Por um projeto alternativo ao “Novo Ensino Médio”

(*) Por Adilson Cesar de Araujo

 

O grande cantor e compositor Belchior, em uma de suas mais belas canções: “Velha roupa colorida”, contemplou-nos com o seguinte verso: “no presente, a mente, o corpo é diferente. E o passado é uma roupa que não nos serve mais”.

Mas o que é esse passado que não nos serve mais quando analisamos o teor da Reforma do Ensino Médio? O passado aqui não se refere à História como um campo de saber necessário para a compreensão da realidade e para a construção do sujeito social, mas uma história que se repete como tragédia do ponto de vista político e pedagógico na realidade educacional brasileira.

Nesse sentido, é importante compreender a narrativa ideológica em defesa da Reforma, com o seu objetivo de capturar subjetividades a partir de um discurso que busca expressar anseios por mudanças na educação, pautando-se na flexibilização curricular com o intuito de imprimir uma sensação de movimento, de modernização na educação visando à construção de consenso e de apoio popular.Assim, no processo de implementação da Reforma do Ensino Médio, os seus defensores criaram inúmeros penduricalhos pedagógicos, perfumarias e novas nomenclaturas visando criar uma sensação de “inovação pedagógica”.

Tal narrativa, construída com forte apelo midiático, buscou a adesão da população. Nesse processo, o objetivo foi o de seduzir e capturar subjetividades para apoiar o “Novo Ensino Médio”, como se esse projeto fosse sinônimo de movimento e de ruptura em relação à estrutura educacional que existia antes.

Todavia, cabe destacar que a Reforma do Ensino Médio é a expressão de um movimento de modernização conservadora, em que diferentes grupos, com pautas distintas, mas interesses comuns firmaram alianças estratégicas para manter o modelo desigual e estratificado de educação! Assim, as mudanças trazidas pela Reforma são aparentes, superficiais, dissimuladas, uma vez que elas não alteram a essência e nem modificam a estrutura da educação brasileira. Logo, é um tipo de reforma que nega a construção de um projeto educacional republicano: a educação básica como direito social de todos.

A Reforma do Ensino Médio resgata, portanto, a forma de construção política e as finalidades pedagógicas contidas em outras reformas educacionais que não deram certo ao longo da história da educação brasileira.

Do ponto de vista político, não podemos esquecer que esta reforma reforça a forma autoritária e tecnocrática de se fazer mudança educacional, com desprezo pela  escola e por seus profissionais, por meio de uma lógica de participação dissimulada, não efetiva e desrespeitosa à pluralidade de vozes que compõe o contexto escolar e a sociedade brasileira. É uma reforma feita pelos ditos “especialistas” em educação  ligados às fundações privadas, a partir de orientações vindas dos organismos internacionais como o Banco Mundial e a OCDE, mas adequadas ao contexto local com vistas a dar legitimidade técnica e científica a esse entulho autoritário chamado de “Novo Ensino Médio”.

Esse modelo de reforma desqualifica os docentes, que sempre são vistos como “incapazes”, “despreparados” e “resistentes” às mudanças. No caso especifico, a desvalorização do trabalho docente é necessária e serve como estratégia política para torná-los reféns dos pacotes uniformizados e elaborados pelos ditos “especialistas” em educação que estão vinculados às fundações privadas, bem como para colocá-los sob a tutela dos reformadores de plantão.

Assim, do ponto de vista político, é uma Reforma que “sataniza” a escola e seus profissionais, para que esses fiquem reféns de soluções mágicas vindas de fora do ambiente escolar. Dessa forma, nega a autonomia docente, a construção coletiva, ou seja, engessa a gestão democrática como princípio constitucional.

 Do ponto de vista pedagógico, a reforma resgata o discurso presente nas reformas neoliberais da década de 1990, pautadas na qualidade da educação instrumental, positivista, que nega a história, a trajetória, a identidade da escola, por meio de um currículo prescritivo e padronizável,  torna o espaço escolar prisioneiro de avaliações em larga escala.Assim, projeta-se uma qualidade que não é fruto da construção social, pactuada entre a comunidade escolar e a sociedade, mas uma ação de “especialistas” em educação, de pequenos grupos de consultores que estabelecem as metas que devem ser alcançadas e que pensam pela e para a escola.

Na lógica da qualidade hegemônica em educação, tudo passa a ser medido, avaliado e quantificado. É um modelo de reforma desumanizado e instrumentalizado de cima para baixo,  feito para atender a interesses de pequenos grupos ligados ao setor privado. Aliado a esse conceito de qualidade instrumental e positivista, há o resgate da “pedagogia das competências”,um termo ambíguo, polêmico e que surge como receita mágica para resolver os graves problemas da educação. A adoção da pedagogia das competências surge, novamente, de forma impositiva, como ato da burocracia, via resoluções do CNE e inspirada no mundo dos negócios, com o seu viés utilitário, pragmático, individualista e para adaptação da educação à lógica de um mercado cada vez mais precarizado.

A reforma trouxe o velho travestido de novo. Assim, suas bases políticas e pedagógicas já estiveram presentes em outras reformas já realizadas na educação brasileira (5.692/1971, PCNs, Decreto 2.208/1997). Nessa seara, reforçamos a perspectiva de Luiz Antonio Cunha, quando ele afirma que a Reforma é um atalho para o passado, que ela não veio para mudar a cara do Ensino Médio, mas tem finalidade política clara de contenção do acesso dos jovens ao ensino superior, veio para dificultar o acesso das massas ao prosseguimento nos estudos e para justificar os cortes e falta de investimentos do Estado na garantia da educação como direito social.

Enfatizamos que o projeto de educação estabelecido pela reforma não tem nada de novo. Do ponto de vista político e pedagógico tem ocorrido o resgate de estratégias e discursos que já foram usados em outras reformas educacionais já fracassadas no contexto educacional brasileiro e que só alimentaram o dualismo na educação, a segmentação da oferta e as desigualdades escolares.

Compreendemos, por consequência, que a defesa de um projeto de Ensino Médio alternativo ao que está posto pela Reforma é tarefa de todos os setores comprometidos com a democratização da educação e com a defesa de um autêntico projeto que venha possibilitar o desenvolvimento humano, a socialização, a apropriação da cultura e o domínio dos conhecimentos científicos e tecnológicos para a inserção ativa das juventudes na democracia e no mundo do trabalho.

Algumas experiências já vêm sendo esboçadas ao longo das últimas décadas e merecem ser aperfeiçoadas: o projeto do Ensino Médio Integrado dos Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, por exemplo, é uma delas. No debate posto, não estamos no campo das ideias, da abstração e da crítica vazia, mas nos baseando na realidade concreta, na defesa de um projeto construído socialmente e que merece ser universalizado como política pública, que é exitoso e tem o reconhecimento dos estudantes, da comunidade escolar, dos profissionais da educação e de grande parte dos pesquisadores da educação que pesquisam sobre o tema como um projeto que deve ser aperfeiçoado e universalizado para o conjunto da juventude brasileira.

Diante desses novos desafios, a nova realidade exige a construção de um movimento ascendente na defesa de um projeto alternativo de educação para as juventudes. No momento, é necessário agirmos na busca do fortalecimento dos movimentos sociais que fazem crítica ao discurso de que a Reforma merece ser “aperfeiçoada”, “revisada”. Essa reforma merece ser revogada e devemos trabalhar para a construção e apresentação de outro projeto de Ensino Médio, construído de forma democrática e com participação ativa dos movimentos sociais.

 Neste contexto de construção de um projeto alternativo ao “NEM”, as ações devem ser interinstitucionais, serem coordenadas pelo  Fórum Nacional de Educação e ter a participação ativa dos representantes das universidades pública, dos Institutos Federais de Educação, das entidades estudantis como UBES, FENET, UNE, as representações dos profissionais da educação: CNTE e CONTEE, os pesquisadores da educação e a sociedade de um modo geral.

Nesse debate, devemos apresentar resultados de pesquisas sobre o processo de implementação da reforma do Ensino Médio com as suas conseqüências nefastas para a educação pública e para a formação dos jovens. Ao mesmo tempo, será necessário também que sejam construídas as diretrizes indutoras de um projeto alternativo de Ensino Médio para a juventude brasileira. Assim, os movimentos sociais devem lutar pela revogação da Reforma do Ensino Médio como também construir e apresentar um projeto popular de Ensino Médio como alternativa ao que está colocado pelo “Novo Ensino Médio”.

Diante do exposto, é necessário darmos alguns passos para a  construção de um projeto alternativo ao Novo Ensino Médio (NEM), nesse sentido apresentamos algumas contribuições ao debate:

  • É preciso disputar o conceito de qualidade na educação e romper com o modelo de qualidade hegemônico que é prisioneiro apenas dos resultados de avaliação em larga escala, que nega a educação como atividade complexa. Os movimentos sociais devem afirmar a perspectiva de qualidade de educação comprometida com o desenvolvimento humano e social, que seja fruto da construção dos profissionais da educação, dos estudantes e da sociedade. Temos que projetar uma perspectiva de qualidade em educação que leve em consideração as condições de trabalho, a estrutura das escolas, a formação de professores e que o financiamento público seja destinado à educação pública, numa perspectiva de que em educação a garantia de bons processos é condição necessária  para se alcançar bons resultados.
  • Temos que construir as diretrizes indutoras de um projeto alternativo de Ensino Médio que seja referenciado socialmente. Neste caminho, dois documentos importantes poderão ser úteis ao debate: a Resolução CNE nº 2/2012, que foi elaborada a partir de um amplo debate na educação e que estabeleceu as bases para a integração curricular e a formação humana integral e a  Lei 11.892/2008 que criou os Institutos Federais de Educação, uma vez que essa lei prioriza a oferta de cursos integrados, numa perspectiva de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão ao longo do processo formativo dos jovens do Ensino Médio, e busca assegurar o direito à formação básica comum a todos os jovens, tendo o Estado como articulador, responsável e financiador da educação pública.
  • É fundamental garantir a defesa de uma formação básica comum para todos os estudantes do Ensino Médio, uma vez que a reforma esvazia o sentido de formação básica, ofertando uma formação em migalhas para a juventude.
  • É urgente construir as bases do projeto de Ensino Médio alternativo ao NEM como uma prioridade a ser apresentada como pauta na Conferência Nacional de Educação para subsidiar o debate do novo Plano Nacional de Educação.
  • É importante elaborar uma proposta de política de assistência estudantil para todos os jovens do EM, por meio de programas e ações que promovam a permanência e o êxito dos estudantes, a exemplo do que já existe nos Institutos Federais de Educação.
  • Devemos construir um projeto alternativo ao “NEM” no contexto de uma verdadeira transformação da estrutura da educação básica, o que deve ocorrer de forma articulada, orgânica e democrática, dentro de um processo de institucionalização do Sistema Nacional de Educação pactuado socialmente.
  • É necessário e urgente que as representações dos movimentos sociais convoquem o Seminário Nacional do Ensino Médio para que se possa debater e conhecer os resultados de pesquisas sobre a implementação da Reforma do Ensino Médio e para construir as diretrizes indutoras de um projeto popular de Ensino Médio alternativo ao do “NEM”.

 

(*) Adilson Cesar de Araujo/IFB, pesquisador do Observatório Nacional do Ensino Médio.