Trinta e cinco expressões racistas para banirmos do nosso vocabulário

(*) Por Simão de Miranda

Vamos lá, pois a coisa está preta e amanhã é dia de branco. Antes que venham denegrir minha imagem, preciso esclarecer uma coisa: eu até tenho amigos que são negros e tenho uma camisa de estampa étnica que até gosto muito! Sou perfeccionista, não gosto de nada feito nas coxas e não me venha com essas críticas meia-tigela. Se insistir lhe coloco na minha lista negra, exijo respeito, pois não sou tuas negas!

Mesmo elaborando esta frase como exemplo da carga racista nela contida, doeu muito fazê-lo. Na dor do exemplo desta curta locução, estão contidas onze expressões racistas, sublinhadas no parágrafo, com as quais, não raro, nos deparamos diariamente.

Constatamos diariamente o quanto nossa sociedade alimenta o racismo por diversas vias, uma destas se manifesta na forma de palavras e expressões que conduzem elementos profundamente racistas na comunicação cotidiana, muitas vezes sem nos darmos conta, o que denota a forte dimensão do racismo estrutural.

Reuni este glossário mínimo na intenção de contribuir com a menor parte que seja para  a desconstrução desta semântica, porque não da sintaxe também, e, assim, no campo da escola, colaborar para uma Educação Antirracista. Perspectiva essencial para promover o entendimento e o respeito pelas diferentes culturas e origens que enriquecem nossa sociedade.

  1. A coisa está preta:A linguagem racista se manifesta na associação entre a palavra “preto” e situações desconfortáveis, desagradáveis, difíceis ou perigosas.
  2. Amanhã é dia de branco:Essa expressão tem várias origens possíveis. De acordo com estudiosos, ela foi criada em referência ao uniforme da marinha. Outros sugerem que estaria ligada à nota de mil cruzeiros, que apresentava a estampa do Barão do Rio Branco, vestindo trajes brancos. Dizer que o dia seguinte é “de branco” inicialmente significava um dia de trabalho ou de oportunidade para ganhar dinheiro. No entanto, ao longo do tempo, esse ditado popular adquiriu conotações preconceituosas, tornando-se uma forma de reforçar a suposta “inferioridade das pessoas negras”.
  3. Boçal: O termo “boçal” é comumente utilizado para descrever alguém mal-educado ou grosseiro. No entanto, durante o período do escravismo, essa palavra era empregada para se referir a pessoas escravizadas que não falavam português. Por isso, o uso desse termo tem raízes preconceituosas e deve ser substituído por “ignorante” ou “grosseiro”.
  4. Cabelo ruim, Cabelo de Bombril ou cabelo duro: São expressões racistas frequentemente utilizadas, especialmente na infância por colegas, mas que infelizmente persistem na vida adulta. Criticar as características dos cabelos afro também constitui racismo.
  5. Cor de pele: Esta expressão geralmente se refere a tons de bege, sugerindo uma preferência por representar a pele branca como padrão, o que é uma forma de racismo. Na verdade, não existe uma cor única que represente a diversidade da pele humana, que possui uma ampla variedade de tons.
  6. Cor do pecado:Geralmente utilizada como se elogio fosse, essa associação remete ao estereótipo da mulher negra hipersexualizada. Em uma sociedade fortemente influenciada pela religião cristã, como a brasileira, essa conotação de “pecado” é ainda mais carregada do seu aspecto pejorativo.
  7. Criado-mudo:O termo utilizado para descrever o móvel frequentemente posicionado na cabeceira da cama tem suas origens em um dos papéis desempenhados pelos escravizados dentro das residências dos senhores brancos: o de segurar objetos para seus “donos”. Porém, devido à necessidade de silêncio para não perturbar os moradores, esses servidores eram comumente chamados de “mudos”.
  8. Crioulo:Era a denominação para os filhos de pessoas escravizadas, um termo altamente pejorativo e discriminatório em relação aos indivíduos negros ou afrodescendentes.
  9. Denegrir:Este termo, sinônimo de difamar, tem sua raiz no significado de “tornar negro”, carregando uma conotação maldosa e ofensiva, como se manchasse uma reputação anteriormente “limpa”.
  10. Disputar a nega: Esta expressão tem origem não apenas no escravismo, mas também na misoginia e no estupro. Quando os “senhores” jogavam algum esporte ou jogo, o prêmio muitas vezes era uma mulher escravizada.
  11. Doméstica:As domésticas eram mulheres negras que trabalhavam nas residências das famílias brancas e eram denominadas “domesticadas”. Essa designação remonta à ideia de que pessoas negras eram consideradas animais e, portanto, necessitavam ser “domesticadas” através de métodos de controle e punição.
  12. Esclarecer: Carrega uma conotação racista, sugerindo que a compreensão só ocorre sob a luz da “branquitude”. É mais apropriado usar palavras como “explicar” ou “elucidar”.
  13. Escravo e escrava: A palavra “escravo” deriva da palavra grega eslavo, dada aos primeiros escravizados pelos romanos e que habitava o leste europeu. Estas palavras podem sugerir que a pessoa nasceu sem liberdade, ignorando o fato de que pessoas africanas foram trazidas ao Brasil e forçadas a trabalhar. “Escravizado(a)” é a alternativa mais apropriada para descrever essa condição.
  14. Estampa étnica: É comumente usada para descrever padrões de tecidos não europeus, como africanos ou indígenas. No entanto, essa expressão cria uma diferenciação preconceituosa ao usar “etnia” para tudo que não é europeu ou branco. É mais apropriado usar termos como “estampa africana” ou “estampa indígena” para indicar claramente a origem dos padrões.
  15. Feito nas coxas:A expressão popular tem sua origem na época do escravismo no Brasil, quando, de acordo com uma das teorias, as telhas eram moldadas de argila nas coxas dos escravizados.
  16. Humor negro: Use a expressão humor ácido” para evitar associar elementos mórbidos ou ilícitos à pessoa negra.
  17. Inveja branca:Outra expressão que perpetua a associação entre a negritude e comportamentos negativos. A inveja, já considerada negativa, é amenizada quando atribuída a pessoas brancas.
  18. Macumba: As origens da palavra “macumba” têm raízes em diferentes línguas africanas, como o quimbundo, originário de Angola; ou o quicongo, no Congo. No entanto, o termo é frequentemente utilizado de maneira pejorativa. Para evitar essa conotação, utilize expressões respeitosas, como “religião de matriz africana” ou “candomblé”, quando apropriado.
  19. Macumbeiro, Galinha de macumba, Chuta que é macumba: São expressões discriminatórias contra praticantes de religiões de matriz africana.
  20. Magia negra: Esta expressão associa rituais e práticas religiosas de forma pejorativa a eventos negativos, reforçando preconceitos e estigmatizando a palavra “negra”. Para evitar essas conotações discriminatórias, é preferível utilizar termos como “rituais proibidos” ou “práticas religiosas não aceitas”.
  21. Meia tigela:O povo negro que trabalhava forçadamente nas minas de ouro nem sempre conseguiam atingir suas “metas”. Quando isso ocorria, eram punidos recebendo apenas metade da tigela de comida e ganhavam o apelido de “meia tigela”, termo que hoje significa algo sem valor e medíocre.
  22. Mercado negro, lista negra:Essas são apenas algumas das muitas expressões em que a palavra “negro” é usada de forma pejorativa, associada a algo prejudicial, ilegal ou impresumível.
  23. Mulata, Mulata tipo exportação:Na língua espanhola, o termo era utilizado para se referir ao filhote macho resultante do cruzamento entre um cavalo e uma jumenta ou entre um jumento e uma égua. A carga pejorativa do termo é ainda mais intensa quando se usa a expressão “mulata tipo exportação”, que reforça a visão do corpo da mulher negra como mercadoria.
  24. Não sou tuas negas:Quando a mulher negra é descrita como “qualquer uma” ou “de todo mundo”, reflete a percepção da sociedade de que ela é alguém com quem se pode fazer qualquer coisa. Durante a época do escravismo, as mulheres negras eram tratadas como propriedade dos homens brancos e usadas para satisfazer seus desejos sexuais. Esse contexto de subjugação perpetuava uma cultura de assédio e estupro. Portanto, além de ser profundamente racista, o uso desses termos também está impregnado de machismo.
  25. Nasceu com um pé na cozinha:Esta expressão se refere literalmente à ancestralidade negra. As mulheres negras foram frequentemente associadas aos serviços domésticos, pois as escravizadas eram muitas vezes alocadas nas cozinhas das casas-grandes, onde também dormiam no chão. Infelizmente, essa proximidade facilitava o assédio e estupro por parte dos senhores.
  26. Nega maluca: Esta expressão é utilizada para descrever um bolo de chocolate, porém seu uso é problemático pois associa indevidamente a mulher negra a uma sobremesa e sugere falta de discernimento e inteligência. É mais apropriado simplesmente chamar o bolo de chocolate de “bolo de chocolate”.
  27. Negra de beleza exótica: Ser considerada bonita sendo negra muitas vezes está associado não aos traços naturais da pessoa, mas sim à conformidade com os padrões de beleza eurocêntricos. Este fenômeno evidencia um aspecto do racismo, onde características mais próximas do ideal da branquitude, são valorizadas em detrimento das características das pessoas negras. Esta dinâmica reflete um padrão prevalente de discriminação racial que persiste em muitas sociedades.
  28. Nhaca: Este termo tem sido usado desde os tempos coloniais para referir-se a um mau cheiro ou odor forte, no entanto, “Inhaca” é uma ilha em Moçambique, onde ainda vivem os povos Nhacas, um povo Ban.
  29. Ovelha negra: Tal expressão é utilizada para descrever alguém que se comporta de maneira não convencional. No entanto, sua origem tem conotações racistas ao associar pessoas negras a aspectos negativos.
  30. Preto de alma branca: É uma tentativa de elogiar uma pessoa negra, insinuando que a dignidade é algo pertencente apenas às pessoas brancas.
  31. Samba do crioulo doido: É o título de uma canção que satirizava o ensino da História do Brasil nas escolas durante a época da ditadura, composta pelo cronista carioca Sérgio Porto, conhecido pelo pseudônimo de Stanislaw Ponte Preta. No entanto, a expressão debochada, que denota confusão ou desorganização, reforça estereótipos discriminatórios em relação aos negros.
  32. Serviço de preto:Novamente, a palavra “preto” é utilizada de forma pejorativa, desta vez associada a uma tarefa malfeita ou realizada de forma incorreta, reforçando estereótipos racistas sobre o trabalho realizado por pessoas negras.
  33. Tem caroço nesse angu: Esta frase tem suas raízes em uma estratégia realizada pelas pessoas escravizadas para melhorar sua alimentação. Frequentemente, quando o prato consistia em angu de fubá, o que era comum, a pessoa que servia às vezes conseguia esconder um pedaço de carne ou torresmos sob o angu.
  34. Tenho até amigos que são negros: é uma defensiva comum quando alguém é confrontado sobre uma atitude ou fala racista. Fuja dessa expressão e aproveite e repense-a a partir das críticas recebidas.
  35. Volta pro mar, oferenda: Esta expressão é ofensiva, pois associa coisas indesejáveis a práticas religiosas, desrespeitando as religiões de matriz africana.

Não é difícil concluirmos que muitas destas expressões são plenamente substituíveis e outras são mesmo desnecessárias. Portanto precisamos firmar compromissos para praticarmos uma comunicação livre de racismo. Não é fácil, pois estes rizomas estão profundamente arraigados. Mas precisamos começar em algum momento, preferivelmente neste aqui agora, em processos de autorregulação e aconselhamento ao outro. Não podemos nos omitir ao ouvirmos tais expressões e, sim, de forma gentil e amorosa, atuarmos neste processo de educação antirracista. Não podemos continuar naturalizando o racismo linguístico, aliás racismo algum, em nenhum espaço, na escola sobretudo. Pois, sendo lugar de aprendizagens, conteúdos aprendidos se sedimentam.

Vamos então agir, pois não tá fácil pra ninguém, amanhã é dia de labuta e não quero ninguém me difamando. Deixa-me lhe explicar: tenho muitos amigos e uma camisa de estampa africana da qual gosto muito. Sou perfeccionista, por isso não gosto de nada malfeito. Críticas são bem-vindas, elogios também e seu nome vai para minha lista das pessoas especiais.

Pois aí está, a mensagem da abertura deste texto, reconfigurada de forma ética, responsável e amorosa.

Espero que esta conversa possa lhe incentivar ainda mais ao engajamento à luta contra o racismo e consequentemente lhe instrumentalizar para uma educação antirracista. Receba meu abraço cheio de desejos por um mundo onde caibamos e vivamos todos como iguais.

 

Referências:

CENPEC – Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária: https://www.cenpec.org.br/

Geledés – Instituto da Mulher Negra: www.geledes.org.br/

Unicef Brasil: https://www.unicef.org/brazil/por-uma-infancia-sem-racismo

 

(*) Por Simão de Miranda, pós-Doutor em Educação, professor e escritor. Redes: /simaodemiranda. Assista em vídeo no canal do professor Simão de Miranda: https://youtu.be/lEK_HlrXwSQ?si=V2iH-C1tKwxaqJOD