Racismo | Como o preconceito ainda permeia todas as esferas das vidas negras

Protagonismo na política, oportunidades na educação e no mercado de trabalho: apesar da melhora, o racismo ainda vive entre a população negra
“Uma coisa sempre falo: o quilombo dos Palmares é nosso único e legítimo governo. E como diria Lélia Gonzalez [filósofa negra e feminista], quilombo dos Palmares foi a única República Democrática do Brasil”, conta a pedagoga e artista Erica Malunguinho, mulher trans negra, eleita deputada estadual em São Paulo pelo PSOL nas últimas eleições.
Há exatos 323 anos, a vida de Zumbi dos Palmares acabou pelas mãos de soldados das tropas portuguesas, após uma emboscada. Foi ele o maior símbolo da resistência negra durante a época colonial. É nele que Erica e tantos outros negros e negras se inspiram para lembrar como a Abolição, prestes a completar 131 anos em 2019, não foi capaz de libertar a população negra brasileira.
Basta ver pelos números – 76% dos pobres, segundo dados do IBGE, têm a mesma cor: negra. A cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras, de acordo com Atlas da Violência. Enquanto a mortalidade de não-negras (brancas, amarelas e indígenas) caiu 7,4% entre 2005 e 2015, entre as mulheres negras, o índice subiu 22%.
Mais da metade da população carcerária (61,6%) é de pretos e pardos, revela o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias (Infopen). Entre os quase 12 milhões de brasileiros analfabetos, há mais que o dobro de negros do que não-negros.
A política segue a mesma toada da exclusão. Em 2018, só 4% dos candidatos estaduais, federais e senadores eleitos são negros – num país em que a maioria (54%) da população se considera preta ou parda. Malunguinho foi uma delas.
“Vimos essa urgência de ocupar os espaços sempre tomados pelos mesmos atores brancos – e sendo eles, inclusive, porta-vozes das nossas pautas”, diz a deputada eleita. “Mas que não enfrentam com a radicalidade, coragem e coerência que eu considero necessário para a desconstrução das violências estruturais”, conclui.
Não é só pela presença de um rosto negro transexual na Alesp – ou em qualquer outro campo de tomada de decisões. Representatividade ajuda a mudar as estatísticas. Não à toa, a vida educacional de jovens negros mudou com os programas de cotas e bolsas de estudos, como ProUni. De 2000 até 2015, o percentual de pretos e pardos que terminaram um curso universitário passou de 2,2% para 9,3%. Ainda que tenha dobrado na última década, o número é pequeno perto da parcela de brancos que carrega um diploma de ensino superior – 22%.
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Apesar dessas lentas vitórias – que correm riscos de se extinguirem no governo Bolsonaro –,  nem mesmo o mercado de trabalho deixou de lado o racismo. São eles 63,7% dos desocupados, o que corresponde a 8,3 milhões de pessoas. Com isso, a taxa de desocupação de pretos e pardos ficou em 14,6% – entre os trabalhadores brancos, o índice é menor: 9,9%.
Os dados são da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada nesta sexta-feira 17 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Além disso, no terceiro trimestre de 2017 o rendimento médio de trabalhadores negros foi inferior ao dos brancos: 1,5 mil ante 2,7 mil reais.
E só em 2089, brancos e negros terão uma renda equivalente no Brasil. A projeção é da pesquisa “A distância que nos une – Um retrato das Desigualdades Brasileiras” da ONG britânica Oxfam, dedicada a combater a pobreza e promover a justiça social.
Em média, os brasileiros brancos ganhavam, em 2015, o dobro do que os negros: R$1589, ante R$898 mensais.
Ainda segundo o relatório, 67% dos negros no Brasil estão incluídos na parcela dos que recebem até 1,5 salário mínimo (cerca de R$1400). Entre os brancos, o índice fica em 45%
“O que sinto aqui na região e Salvador, o lugar fora da África com maior percentual de população negra, é que ainda há racismo no mercado de trabalho”, explica Luiz Chateaubriand, analista da Superintendência de Estudos Econômicos (SEI) da Bahia. “Mas isso tem diminuído um pouco nos últimos anos, com mais postos de trabalho assalariado”, conta.
A política institucional, na forma de cotas, teve efeito positivo, de acordo com Chateaubriand. Mas as lutas dos movimentos sociais negros também tiveram efeito importante. “O avanço dos movimentos antirracistas teve um avanço muito importante. O racismo é fenômeno condicionado ou determinado d formas múltiplas – e, por isso, exige não só as cotas, que são extremamente importantes, mas também uma luta constante dos movimentos”, conclui.
E é para relembrar essa luta diária dos corpos negros – a carne mais barata do mercado, como diria Elza Soares -, que nesse dia 20 de novembro tantas festas e manifestações negras tomam conta do país. A luta de Zumbi dos Palmares segue viva. Ainda hoje, 323 anos depois de sua morte.
Fonte: Carta Capital