Um século depois, país pode ter recuo histórico de 100 anos
Ao som de A Internacional, clássico das esquerdas cantado com entusiasmo por aproximadamente 100 pessoas, terminou um evento que celebrava o centenário da primeira greve geral no país. Mas o ato desta segunda-feira (10) no Cemitério do Araçá, região oeste de São Paulo, teve caráter de atualidade, pela proximidade da votação de um projeto que pode atingir direitos que ainda não existiam em 1917 e foram conquistados nas décadas seguintes. A ligação entre os períodos históricos foi feita por todos os manifestantes, na véspera de votação do projeto de “reforma” trabalhista (PLC 38) no Senado.
É no Araçá que está enterrado, na quadra 132, o espanhol José Iñeguez Martinez, sapateiro e militante anarquista de 21 anos assassinado durante a greve de 1917. Uma placa foi descerrada em homenagem a ele, com assinaturas da CUT, do PT e da Fundação Perseu Abramo. Texto lido pelo secretário nacional de Cultura da central, José Celestino Lourenço, o Tino, faz referência às “jornadas de trabalho desumanas”, ao trabalho infantil e às condições degradantes dos trabalhadores daquela época. “A greve de 1917 foi fundamental não só para o fim da República Velha, mas para as leis de proteção social” que surgiriam a partir dos anos 1930 e culminariam com a CLT, em 1943.
“Estamos fazendo um resgate histórico de um momento de bravura”, afirmou o presidente da CUT São Paulo, Douglas Izzo. “Infelizmente, a luta dos trabalhadores continua sendo tratada pelas autoridades policiais e pelo Estado como uma transgressão. Temos muito ainda o que lutar. O que estão apontando para o Brasil é acabar com todo o avanço civilizatório que conseguimos com a luta de José Martinez e outros companheiros”, acrescentou Douglas, segurando uma edição fac-símile do jornal A Plebe, lançado em 1917 por inspiração de Edgard Leuenroth, militante anarquista que dá nome a um arquivo mantido pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Não precisamos só do remendo,
precisamos do casaco inteiro.
Não precisamos de pedaços de pão,
precisamos de pão verdadeiro.
Não precisamos só do emprego,
de toda a fábrica precisamos.
Integrantes do grupo teatro Ouro Velho recita poesias. A primeira é a Canção do Remendo e do Casaco, do alemão Bertolt Brecht. Um representante do Centro de Cultura Social – criado em 1993 e dedicado ao estudo e preservação do pensamento anarquista –, lembra que 10 mil pessoas estavam naquele mesmo Araçá em 10 de julho de 1917, no enterro de Martinez. A greve deixou outras vítimas, como o pedreiro Nicolau Salerno, e a jovem Edoarda Binda, de 12 anos. Mas o número de mortos é presumivelmente maior.
O pesquisador e ativista José Luiz Del Roio, autor de um livro sobre a greve de 1917, faz referência aos desaparecidos daquele período e da ditadura instalada a partir de 1964. “Onde foram parar os nossos companheiros?”, questiona, destacando a importância do ato de hoje. “Isto aqui não é o final, mas o início ou a continuação de uma história.”
Del Roio também cita o histórico das ossadas de Perus, encontradas em 1990 em uma vala clandestina no Cemitério Dom Bosco e que permaneceram durante certo período no Araçá. Agora, estão sob análise do Centro de Arqueologia e Antropologia Forense, da Universidade Federal de São Paulo. Sua companheira Isis, desaparecida em 1972, pode estar entre as vítimas.
Ao lado de Del Roio, o líder ferroviário Raphael Martinelli, que completará 93 anos em outubro, fala de suas origens operárias – o pai tinha 24 anos em 1917. O jornalista Sérgio Gomes comunica a morte da professora Ecléa Bosi, que ganha uma rápida homenagem.
Diretor da Fundação Perseu Abramo, ex-presidente da CUT e ex-secretário municipal do Trabalho em São Paulo, Artur Henrique vê a greve de 1917 como “uma mobilização contra a exploração do capital” e acrescenta que, passado um século, os trabalhadores organizam uma greve geral contra o “desmonte” da legislação trabalhista. Ressalta a importância da preservação da memória.
Neste ano, foi aprovado projeto do vereador paulistano Antonio Donato (PT) que deu origem à Lei 16.634, de abril. A lei inclui no calendário oficial da cidade o 9 de julho como Dia da Luta Operária.
O presidente da CUT, Vagner Freitas, observa que a esquerda foi mudando sua organização conforme a época – mas com os mesmos objetivos. “Desde o golpe (referência ao impeachment de Dilma Rousseff), as centrais e as frentes que formamos vêm combatendo de todas as formas. E a principal é a rua.”
“Do que são feitos nossos direitos? Em 100 anos tombaram quantos? Quantas mulheres foram estupradas, quantos jovens foram calados, quantos trabalhadores foram mortos?”, questiona a vice-presidenta da CUT, Carmen Foro, destacando a violência ainda presente no meio rural – 600 mortos em 30 anos, conforme a Comissão Pastoral da Terra (CPT), diz a sindicalista, paraense de origem. “A consciência da classe trabalhadora precisa estar conectada com seu passado, com sua história.”
(da Rede Brasil Atual)