O difícil golpe dos sonhos de Bolsonaro

Mais uma vez um Bolsonaro acuado ameaça com o fechamento do regime. Pressionado pelo agravamento da pandemia, aprofundamento da crise econômica e perda de popularidade o presidente sonha e se movimenta na tentativa de dar um golpe de Estado, nos moldes do autogolpe de Fujimori no Peru em 1992.

 

Esse parece ser o desejo de Bolsonaro e de importantes apoiadores, como o pastor Silas Malafaia e o ideólogo Olavo de Carvalho, que pedem ao presidente que convoque as Forças Armadas para “estabelecer lei e ordem” e “extinguir os partidos políticos”.

 

Por mais que tenhamos que nos preocupar e denunciar essa escalada golpista, se analisarmos a conjuntura realizando uma análise de conjuntura materialista e um comparativo histórico com a ditadura que se instalou em 1964 e os golpes contemporâneos em outros países, veremos que não é tão simples dar um golpe de Estado. Mais difícil ainda é mantê-lo.

 

Em 1964, durante a Guerra Fria, os militares deram um golpe com o apoio das elites econômicas nacionais, dos grandes veículos de mídia, de boa parte das elites políticas estaduais (especialmente dos governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais) e do governo dos Estados Unidos da América. A isso somou-se o apoio de setores religiosos que ocuparam as ruas do país com a Marcha da Família com Deus pela Liberdade.

 

Ao longo do tempo a corrosão destas bases de apoio por diversos motivos minou a sustentação da ditadura militar. Os militares alijaram do poder boa parte das elites políticas civis, perderam o apoio incondicional do governo dos EUA durante o mandato Carter, viram uma erosão do apoio entre os setores médios empobrecidos e passaram a sofrer questionamentos crescentes oriundos da Igreja Católica.

 

Em 2019, na Bolívia, vimos um golpe com a participação das elites, das Forças Armadas e da polícia, assim como de milicianos e setores evangélicos. Golpe prontamente reconhecido como legítimo por Donald Trump e Bolsonaro. A direita boliviana conseguiu tomar o poder com a bíblia nas mãos, mas não conseguiu mantê-lo. Após diversos casos de repressão e de tentativas de cancelamento ou adiamento das eleições, o povo resistiu nas ruas e nas eleições de 2020 recolocaram o Movimento ao Socialismo no governo e os golpistas na cadeia.

 

Mesmo que Bolsonaro tenha o apoio de ideólogos de extrema-direita, de importantes lideranças evangélicas, de setores das Forças Armadas e polícias para dar um golpe e instalar uma ditadura, isto não parece ser suficiente no Brasil de 2021.

 

  • A maior parte da população é contra.
  • A maior parte da grande mídia seria contra uma ação deste tipo. Mesmo que não tenha mais a força de antes, ela segue relevante;
  • O governo Biden seria contra.
  • As novas mídias são relevantes, e a extrema-direita tem muita força nelas com o Gabinete do Ódio. Mas não seriam suficientes para sustentar uma ação deste tipo sem o apoio do Departamento de Estado dos EUA, já que a maioria destas empresas são estadunidenses.
  • Governos da América Latina, Europa, África e Ásia seriam contrários. Este golpe contaria com o reconhecimento de quem? Da Hungria, Ucrânia e Polônia?
  • Poucos governadores apoiariam, especialmente dos estados com as maiores economias e populações. Na última reunião com governadores Bolsonaro conseguiu reunir apenas sete (o que não significa que estes apoiariam um golpe).
  • As manifestações bolsonaristas, ainda que possuam um número não desprezível de participantes, não chegam perto daquelas de 1964 nem de 2015/2016.
  • A elite econômica nacional, a burguesia, está dividida e não parece animada em seguir por este rumo.
  • Os altos oficiais das Forças Armadas não parecem unidos para tal ação. Não por republicanismo ou defesa da democracia, mais provável que por puro cálculo político. Não entrariam em tal “aventura” sem a certeza de apoios mais amplos e sólidos e a certeza de uma vitória de longo prazo.

 

Sobre as elites econômicas, podemos perceber que a maioria se encontra calada. Bolsonaro executa boa parte de sua agenda com a retirada de direitos dos trabalhadores. Uma parte segue apoiando o presidente, e é provável que siga apoiando até mesmo nas eleições de 2022. Mas não a ponto de apoiar um golpe. Outra parte minoritária composta de setores barulhentos como o dono da Havan ou do Madero não chegam a configurar lideranças da classe dominante.

 

É uma conta de difícil equação fazer um golpe com a participação de militares de baixa patente, policiais, milicianos e pastores evangélicos, mas sem contar com unidade nas Forças Armadas, na classe dominante, contra a opinião da maioria do povo brasileiro, da opinião pública internacional, da mídia, de vários setores organizados da sociedade e das elites políticas, sem respaldo internacional. Pode até dar certo num curtíssimo espaço de tempo, mas os golpistas correriam o risco de, num breve espaço de tempo, ir parar na cadeia assim como ocorreu na Bolívia.

 

Mesmo a profundidade do apoio das polícias estaduais permanece uma incógnita. As duas últimas grandes tentativas de sublevação bolsonarista de forças policiais contra os governos estaduais não tiveram êxito. O motim do Ceará de 2020 não conseguiu dobrar o governo estadual. Em 28 de março de 2021, após o ataque do Farol da Barra em Salvador, as redes bolsonaristas tentaram converter o fato em um amplo motim dos policiais do estado, mas não obtiveram sucesso. Entre votar em Bolsonaro e se dispor a colocar a vida em risco num golpe paramilitar há uma grande distância.

 

A reforma ministerial feita por Bolsonaro é o maior exemplo de seu isolamento político. Caso tivesse força suficiente para executar um golpe ele não necessitaria abrir mão de Ernesto Araújo, ministro das relações exteriores que representava a ala dos seguidores de Olavo de Carvalho. Setor este que se encontra bastante descontente com esse afastamento, vide posicionamentos críticos nas redes sociais.

 

 

 

Tampouco seria necessário mudar o Ministério da Defesa e o comando das três Forças Armadas. Teorias da conspiração à parte, se Bolsonaro tivesse o efetivo comando e obediência cega dos antigos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica ele não precisaria substituí-los. E somente uma substituição não irá resolver seu problema, já que os militares não costumam agir se sentirem que são minoria dentro da caserna. Não basta ter o comando das Forças, seria preciso ter maioria no alto comando.

 

A nomeação de Flávia Arruda para ministra da Secretaria de Governo é um movimento de composição com o chamado “centrão”. Bolsonaro não precisaria comprar esse setor do Congresso se tivesse força suficiente para simplesmente fechá-lo.

 

Não são movimentações contraditórias. Bolsonaro busca ao mesmo tempo garantir sustentabilidade parlamentar e manter animada sua base ideológica mais extremista, que efetivamente perde espaço no primeiro escalão com a saída de Araújo. Ele precisa manter esse setor ativo nas ruas e nas redes. Provável que siga nesta estratégia e que tente inflamar cada vez mais o extremismo golpista de suas bases. Pode não conseguir consolidar um golpe, mas é suficiente para enfraquecer a democracia e colocar fogo no país.

 

Não basta apenas abaixar a guarda e ficarmos tranquilos com as dificuldades e divisões entre o governo e as elites. É preciso avançar na denúncia deste governo genocida, na organização da oposição de esquerda e no diálogo com o povo sobre alternativas de saída popular deste cenário caótico.

 

Yuri Soares Franco

Mestre em História pela Universidade de Brasília