a luta por aquilo que amam, assim como Andréia e Yasmin. (Venda do livro AQUI)
“Durante o processo de escrita do livro, trabalhamos muitas disciplinas. Geografia, porque o livro se passa em três países diferentes; História, com abordagem dos povos indígenas; Biologia, com a abordagem da fauna e flora; Português, na escrita, pontuação. Na criação, foi trabalhado ainda o fortalecimento da autoestima, da autonomia, da identidade da Yasmin. Mas eu também aprendi muito com ela. Foi um processo dialógico”, conta a monitora que está há dez anos na Secretaria de Educação do DF.
O lançamento da obra foi marcante para Yasmin. Foram quase 100 participantes, com presença de pessoas públicas como o deputado distrital Leandro Grass. “Senti muito nervosismo”, confessa Yasmin que, como sempre, teve o apoio incondicional da parceira Andréia Nayrim. “Ela passou a maior parte do tempo de mãos dadas comigo. Eu dizia para ela: eu sei que é um momento difícil para você. Eu estou aqui com você. Você é artista”, conta Andréia.
A dedicação da monitora repercutiu não só no coração de Yasmin, mas também no da mãe da menina. “Sou muito grata a Andréia e a todos da escola por acreditaram na Yasmin. Às vezes as pessoas não acreditam, acham que essas crianças são problemas. Elas não são problemas. Muitas vezes, são solução”, diz Lucy Mary, orgulhosa da filha.
Andréia conta que 2030: O despertar de Urihi é o primeiro livro de uma trilogia. “Ano que vem continuarei os encontros com a Yasmin. Esse primeiro livro já foi um sucesso. Quase todos os exemplares já foram vendidos, e tem gente que já me liga perguntando quando sai o próximo livro”, sorri com entusiasmo a monitora escolar. Ela faz questão de lembrar que o livro é fruto também da atuação voluntária de muitas pessoas, que acolheram o projeto e viabilizaram a publicação.
Faltam políticas públicas
A história de Yasmin Anita poderia ser também a de muitas outras crianças que precisam – e têm direito – à Educação Inclusiva de qualidade. Entre as barreiras, a ausência de políticas públicas voltadas à educação e a ausência do compromisso do governo com o setor.
A vice-diretora da Escola Classe 405 Norte, Rosângela Soares Barros, conta que Andréia, determinante para a publicação do primeiro livro de Yasmin, chegou à unidade escolar em um momento conturbado, diante da ameaça de retirada de monitores.
“Se a inclusão acontece hoje, é porque há profissionais envolvidos e comprometidos. As leis que temos para respaldar as crianças com deficiência não são cumpridas. Hoje, os pais, mães ou responsáveis precisam recorrer ao Ministério Público para que se tenha direito a monitor, por exemplo. O direito que as crianças têm não está vindo do Estado, está vindo das ações das famílias, das escolas. É preciso dizer que quem está fazendo acontecer é o chão da sala de aula”, denuncia a vice-diretora.
Para Rosângela, “a inclusão só dá certo quando a gente acredita na criança e, ao mesmo tempo, tem a execução de políticas públicas”. “Qualquer criança tem potencial de desenvolvimento. Mas quando há bons profissionais, quando se tem investimento e compromisso, aí sim conseguimos fazer acontecer.”
A vice-diretora ainda afirma que a “educação pública vem sofrendo uma precarização muito grande”. “É muito triste o que a educação do DF vem passando nos últimos anos. Hoje, parece que é luxo ter monitor na escola, sendo que isso é um direito do aluno. Criaram o educador social voluntario, que é simplesmente o resultado de uma precarização. São pessoas engajadas, mas sem formação, sem remuneração digna”, desabafa Rosângela, mãe de uma criança recentemente também diagnosticada com Transtorno do Espectro Autista.
A garantia da Educação Inclusiva para todos os estudantes da rede pública de ensino é uma das lutas do Sinpro-DF. A diretora do Sindicato Regina Célia lembra que o início deste ano letivo evidenciou a falta de monitores e monitoras, um dos fatores que gera prejuízo sem dimensões para a Educação Inclusiva.
“O exemplo de Yasmin mostra que a presença de monitores e demais profissionais capacitados é fator determinante para a eficácia da Educação Inclusiva. É por isso que o Sinpro foi firme em denunciar não só o enxugamento desses profissionais nas unidades escolares, mas também a estratégia de matrícula, que superlotou as salas de aula; o atraso no repasse do Pdaf (Programa de Descentralização Administrativa e Financeira); a carência de concurso para monitores”, afirma.
Segundo ela, ao se descumprir as recomendações pedagógicas, educacionais e psicossociais, garantidas inclusive em leis, o governo atua para que “escolas se tornem depósito de crianças e adolescentes”. “Escola é lugar de desenvolver habilidades, de formar pensamento crítico. E isso para todas as crianças, neurotípicas ou não. Mais que nunca, é preciso valorizar a Educação Inclusiva, que foi intensamente sucateada sobretudo nesses últimos anos. Um retrocesso gerado pela retirada de políticas públicas eficientes e também pela tentativa da imposição do ódio, da exclusão, do não respeito à diversidade. Cabe a nós continuar lutando pela plena efetivação desse direito.”
Com a sabedoria das crianças, Yasmin Anita diz: “Tenho muita pena desse mundo”. Ela, que ama imaginar, imagina também um Brasil e um mundo melhor, como mostra em seu primeiro livro. E a Educação Inclusiva é peça fundamental nessa construção, que precisa ser real.
Fotos: Deva Garcia
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