Solidariedade, empatia e justiça social

Vive-se, hoje, um momento de excepcionalidades. A pandemia tem obrigado a todos nós a experimentar novos comportamentos, ao mesmo tempo, em que aponta a necessidade de repensar atitudes e a questionar o modelo de sociedade que construímos até aqui. Ao atingir milhões de pessoas mundo afora, a covid-19 demonstra a fragilidade humana, mas, ao mesmo tempo, explicita a abissal diferença entre pessoas de classes sociais diferentes. Se, por um lado, o vírus atinge a qualquer pessoa, independentemente de condição social ou econômica, por outro lado, a superação da doença está, absolutamente, relacionada a condições econômicas e à capacidade dos Estados nacionais em garantir meios de recuperação e de prevenção.

O grau de letalidade da covid-19 parece não ser acima ao de outros vírus, contudo, a sua acelerada transmissibilidade tem demonstrado o seu potencial de, em pouco tempo, produzir o colapso dos sistemas de saúde. É preciso reconhecer que os sistemas de saúde, de forma geral, são pensados para atender a parcelas da população, sobretudo, no Brasil, em que a lógica é de colocar o debate financeiro acima da preservação de vidas. Até o dia 14 de junho, mais de 43 mil pessoas morreram no País em decorrência da pandemia e, cerca de 870 mil casos confirmados. Números que indignam e entristecem qualquer pessoa que tenha o mínimo de empatia e solidariedade. São números assustadores que, provavelmente, não refletem a realidade devido a prováveis subnotificações dos casos de covid-19.

A tragédia brasileira talvez pudesse ser evitada, considerando a existência do Sistema Único de Saúde (SUS) e a visão de saúde como um bem universal. Entretanto, as ações de sucateamento do SUS como parte de uma visão política de governo baseada em uma perspectiva de Estado mínimo e regulação das relações sociais e econômicas pelo mercado financeiro têm retirado cada vez mais recursos da saúde. Além da redução de recursos, a inexistência de planejamento e de cuidado do governo Bolsonaro com a população são elementos essenciais da produção desta tragédia de milhões de vidas perdidas.

A política do governo federal tem se mostrado muito adequada aos grandes operadores do sistema financeiro, mas, totalmente danosa ao povo. Não se recupera vidas, mas, economia, recupera-se. A lógica impressa pelo governo de Bolsonaro decide quais as vidas que devem ser preservadas e indica quais vidas não tem importância. O perverso, nessa lógica de “necropolítica” (política da morte), é a condição essencial de que existem vidas humanas que são descartáveis. Que corpos carregam essas vidas? Os corpos negros? Os corpos pobres da periferia? Os corpos que não tem direito a teto e à terra? Historicamente, são os mesmos sujeitos marginalizados e excluídos.

Um estudo pulicado pela Sociedade Brasileira de Pneumologia e Tisiologia afirma que “é necessário destacar que a letalidade pela covid-19 é determinada tanto pelas características intrínsecas dos indivíduos infectados (idade, doenças prévias, hábitos de vida) […] quanto pela oferta/disponibilidade de recursos terapêuticos (leitos hospitalares, equipes de saúde, ventiladores mecânicos e medicamentos). […] Por essa razão, a análise da letalidade deve levar em consideração essa combinação de fatores”. Disponível em: https://www.jornaldepneumologia.com.br/detalhe_artigo.asp?id=3362.

A produção e reprodução desse processo é resultado de uma cultura que naturaliza o preconceito e a discriminação. Sistema econômico que produz concentração de riqueza, tendo como elemento estruturante uma organização política eleitoral que impossibilita a representação parlamentar proporcional aos segmentos sociais e identitários que compõem a diversificada sociedade brasileira.

O desafio imposto pelo vírus é saber que sociedade seremos capazes de construir após este primeiro ciclo da pandemia. Uma sociedade, radicalmente, diferente da que foi produzida pré-pandemia, ou seja, a construção de uma sociedade baseada em outra lógica econômica, em outro modelo de organização social e política, tendo como novos componentes culturais essenciais a solidariedade e a empatia.

Solidariedade e empatia são incompatíveis com a lógica da “necropolítica”. Sistema em que o governo se limita a administrar a morte, ou seja, define qual vida deve ser preservada e qual deve ser descartável. Nesse sistema, a solidariedade é simples parte de discurso vazio, isso porque um dos componentes essenciais para esse sentimento é a empatia. Uma sociedade que naturaliza a morte por discriminação de raça, gênero, orientação social e condição social é incapaz de ser, plenamente, solidária por ser incapaz de alimentar a empatia como forma essencial de relacionamento entre os indivíduos.

A necropolítica, que naturaliza a morte a partir do recorte de classe social, raça, gênero, orientação sexual, é a política que desumaniza o humano e acelera a destruição de toda a vida. De acordo com esse raciocínio, nenhuma espécie de vida tem valor, uma vez que é a morte que determinará as condições de existência de cada ser. O autoritarismo, o fascismo, o totalitarismo, o absolutismo, são modelos de organização social e política e exemplos de sistemas assentados no conceito de política da morte, a necropolítica.

O governo protofascista de Bolsonaro produz essa política da morte na medida em que se mostra incapaz de demonstrar empatia pelas famílias dos milhares de mortos pela covid-19, pelo descaso com as populações indígenas e quilombolas, pela desconsideração das necessidades de milhões de pessoas que estão nas filas do INSS e Bolsa Família, pelo consentimento à destruição da Amazônia e do meio ambiente, pela cumplicidade com o sistema financeiro, que sublima o lucro e menospreza vidas.

Não será possível uma sociedade melhor se essa concepção de política, conduzida por este governo, não for superada, o que, necessariamente, exige a derrota deste governo e dos que lhe dão sustentação política e financeira.

Por Cleber Soares – professor de filosofia da rede pública de ensino do DF e diretor do Sinpro-DF.