Polícia usa Lázaro para invadir templos e criminalizar religiões afrotradicionais. Sinpro cobra laicidade no Estado

A força-tarefa formada por mais de 400 policiais das Polícias Militar e Civil de Goiás e do Distrito Federal, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal e Diretoria Penitenciária de Operações Especiais (DPOE-DF) chega, nesta quinta-feira (24), ao 16º dia de buscas sem nenhuma pista do paradeiro de Lázaro Barbosa, o homem acusado de assassinar quatro pessoas em Ceilândia Norte, no Distrito Federal, entre os dias 9 e 12 de junho, e de fazer vários reféns em chácaras e fazendas situadas no município de Cocalzinho, em Goiás.

 

O motivo do insucesso das polícias pode ser, por exemplo, a falta de foco no seu objetivo. A partir do terceiro dia de buscas até o dia 20 de junho, as polícias estavam preocupadas em invadir templos de religiões de matriz africana e associá-los aos crimes atribuídos a Lázaro Barbosa e, ao mesmo tempo, consolidar sua tradição histórica e errada de criminalizar, satanizar e prejudicar comunidades afrotradicionais.

 

A polícia invadiu, com intimidações, requintes de violência e sem nenhum mandado nem autorização judicial, 12 templos de religiões de matriz africana na região de Águas Lindas de Goiás. A população frequentadora das casas afrotradicionais estão em pânico. A busca de Lázaro tem exposto o racismo religioso e cultural da polícia, que busca associar, em seus discursos, os templos afrotradicionais ao satanismo supostamente praticado por Lázaro, suspeito dos crimes.

 

Lideranças religiosas têm denunciado nas delegacias e, orientadas por equipes de advogados, têm registrado Boletins de Ocorrência. Elas denunciam que têm sido vítimas dos abusos de autoridade de policiais, que aparecem ostensivamente armados, com fuzis apontados para a pessoa, geralmente, sozinha, que reside e cuida dos templos. Além de arrebentarem portas e portões e destruírem objetos sagrados, agridem fisicamente caseiros e lideranças religiosas, na maioria pessoas idosas, para obrigá-las(os)  a falar o que elas e eles não sabem: o paradeiro de Lázaro.

 

Além da denúncia nas delegacias, autoridades afrotradicionais e organizações representativas dos povos tradicionais de matriz africana lançaram, nesta semana, o Manifesto das Comunidades Tradicionais de Terreiro em Denúncia aos Atos de Racismo e Intolerância Religiosa, com um abaixo-assinado, com os quais repudiam os ataques violentos e racistas praticados pela polícia na região de Águas Lindas, Girassol, Cocalzinho e Edilândia, em Goiás, na tentativa de vinculá-los ao foragido conhecido como Lázaro Barbosa e aos crimes a ele atribuídos. Confira o manifesto e o abaixo-assinado no final deste texto.

 

O pai de Santo André Vicente de Souza, 81 anos, teve seu terreiro invadido de forma truculenta pelos policiais cinco dias seguidos, segundo denúncia de uma das lideranças. “Na primeira vez, agrediu o caseiro, que tem deficiência de fala e nem podia, por isso, se explicar direito”. Pai André é um dos que registraram um Boletim de Ocorrência, na sexta-feira (18/6), após o terreiro que ele dirige ser, novamente, alvo de buscas de forma abusiva e violenta.

 

“O que a gente está vivendo em Águas Lindas é a expressão do racismo. Isso acontece em todas as periferias em que a população preta é agredida, reprimida, criminalizada e assassinada pelas forças policiais. Isso também acontece com os povos e comunidades tradicionais porque, desde a escravidão, quando nossos ancestrais foram sequestrados, escravizados, torturados barbaramente e assassinados, o projeto de nação brasileira é assentado sobre o extermínio do povo negro”, analisa Tata Kibuku Mungongo, liderança afrotradicional.

 

Ele denuncia também que os policiais fotografaram apetrechos sagrados e divulgaram nas redes sociais e na mídia como objetos utilizados em rituais satânicos supostamente praticados por Lázaro Barbosa. “Essa atitude, no entendimento das nossas lideranças religiosas, tem o claro e deliberado intuito de associar as religiões afrotradicionais a uma ideologia negativa, causando danos morais a mais de 150 templos de umbanda, candomblé e outras religiões de matriz africana”.

 

“O nome disso é racismo religioso. Racismo histórico que o nosso povo e nossas casas vêm sofrendo por sermos, sim, oriundos das tradições africanas, resistentes, desde o processo escravagista. Esses mais de 500 anos, para nós, não fizeram a menor diferença. Nossas casas continuam alvo da polícia e continuamos sendo ligados a tráfico e a todo tipo de crime”, completa uma das lideranças religiosas que, juntamente com o casal de caseiros, teve seu templo invadido e mais de 20 fuzis da polícia apontados para ela.

 

Ela diz que “quando a polícia não sabe como classificar, diz que tem um ritual satânico e publicam imagens que tiraram sem autorização dos nossos apetrechos sagrados, associando-as a uma situação negativa”. Essa liderança não quis se identificar para a reportagem do Sinpro-DF para não sofrer mais represálias, mas denuncia que quando questionou a invasão de sua chácara, numa noite da semana passada, e pediu o mandado de busca e apreensão da Justiça que justificasse aquela ação violenta, o policial respondeu: “Você quer ser presa por desacato à autoridade ou por impor resistência ao trabalho da polícia?”

 

Sob coação armada, ela foi obrigada a abrir todas as portas dos espaços sagrados. “Locais que, mesmo nós, iniciadas e iniciados, nos cobrimos de liturgia para adentrar, como, por exemplo, esfriamos nossos corpos quando chegamos da rua, tomamos banho, trocamos de roupa para, aí sim, podermos adentrá-los. Nessa noite de terror, na semana passada, esses espaços foram violados por coturnos e fuzis”, declara.

 

“Situações de violência e desrespeito como essa a qual foram submetidas essas comunidades, trazem à tona, mais uma vez, o fato de que as religiões de matrizes africanas são o principal alvo da intolerância religiosa. Podemos afirmar que as causas fundamentais para esse comportamento é o racismo que desumaniza o povo negro e traz o discurso que alimenta no imaginário da população de que as religiões afro-brasileiras são maléficas e que estão ligadas a rituais diabólicos e de morte. É preciso dar um basta a ações como essas. É preciso pôr em prática a condição de Estado laico que respeita e protege a liberdade de credo de cada cidadã e cidadão brasileiro!”, afirma Márcia Gilda Moreira Cosme, coordenadora da Secretaria de Raça e Sexualidade do Sinpro-DF.

 

Confira, a seguir o manifesto e o abaixo-assinado.

 

Manifesto das Comunidades Tradicionais de Terreiro em Denúncia aos Atos de Racismo e Intolerância Religiosa

As autoridades afro tradicionais e organizações representativas dos povos tradicionais de Matriz Africana, abaixo assinadas, vem a público manifestar seu repúdio aos violentos ataques racistas praticados contra as casas de matrizes africanas na Região de Aguas Lindas, Girassol, Cocalzinho e Edilândia em Goiás, na tentativa de nos vincular ao foragido conhecido como Lázaro e aos crimes a ele atribuído.

 

Consideramos intoleráveis as invasões e abordagens policiais truculentas injustificadas, bem como a campanha difamatória propagada por diversos veículos de comunicação.

 

Afirmamos veementemente que nossas tradições não têm relação com atos criminosos, e, mesmo que fossem praticados por alguma pessoa que pertencesse a uma tradição afro, não nos vincularia de maneira coletiva a atos e ações criminosas e desumanas. Estes atos devem ser sempre atribuídos pela lei à pessoa civil.

Entretanto estamos sendo atacados de maneira vil e racista sob o falso pretexto de estarmos servindo de abrigo ao foragido.

 

São graves os relatos de depredação dos nossos territórios mediante intimidação e agressões físicas.

As imagens dos alegados “rituais satânicos” que estão sendo divulgadas pela mídia foram produzidas pela própria polícia durante uma invasão e quebra das portas de umas de nossas casas.

O que de fato estas imagens retratam são elementos sagrados de nossas divindades, especificamente ligadas ao culto ao Orixá Exu e aos exus guardiães de Umbanda. Estes apetrechos nunca pertenceram ao procurado e nem tampouco guardam relação com o satanismo, referência que não faz parte da cosmogonia e mitologia afro.

Trata-se de um vilipendio ao nosso culto e aos nossos valores civilizatórios, sendo, inclusive registrado o Boletim de Ocorrência nº 19925673, Estado de Goiás, Secretaria de Segurança Pública, em 18/06/2021.

 

Quando uma de nossas comunidades é atacada todas se sentem igualmente agredidas. Nossa visão de mundo, nossos princípios e valores civilizatórios merecem respeito.

Tamanha violência só se torna possível fundamentada no racismo estrutural presente em nossa sociedade. E por razão deste todos os nossos símbolos e vivencias continuam sendo alvo de diversas violações.

 

Exigimos que o assédio e violação dos nossos espaços cessem imediatamente com a apuração e responsabilização das forças policiais pelas agressões a nós impostas.

 

Exigimos que os Estado Brasileiro, laico em sua constituição, garanta a liberdade e integridade dos nossos territórios tradicionais, liturgias e referenciais de mundo afro centradas.

 

Exigimos também que os meios de comunicação de massa param de vincular ideias negativas e criminosas a nossas casas e tradições, inclusive com a divulgação deste manifesto.

 

Apoiamos o esforço policial em consonância com os ditames legais na garantia da segurança de toda sociedade, respeitando toda nossa diversidade, no efetivo cumprimento do dever que lhe é imposto.

 

Por fim, nos solidarizamos com as vítimas e familiares dos acontecimentos brutais tão amplamente divulgados e nos colocamos à disposição para quaisquer esclarecimentos e apoio à toda sociedade.

 

Que seja feita justiça! Reparação já

 

ASSINE O MANIFESTO:

 

https://www.abaixoassinado.org/abaixoassinados/53877

 
 

MATÉRIA EM LIBRAS