Os perigos da BNCC e das diretrizes curriculares articuladas à reforma do Ensino Médio

Por Berenice Darc*

 “O que me surpreende na aplicação de uma educação realmente libertadora é o medo da liberdade”. Paulo Freire

Elaborada sob a desculpa de adequar o ensino médio às aspirações da juventude e ao mundo do trabalho, bem como assegurar a permanência dos estudantes na escola, a reforma foi na verdade, elaborada e pautada pela desigualdade, à medida que instituiu processos de formação diferenciado, negando diálogos e as práticas democráticas como método de construção das políticas públicas. Ensaiada a tramitação no Congresso Nacional em 2016, a famigerada Reforma do Ensino Médio avança a passos largos.

Implantada por meio de uma Medida Provisória-MP 476/2016, a reforma rompe com a horizontalidade que permeava a formulação das políticas educacionais garantidas na Constituição Federal e amplamente experimentadas a partir do ano 2000.  Não por acaso, tanto a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), quanto às Diretrizes Curriculares do Ensino Médio Têm como objetivo corroborar com o caráter elitista da educação brasileira, fomentando a educação destinada às elites como modelo único em detrimento da educação que busca formar o indivíduo com a noção clara de cidadania.

Aprovada pelo Conselho Nacional de Educação (CNE) em 5 de dezembro, a BNCC deverá ser implementada até 2022. Irresponsavelmente, a proposta define o conteúdo mínimo que os estudantes de ensino médio devem aprender em sala de aula, reduzindo a formação acadêmica, desobrigando e /ou “ facultando” o acesso aos conteúdos fundamentais para o desenvolvimento integral dos estudantes. Isso porque a medida define que o currículo escolar deve ser composto por habilidades e competências definidas em duas dimensões: formação geral básica e itinerários formativos.

Estes itinerários serão percorridos pelos estudantes de acordo com a oferta, podendo o aluno fazer mais de um itinerário dentre cinco, enquanto que ao município cabe a oferta de no mínimo dois deles. Trocando em miúdos, a BNCC estipula que apenas matemática e português são conteúdos obrigatórios, todos os demais conhecimentos compõem o escopo dos itinerários formativos. Desta maneira, cria-se alunos mão-de-obra para o mercado de trabalho apenas com formação técnica e profissional.

“2019 exigirá do conjunto da sociedade um esforço coletivo para que possamos assegurar uma escola pública, democrática, gratuita, laica e inclusiva.” À primeira vista a ideia pode até parecer boa, ao remeter ao discente a definição por quais itinerários pretende construir sua trajetória acadêmica. Imagina-se que desta forma caracteriza o exercício da democracia, tão desejável nas práticas sociais. Porém, se levar em conta as profundas desigualdades sociais, a escolha pelo mínimo de conteúdo a ser cursado, fatalmente fará injustiça aos menos favorecidos ante ao modelo mercadológico com base na meritocracia, comprometendo de vez a qualidade do ensino e a formação do indivíduo.

Ao optar pela escolha mínima, a oferta também será mínima, dada a diferença de condições face aos itinerários distintos para cada região, portanto, cria-se dois projetos de educação: em regiões pobres itinerários reduzidos; enquanto que em regiões ricas uma oferta ampla e diversificada.O escopo de uma formação básica passa por quatro eixos, os quais devem ser trabalhados transversal e interdisciplinarmente: 1- Investigação científica; 2- processos criativos; 3- mediação e intervenção sociocultural; 4- empreendedorismo.

A subtração de qualquer uma dessas dimensões representa a fragilização da formação acadêmica e rompe com a perspectiva emancipatória da educação. Outro aspecto a ser considerado quanto à análise das políticas educacionais em curso, especialmente a partir da Reforma do ensino médio, é o caráter fragmentado das medidas. O fato da BNCC do ensino médio ser estruturada apartada do que foi desenvolvido no âmbito da educação infantil e do ensino fundamental, fratura o processo de formação na educação básica, ferindo seriamente a concepção de totalidade que esse nível educacional estabeleceu desde a Constituição de 1988, corroborada pela Lei de Diretrizes e Bases (LDB) de 1996.

Diante do que está sendo apresentado, a Câmara de Educação Básica do CNE confirma a perspectiva privatista ao traçar que até 20% do ensino médio diurno poderá ser realizado pela modalidade à distância (EaD), enquanto que no turno noturno poderá atingir até 30% da carga horária e chegando à 80% nos casos da Educação de Jovens e Adultos (EJA). A possibilidade de oferta do Ensino Médio à distância revela o caráter excludente das políticas educacionais em curso. Considerando as desigualdades presentes na sociedade brasileira evidenciadas em escolas com estruturas diferentes, onde as logísticas pauperizadas estão situadas nos espaços mais despossuídos de recursos econômicos do país, há que se prever que a opção pela oferta à distância, por meio de conglomerados educacionais de EaD deverá ser a tônica de muitos municípios.

Como pensar o que deve ser ensinado e aprendido no ensino médio sem levar em consideração o aprendido no ensino fundamental e vice-versa.  Ao separar estas etapas, corre-se o risco de se produzir um uma formação fragmentada e desconexa. Uma formação parcelar que interessa diretamente ao sistema de produção capitalista, a quem não importa a formação que oportunize aos (as) trabalhadores (as), a compreensão total do processo produtivo, mas tão somente das tarefas específicas que se lhes competem na engrenagem produtiva.

Não é à toa que a discussão sobre a BNCC e sobre as diretrizes ocorreram concomitantes ao acirrado debate do Escola Sem Partido que, simboliza o amordaçamento da educação, a quebra da autonomia das escolas e impede o debate plural de ideias e também da discussão de gênero. O ano de 2019 exigirá do conjunto da sociedade um esforço coletivo para que possamos assegurar uma escola pública, democrática, gratuita, laica e inclusiva. Pretendem colocar em curso uma política educacional tão excludente que se assemelhada a que era desenvolvida na primeira metade do século passado, inviabilizando o debate e qualquer possibilidade de formulação crítica sobre o processo em curso. O arbítrio face ao amordaçamento de professores e estudantes é a pedra angular para materializar essa política de retrocesso.

*Berenice D’arc – Diretora Executiva da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação CNTE e coordenadora da Secretaria de Política Educacional – Sinpro-DF.