“Uma voz me disse que eu iria levar a cultura do meu povo para fora do Amazonas”

Durante todo este mês de abril, mês dos Povos Indígenas, a Escola Classe 305 Sul realizou uma série de atividades voltadas à cultura e às tradições dos povos originários. A ideia foi propor algo que levasse às crianças de 6 a 11 anos a realidade dos povos indígenas. A oportunidade surgiu com Kayna Munduruku, do povo Munduruku, que chegou à EC 305 há dois meses, para ser educadora social.

Kayna surpreendeu a equipe gestora da escola. Sem nunca antes ter trabalhado como educadora social, sem ter formação em pedagogia, ela envolveu intensamente os 285 estudantes em práticas de grafismo indígena, cantos, danças. “A Kayna chegou e propôs a atividade. Era algo totalmente original e, claro, a gente aceitou. Se eu fosse pegar livros, nunca conseguiria trabalhar com tanta riqueza como ela trabalhou, por mais que eu procurasse a literatura, por mais que eu me dedicasse. Isso porque ela tem a vivência”, diz a diretora da escola, Lília Batista Felix.

Todas as ações realizadas com os(as) estudantes da EC 305 Sul fizeram o resgate das raízes dos povos originários. No lugar das tintas guache, do glíter e do lápis de colorir, jenipapo, urucum, instrumentos e acessórios dos povos indígenas. Ali, valorizou-se a cultura, um rumo oposto da apropriação cultural.

Como tudo que é novidade, desafios vieram. Kayna percebeu que a ideia das crianças sobre a cultura e a vida dos povos originários, ensinamento vindo sobretudo pelos livros didáticos, era, no mínimo, ultrapassada. “As crianças questionavam: por que você usa roupa? Por que você fala bem? Por que você usa celular? Isso porque o que eles veem nos livros é muito antigo. E os professores não têm culpa”, afirma e completa: “Têm muitos indígenas dizendo: rasguem os livros lá de trás, porque estão muito antigos”.

Foi justamente a partir da constatação dessa deficiência que Kayna, que tomou a primeira Coca Cola aos 15 anos – e quase teve um desmaio devido à quantidade de açúcar do produto –, trouxe aos estudantes o que os livros didáticos atuais deixam a desejar.

Da direita para a esquerda: professora Lília Felix, diretora da EC 305 Sul; Kayna Munduruki, educadora social; Regane Lopes. supervisora pedagógica; Daniele Leite, vice-diretora da EC 305 Sul

Um dos primeiros pontos levantados junto às crianças foram os espaços sociais que os povos originários ocupam. Indígenas são pesquisadores, são servidores públicos, são estudantes, são advogados, são médicos; estão em todos os lugares. Paralelamente, Kayna, que recebeu todo apoio da equipe gestora da escola, mostrou que o Brasil é terra indígena, e que essa cultura precisa ser respeitada, valorizada e perpetuada. “Se não fizermos isso, vamos acabar perdendo essa essência da nossa cultura, que é do Brasil. Isso tem que ser levado com muita seriedade. Se a gente não fortalecer a cultura indígena nas escolas, ela vai escorrer por entre os dedos”, diz a educadora social.

Durante as conversas e as práticas realizadas ao longo do mês de abril, Kayna lembra que os(as) estudantes “tiveram um grande despertar”. “Foi surpreendente. Eles me abraçaram e abraçaram o projeto com tanta alegria, se entregaram tanto… Foi como se eles tivessem fome e sede de aprender o que pertence a eles.”

A surpresa maior veio com a resposta de alunos com autismo. A educadora social que nunca tinha tido contato com crianças com esse tipo de transtorno, fez uma verdadeira revolução na vida de uma delas e de sua família.

O curumim cacique da turma
Pedro é estudante do 5º ano da EC 305 Sul. Ele tem Transtorno do Espectro Autista e um histórico escolar complexo. “Pedro é uma criança que vem de outra escola com histórico de dificuldade de inclusão, dificuldade para socializar. É uma criança que ainda está em processo de alfabetização. Mas no dia que a gente fez a cerimônia na escola, no dia 19 de abril, a mãe do Pedro estava na escola e viu o filho dando o seu melhor na apresentação. Ela chorou muito, pois nunca tinha visto o filho assim”, conta a diretora da escola, Lília Felix.

“Vi, pela primeira vez, Pedro participar de um evento, na frente, cumprindo fielmente a responsabilidade que lhe foi dada. Na apresentação do dia 19, Kayna deu a ele a responsabilidade de ficar na frente e ser o chefe. Nunca tinha visto tamanho comportamento. Ele cantou, dançou independente pela primeira vez. Nos outros anos, ele era colocado atrás, alguém sempre segurando ele pela mão. Ele não se movia na apresentação e se o fazia, era para atrapalhar. Obrigada a todos vocês. Estão conseguindo levar Pedro a mostrar suas capacidades.” As falas emocionantes foram enviadas por mensagem à diretora da EC 305 Sul, pela avó de Pedro.

Kayna conta que, para a apresentação, fez bolsinhas de cesto para as meninas e, para os meninos, entregou apito de passarinho. Mas para Pedro foi diferente. “Pensei: vou colocar ele na banda de música dos curumins. Dei um maracá para ele e o coloquei na linha de frente, junto com os outros músicos. Falei: ‘agora, você vai ficar aqui na frente e vai tocar, cantar e dançar, porque, agora, você é o chefe daqui, você é o cacique’. Ele se sentiu responsável por aquilo e ficou lá na frente, exercendo essa responsabilidade”, lembra com carinho a educadora social que diz ter “um amor imenso” por Pedro.

Para Kayna, o trabalho “despertou algo nas crianças com autismo”. “A única explicação é que eles sentiram que pertencem a um determinado povo”, reflete a educadora social.

A diretora da EC 305 Sul lembra que Pedro levou a sério a responsabilidade não só no momento da apresentação. “Ele disse que queria o grafismo no braço, e mostrou o lugar que queria. Depois que a pintura foi feita, ele pediu um pedaço de barbante para suspender a manga da camiseta e não deixar que ela tocasse no desenho. Tinha orgulho de mostrar o braço”, conta Lília, com um sorriso largo no rosto.

Para a diretora, o projeto desenvolvido na escola teve como principal resultado a promoção do respeito. “A gente vê hoje na sociedade falta de respeito aos povos originários. Por não conhecer, muitas vezes, o que se é praticado é o desrespeito, junto com a falta de humanidade e também de identidade”, avalia a professora.

Diante do resultado, ela diz que espera que “mais escolas busquem realizar essas atividades com o olhar mais atualizado, com parcerias”. “Quem é o indígena? Quem é essa pessoa que trabalha com a gente, que é um estudante, que é um servidor público? Indígena não fica só na floresta. A gente precisa que nossas crianças vejam que os indígenas também estão aqui e devem ser respeitados”, projeta Lília.

Para Kayna, a função de educadora social, que nunca foi planejada por ela, transcende o próprio exercício da profissão. “Sou uma pessoa muito espiritualista. Eu sempre ouço uma voz que me guia. Quando eu saí do Amazonas, essa voz disse que eu iria levar a cultura do povo para fora do meu estado. E é isso que eu estou fazendo”, conta.

 

>> Acesse AQUI álbum no Facebook do Sinpro