Nota do FNPE sobre a militarização das escolas públicas no Brasil

O Fórum Nacional Popular de Educação (FNPE) – colegiado auto organizado constituído por 35 instituições representativas da sociedade civil, movimentos populares, sindicais, estudantis, científicos e de trabalhadores vinculados à educação – vem a público manifestar seu repúdio à política de militarização de escolas públicas no Brasil. A militarização das escolas públicas começa em meados da década de 1990, intensificou-se a partir de 2012 e tem, nos últimos dois anos, seu maior pico de expansão. Com processos distintos por unidade da federação, a militarização ocorre por meio de convênios e parcerias entre as secretarias de educação e de segurança pública e os comandos das polícias militares ou corpos de bombeiros, para implantar nas escolas civis públicas a chamada “metodologia de ensino” dos colégios da Polícia Militar. Ocorre ainda, por meio da compra de serviços de grupos privados com participação de policiais aposentados ou da reserva, que vendem para as secretarias municipais de educação essa “metodologia de ensino”. A partir 2019 outras formas de militarização vão acontecendo com a atuação do governo federal em favor de implementação das chamadas escolas cívico-militares.

Esse processo faz com que militares das diferentes polícias (Exército, Civil e Militar) e corpos de bombeiros, adentrem às escolas civis públicas, nas funções de diretores administrativo, pedagógico ou disciplinar, além de monitores ou instrutores dos estudantes. Essa atuação reorganiza o trabalho pedagógico imprimindo práticas desenvolvidas nos quartéis, hierarquia, disciplina subserviente, ritos militares, uniformização e apagamento das subjetividades, obrigando que todos/as estudantes se portem da mesma forma, usem penteados e cortes de cabelos iguais e batam continência. As justificativas utilizadas pelos governos para implementar a militarização são comuns, destacando-se: a) “baixa qualidade educacional” oferecida nas escolas públicas e a necessidade de melhoria dos índices educacionais; b) combate a violência; c) valorização do discurso militar da disciplina, hierarquia, ordem, respeito e controle; d) criminalização da pobreza; e) desvalorização da escola pública e da gestão democrática.

A baixa qualidade educacional arguida é aferida em taxas mais altas de reprovação, menor proficiência em testes de larga escala e menor Índice de Desenvolvimento da Educação Básica – IDEB. O FNPE contesta esse primeiro argumento. Há densa literatura nacional e internacional indicando que não há nenhum país bem-sucedido em educação que não cruze os indicadores das escolas com informações socioeconômicas – desigualdade social, escolaridade e ocupação dos pais, renda, gênero, raça, condições materiais da unidade escolar, custo-aluno do sistema, formação e salário dos profissionais – que contextualizam e permitem mediar a compreensão do complexo fenômeno educacional sem simplificações maniqueístas. A comparação pura e simples de resultados, sem considerar esses elementos é desonesta e resvala, quase sempre, na falácia de responsabilizar os profissionais da educação ou os estudantes e suas famílias pelo “fracasso escolar”. Do mesmo modo é equivocado atribuir o bom desempenho dos genuínos colégios militares do Exército apenas ao ideário militarista desconsiderando as especiais condições dessa oferta educacional: custo aluno maior, no mínimo quatro vezes o custo médio nacional; maiores salários compatíveis com a formação dos profissionais da educação; seleção do público atendido; oferta de educação integral; excelente infraestrutura, equipamentos, tecnologia, laboratórios.
O argumento da qualidade diz respeito, primeiramente, às questões educacionais, o uso da violência como recurso pedagógico está vinculado à narrativa conservador-moralista filiada ao discurso de ódio reverberado para dar o golpe na democracia e no povo brasileiro. A criminalização da pobreza naturaliza dinâmicas sociais e econômicas, legitima a ação letal das polícias e o extermínio da população jovem, muitos dos quais assassinados pela mesma polícia considerada pelos governos como a melhor escolha para educar. O imenso quantitativo de crianças, adolescentes e jovens pobres do Brasil está nas escolas públicas. Em 2018 havia 17,62 milhões de estudantes oficialmente pobres dentre os 35 milhões de estudantes da educação básica invisíveis às práticas escolares militarizadas.

Sob a perspectiva da militarização, as conquistas identitárias recentes de gênero, raça-etnia, cultura e geração – construídas na sociabilidade democrática do período de redemocratização e robustecidas na também democrática gestão da escola – precisam ser silenciadas. O espírito conservador das corporações militares requer estudantes a sua imagem e semelhança, obedientes e que acatem ordens. Nas escolas militarizadas as marcas identitárias são compreendidas como subversão e a condição ontológica de gênero, raça-etnia, classe social e território deve ser novamente invisibilizada. É um ataque às subjetividades e ao pertencimento que se contrapõe a estética identitária e visa o apagamento de sua força e filiação. Ataque legitimado por um discurso militarista equivocado de disciplina, hierarquia, ordem, respeito e padronização.

Frente a esse processo acelerado de militarização, convém ressaltar que não há amparo legal na legislação educacional brasileira, tanto na Constituição Federal de 1998 quanto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e no Plano Nacional de Educação (2014-2024). Assim como não há previsão legal para a atuação de policiais em funções nas instituições escolares, nem para o fechamento de turmas de EJAIT imposto a escolas militarizadas em alguns Estados – negando a jovens, adultos e idosos trabalhadores o direito que tiveram violado anteriormente. Toda a literatura educacional produzida indica que o processo de militarização está na contramão do direito conquistado e no disposto na legislação. A escola pública, fruto de muita luta dos trabalhadores e estudantes, é prevista nesses marcos legais como plural, democrática, pública, universal, laica, gratuita, de qualidade socialmente referenciada que reconhece e valoriza nossa diversidade. Ao entregar as escolas para as polícias – que não tem formação para educar – impõe-se o apagamento da identidade dos jovens e adolescentes; criminaliza-se estudantes, comunidades e territórios empobrecidos; e, amordaçam-se as múltiplas vozes que constituem nosso povo e que denunciam, a plena voz, a injustiça social e a necessária positivação de direitos que exigimos.

Desse modo o FNPE conclui manifestando-se radicalmente contrário à militarização de escolas públicas e volta a defender:

1. a aprovação do FUNDEB permanente com aporte da União de 40% – excluídos desse percentual os recursos do salário educação – capaz de financiar o custo-aluno qualidade e construir a escola pública universal, gratuita, laica, civil e de qualidade socialmente referenciada;
2. a escola pública como espaço universal do exercício democrático de diálogo, pautada por relações horizontais, organização livre dos estudantes, que acolhe e valoriza as marcas éticas, estéticas e identitárias de raça-etnia, cultura, território, gênero e sexualidade;
3. o reconhecimento de nossa abissal desigualdade e pobreza, acompanhado da necessária positivação dos direitos pactuados na nossa constituição federal que se consolidam no correto financiamento e na prestação de serviços públicos de qualidade a todos e todas, indistintamente;
4. a defesa do Plano Nacional de Educação, com suas metas e estratégias interdependentes, como norte orientador para o alcance da qualidade educacional almejada.

Como afirmou Anísio Teixeira, a escola pública é a máquina de fazer democracia. Não permitiremos o silenciamento de profissionais, adolescentes e jovens em um dos últimos espaços públicos e comunitários que restam. Conclamamos todos e todas que defendem a escola pública e democrática para irem às ruas de todo o país no dia 18 de março em defesa da educação pública.

Brasília, 29 de fevereiro de 2020.

FÓRUM NACIONAL POPULAR DE EDUCAÇÃO