‘Sommeliers’ de vacina contra Covid-19 erram análise de eficácia, ignoram efetividade e atrasam combate à pandemia

'Sommeliers' chegam na frente nos postos, perguntam quais são as vacinas disponíveis e saem ao não ouvir o nome do que buscam: comportamento atrasa o combate à pandemia Foto: Felipe Nadaes
‘Sommeliers’ chegam na frente nos postos, perguntam quais são as vacinas disponíveis e saem ao não ouvir o nome do que buscam: comportamento atrasa o combate à pandemia Foto: Felipe Nadaes

 

 

RIO — Quando Jorge, de 86 anos, morreu de Covid-19, em abril, os familiares lamentaram que o pai tenha seguido o mesmo caminho do filho, João, morto em 2018. O filho, de 38, também foi vítima de um vírus, mas em seu caso, o da febre amarela. Moradores de Teresópolis, na Região Serrana do Rio de Janeiro, pai e filho compartilhavam a aversão por vacinas (os nomes foram inventados a pedido da família).

 

O filho se recusava a tomar porque achava uma “bobagem”. O pai porque não confiava na CoronaVac, a “vacina chinesa”, a única disponível no Brasil, quando a faixa etária dele foi vacinada, em fevereiro. Preferia esperar outro imunizante. O coronavírus chegou primeiro.

 

Histórias como essa se repetem todos os dias no Brasil. Elas assombram os leitos de UTI ocupados pelos não vacinados por opção. E se multiplicam nos que postergam a vacinação para escolher um imunizante. São os ‘sommeliers” de vacina. Chegam na frente dos postos, perguntam quais são os disponíveis e saem ao não ouvir o nome do que buscam.

 

Os 'sommeliers' fazem uma leitura equivocada da eficácia dos imunizantes, não levam em conta a taxa de efetividade.
Os ‘sommeliers’ fazem uma leitura equivocada da eficácia dos imunizantes, não levam em conta a taxa de efetividade.

 

— Não se vacinar por opção quando chegou a sua hora, é brincar com a morte. Não vejo vacina matando, mas o coronavírus já tirou a vida de meio milhão de brasileiros — afirma Amílcar Tanuri, coordenador do Laboratório de Virologia Molecular da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

 

Tanuri liderou um estudo que evidenciou a força da CoronaVac, vacina que alguns dos “sommeliers” consideram “fraca”. Em Maricá (RJ), onde 40% dos habitantes foram vacinados, 25% dos quais com duas doses, a vacinação reduziu à metade da incidência geral do coronavírus entre maio e junho. Lá a CoronaVac responde por dois terços dos vacinados e a AstraZeneca, pelo restante.

 

Os detratores de CoronaVac, em geral, preferem a vacina da Pfizer/BioNTech, atraídos pelo mau entendimento sobre índices de eficácia. Já outros fogem da mesma Pfizer, com medo injustificado de manipulações genéticas, na linha do “vai virar jacaré”, proferido pelo presidente Jair Bolsonaro.

 

Há os que temem efeitos adversos da Oxford/AstraZeneca e da recém-chegada Janssen/J&J, que precisa de uma só dose. Os cientistas têm certeza de que o Brasil conta hoje com quatro diferentes vacinas e o mesmo resultado: todas se mostram seguras (efeitos adversos raros) e eficientes (redução das taxas de doença grave e morte nos vacinados). Igualmente importante: todas também têm se provado eficazes contra as variantes do vírus.

 

Ao comparar a taxa de eficácia, ‘sommeliers’ ignoram que vacinas foram produzidas em diferentes momentos e seguindo metodologias próprias

 

A principal confusão dos “sommeliers” diz respeito às taxas de eficácia em estudos clínicos de fase 3, a última antes da autorização para uso na população. Esses testes mostraram eficácia de 95% para a Pfizer; 72% a 90% para a Janssen; 76% a 82% AstraZeneca; 51%, CoronaVac.

 

Mas as taxas não são comparáveis porque os estudos de fase 3 foram realizados em momentos diferentes da pandemia (alguns quando já havia novas variantes do coronavírus em circulação, outros não), com metodologias distintas (duração, escolha do tipo de placebo e dos grupos vacinados e de controle, por exemplo) e em países com diferentes taxas de contágio. Podem parecer detalhes, mas não são. Mal comparando, quando se contrasta o consumo de carros, é preciso testá-los em condições idênticas. Se um anda numa estrada de asfalto sem trânsito, outro numa de terra esburacada e um terceiro numa metrópole engarrafada, não há como provar que o primeiro é o mais econômico.

 

— Todas as vacinas em uso no Brasil são semelhantes em segurança e proteção para casos moderados a graves de Covid-19. E isso é o que importa — frisa Renato Kfouri, diretor da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm).

 

Especialista ressalta que todos os imunizantes disponíveis no país são semelhantes em segurança e proteção para casos moderados a graves de Covid-19 Foto: Felipe Nadaes
Especialista ressalta que todos os imunizantes disponíveis no país são semelhantes em segurança e proteção para casos moderados a graves de Covid-19 Foto: Felipe Nadaes

 

Mas a eficácia de 95% da Pfizer na fase de testes impressiona e puxava a fila de pessoas acima de 80 anos formada na Clínica de Família Santa Marta, em 22 de junho, data em que homens de 49 anos deveriam se vacinar. Naquele dia, havia Pfizer. Nenhum dos idosos ali morava na comunidade, mas todos tinham decidido não se vacinar com CoronaVac e AstraZeneca para esperar pela Pfizer e rondavam postos há semanas. Uma decisão, no mínimo, temerária.

 

— Atrasar a vacinação para escolher uma vacina vai custar a vida de muita gente devido à alta circulação de vírus no Brasil — alerta a pneumologista e pesquisadora da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) Margareth Dalcolmo.

 

Eficácia e efetividade parecem, mas não são a mesma coisa. A eficácia é medida nos estudos clínicos de fase 3 e diz respeito à estimativa de proteção individual. Assim, uma vacina com 95% de eficácia confere 95% menos risco de contrair Covid-19 em relação a um não-vacinado. Mas não significa que 95 de cada 100 vacinados ficarão livres da doença. O que mede isso são as análises de efetividade, quando as vacinas já estão em uso maciço.

 

Todas as divulgadas até o momento apresentam saldo altamente positivo para os imunizantes. A mais sólida vem do Reino Unido, o primeiro país do mundo a começar a vacinar e que tem 65% da população com pelo menos uma dose.

 

Efetividade das vacinas são conhecidas apenas quando seu uso já é maciço Foto: Felipe Nadaes
Efetividade das vacinas são conhecidas apenas quando seu uso já é maciço Foto: Felipe Nadaes

 

Na Nature Medicine, cientistas britânicos disseram que “a vacinação contra a Covid-19 reduziu o número de novas infecções por Sars-CoV-2, com os maiores benefícios obtidos após duas doses contra infecções sintomáticas. Não houve diferença entre a BNT162b2 (Pfizer) e ChAdOx1 (AstraZeneca/Oxford)”. A CoronaVac e a Janssen não são usadas lá e, portanto, não foram comparadas. Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações (SBIm), observa que o Reino Unido nos mostrou que o imunizante da AstraZeneca oferece de 85% a 90% de proteção com duas doses, a mesma da Pfizer.

 

— Chile e Uruguai nos provam que a CoronaVac reduziu óbitos e mortes em 90%. Também o mesmo patamar da Pfizer — afirma.

 

Ballalai observa que nenhuma vacina oferecerá na vida real 100% de proteção porque a imunidade depende não apenas do imunizante, mas também do imunizado. A resposta do sistema imunológico varia de um indivíduo para outro. Existem pessoas com duas doses de qualquer um desses imunizantes que morreram de Covid-19. Esses casos chamam a atenção justamente porque são raros.

 

— O Brasil está com baixíssima cobertura vacinal para duas doses e tem uma quantidade enorme de jovens sem perspectiva de receber vacinas. Isso é dramático — diz Ballalai, que chama atenção para o caso do Chile. Lá a maciça aplicação de uma dose da CoronaVac não teve efeito expressivo, mas a situação mudou depois da segunda dose.

 

Por ser a primeira a ser desenvolvida, a Pfizer foi testada nos EUA num momento em que a pandemia não havia explodido lá e variantes mais contagiosas, como beta, delta e gama (a P1 brasileira), ainda não haviam emergido.

 

A boa notícia é que o imunizante se manteve eficaz em análises de efetividade divulgadas em meados de junho. Estas indicaram que a Pfizer e a Moderna, feitas com a mesma tecnologia, oferecem imunidade persistente, por pelo menos um ano, inclusive para as variantes.

 

— Até agora, não temos visto perda de eficácia das vacinas contra as formas moderadas e graves de Covid-19 devido às variantes. Há estudos em curso no Brasil e no mundo, isso tem sido monitorado — acrescenta Kfouri.

 

Estudos indicaram que as vacinas da Pfizer, Moderna e AstraZeneca podem oferecem imunidade persistente, por pelo menos um ano Foto: Felipe Nadaes
Estudos indicaram que as vacinas da Pfizer, Moderna e AstraZeneca podem oferecem imunidade persistente, por pelo menos um ano Foto: Felipe Nadaes

 

Um levantamento feito recentemente em Serrana (SP), onde 75% da população de recebeu duas doses da CoronaVac, mostra que houve redução de 95% das mortes por Covid-19. O resultado sugere que ela pode proteger contra a variante P1, dominante no Brasil e considerada até mais de duas vezes mais contagiosa do que as linhagens originais.

 

Os resultados da AstraZeneca chamam a atenção. A Agência de Saúde da Inglaterra (PHE, na sigla em inglês) informou em maio que as duas doses da AstraZeneca conferem 90% de proteção contra a Covid-19. Em estudo na Lancet, a Universidade de Oxford, parceira da AstraZeneca, mostrou que sua vacina pode proteger por pelo menos 1 ano pessoas que tomaram duas doses com um intervalo maior (45 semanas) ou receberam um reforço depois de duas doses com intervalo menor.

 

Em estudo na New England Journal of Medicine, a vacina da Janssen se mostrou capaz de, 28 dias após uma só dose, oferecer 100% de proteção contra hospitalização e morte por Covid-19. Quando se incluem casos graves, o percentual é de 84,5% e moderados, 66%. A média de proteção nos EUA foi de 72%. A vacina perde parte da eficiência para a variante sul-africana beta. Mas permanece, segundo a OMS, eficaz contra a delta. Como as demais, não foi testada contra a P1.

 

Existe vacina grátis, mas não há nenhuma que garanta risco zero de provocar efeitos adversos, quase a totalidade deles leves. À medida que mais pessoas se vacinam, aumentam, como seria esperado, relatos de gente que passou mal.

 

— Os efeitos são insignificantes frente aos benefícios — assegura Dalcolmo.

 

Ricardo Gazinelli, professor titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e presidente da Sociedade Brasileira de Imunologia, diz que a vacina da Pfizer, por exemplo, parece promover uma resposta mais potente na primeira dose, mas pode causar em algumas pessoas mais efeitos adversos leves na segunda dose.

 

Não há vacina que garanta risco zero de provocar efeitos adversos, ressalta cientista Foto: Felipe Nadaes
Não há vacina que garanta risco zero de provocar efeitos adversos, ressalta cientista Foto: Felipe Nadaes

 

A vacina da Pfizer pode provocar em casos extremamente raros miocardite e pericardite em jovens, informou em junho o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC, na sigla em inglês) dos EUA. Ainda assim, nada que justifique qualquer medida, além de atenção.

 

Já as vacinas da AstraZeneca e a da Janssen podem provocar efeitos adversos leves (febre e mal-estar, por exemplo) com mais frequência. Dalcolmo explica que os casos de trombose associados a essas vacinas nada têm a ver com a trombose comum e são extremamente raros. A estimativa é de um caso para cada 400 mil aplicações de AstraZeneca.

 

Em grávidas, o risco é maior, mas ainda assim, baixo: 776 casos de trombose em 360 milhões de aplicações.

 

— Não há motivo para pessoas com trombose deixarem de tomar essas vacinas porque os mecanismos que causam os efeitos adversos raros são outros — afirma ela.

 

A CoronaVac está associada a menos efeitos adversos. Segundo Gazinelli, poderia ser especialmente adequada para gestantes e pessoas com alguma imunodeficiência.

 

Sucesso no combate à pandemia também depende de medidas de proteção já conhecidas, como cuidados com higiene e distanciamento social

 

A vacina não é o único determinante no sucesso contra a pandemia. Além da eficiência, contam fatores como cobertura com uma e duas doses, ritmo da vacinação, distanciamento social e cuidados com higiene.

 

— Israel abriu antes do tempo e voltou a ver o número de casos subir. O Chile também. Algumas pessoas pensam na vacina individualmente, mas a proteção depende do coletivo. Numa circulação de vírus elevadíssima como a do Brasil, todos estão em risco. Pensar no coletivo também é pensar na segurança individual — adverte Kfouri.

 

Vacinação não é suficiente para conter a pandemia, alertam pesquisadores; população deve manter cuidado com higiene e distanciamento social Foto: Felipe Nadaes
Vacinação não é suficiente para conter a pandemia, alertam pesquisadores; população deve manter cuidado com higiene e distanciamento social Foto: Felipe Nadaes

 

O geneticista Renato Santana, professor da UFMG que estuda variantes do coronavírus, diz que, mês a mês, se observa uma queda na mortalidade de idosos, vacinados primeiro, e o crescimento da mesma taxa em grupos não vacinados.

 

— Observamos uma queda na severidade dos casos, mesmo com a variante P1 totalmente dominante no Brasil. Isso significa que as vacinas funcionam — pondera .

 

Margareth Dalcolmo se preocupa com o tempo perdido com discussões sobre taxas de eficácia incomparáveis e efeitos adversos raríssimos enquanto a pandemia continua sem controle.

 

— Internei há dias dois jovens, um de 26 e outro de 28 anos. Como outros tantos, eles se achavam a salvo da Covid-19. Isso não existe, a não ser para os vacinados. Temos que correr para vacinar os jovens, eles se expõem mais e estão adoecendo como nunca vimos na pandemia. Temos que vacinar a todos, gente sem documentos, não importa. O importante é proteger a população — ressalta ela.

 

Gazinelli acalenta a expectativa de que até o fim do ano o Brasil tenha 70% de sua população vacinada. Depois, teremos outros desafios. Um é descobrir quanto tempo a imunidade conferida pelas vacinas durará. Para essa questão, não há resposta conclusiva. Outro é saber se serão necessárias doses de reforço, seja devido à diminuição de proteção ou pelo surgimento de variantes do coronavírus capazes de escapar da proteção adquirida. Estudos sugerem que o reforço será inevitável. Mas quando, em que frequência e por quanto tempo permanecem em aberto.

 

Nos próximos meses e anos, pesquisadores examinarão se será melhor combinar vacinas diferentes e se haverá vacinas para adequadas a determinados grupos Foto: Felipe Nadaes
Nos próximos meses e anos, pesquisadores examinarão se será melhor combinar vacinas diferentes e se haverá vacinas para adequadas a determinados grupos Foto: Felipe Nadaes

 

Os próximos meses e anos dirão se serão necessárias doses extras, se será melhor combinar vacinas diferentes, se novos imunizantes oferecerão mais opções e se haverá vacinas mais adequadas a determinados grupos.

 

— Todas as vacinas têm vantagens e desvantagens, mas o que importa é o resultado final e este tem sido bom para todas. As vacinas diminuem a carga de vírus numa pessoa, com isso, menos vírus estarão em circulação e isso é crucial para contermos a pandemia — resume Gazinelli, cujo grupo desenvolve uma vacina que tem se mostrado promissora em testes com animais.

 

O que motiva os ‘sommeliers’: Quem quer escolher uma vacina costuma argumentar que a da Pfizer/BioNTech protege mais que a Oxford/AstraZeneca, Janssen e CoronaVac. Dizem isso com base nas taxas de eficácia publicadas em testes clínicos. A da Pfizer/BioNTech é de 95%, a da Janseen, 72%, a da Oxford/AstraZeneca, 76%, e a da CoronaVac, 51%.

 

O equívoco da comparação: O problema é que as taxas de eficácia não podem ser comparadas porque os estudos clínicos de fase 3 em que elas se baseiam foram realizados em lugares diferentes, com metodologias distintas (grupos de vacinados e de controle, tipo de placebo, duração, dosagem etc.) e em momentos distintos da pandemia. Por isso, são incomparáveis. A Pfizer foi testada quando a pandemia estava no início e ainda não havia surgido variantes. A CoronaVac usou como voluntários profissionais de saúde, pessoas mais expostas do que a maioria. E a AstraZeneca e a Janssen foram testadas após a emergência de variantes. Tudo isso impede qualquer comparação.

 

O que importa: As análises de efetividade, que avaliam o efeito de uma vacina na população, são o guia mais apropriado. As realizadas até o momento indicam que todas as vacinas são seguras, protegem contra a Covid-19 grave e evitam mortes.

 

E as variantes: Em tese, elas ameaçam reduzir o impacto dos imunizantes porque podem escapar dos anticorpos e são mais contagiosas. Mas, até agora, todas as vacinas continuam sendo eficazes.

 

 

De O Globo