Morte matada ou morrida: a imprensa brasileira e o feminicídio

Na noite desta quarta-feira (28/6) a Secretaria de Mulheres Educadoras do Sinpro realizou uma noite de debates com as autoras do livro Histórias de Morte Matada Contadas Feito Morte Morrida, Niara de Oliveira e Vanessa Rodrigues.

As duas jornalistas estiveram ontem no auditório do Sinpro para conversar sobre o livro, o primeiro que escreveram em parceria e que foi finalista do prêmio Jabuti 2022.

No evento, mediado pelas diretoras da secretaria de mulheres educadoras do Sinpro, Mônica Caldeira, Regina Célia e Silvana Fernandes, Niara e Vanessa contaram que o machismo está tão entranhado na sociedade que a forma como a imprensa cobre os feminicídios não só reflete esse machismo como contraria os principais manuais de redação e estilo dos jornais.

As autoras mergulharam em matérias publicadas, nos últimos 40 anos, sobre o assassinato de mulheres por motivações misóginas, incluindo casos como os de Ângela Diniz e Eliane de Grammont, até Sandra Gomide, Eloá Pimentel, Eliza Samudio, Viviane do Amaral, Viviane Sptinizer, Patrícia Accioli, Marielle Franco e outras vítimas de menor repercussão, mas com igual importância.

No dia do orgulho LGBTQIA+, as autoras ainda revelaram que, se o feminicídio de mulheres cis é subnotificado pela polícia e pelas secretarias de segurança Brasil afora, o feminicídio de mulheres trans é ainda mais invisibilizado, pois quase nunca se credita a morte de uma mulher trans como feminicídio.

Segundo as autoras, existem dois artifícios que são praticamente clichê na construção de textos jornalísticos sobre feminicídios. Um é a corresponsabilização: a mulher também tem um pouco de culpa por sua própria morte. O ciúme do (ex-)parceiro explica, “desculpa” tudo e acaba por amenizar a responsabilidade do assassino.

O outro artifício é sintático. O feminicídio é comumente contado na voz passiva. Assim, o sujeito “Mulher morta” é muito mais comum do que “Homem mata mulher”. Esse artifício destaca dá o protagonismo da história à mulher, e “apaga” a importância do causador de sua morte – e é um dos motivos do título do livro, que destaca duas construções no particípio passado (matada e morrida).

Além disso, a vítima do feminicídio é muitas vezes colocada sob uma lupa moral, o que inclui desde a foto que estampa a matéria até a falta de busca por informações mais profundas sobre a história de vida dessa mulher assassinada. Para as autoras, é como se redações de imprensa de norte a sul do país seguissem um manual de redação informal, não escrito, sobre como fazer a cobertura dos casos de feminicídio.

Durante os debates, as professoras presentes contaram que o machismo está presente nas crianças, desde a mais tenra idade. E que trabalhar a forma como as crianças veem o mundo é primordial. A autora Niara de Oliveira lembrou: “a escola é onde se percebem os primeiros indícios de violência doméstica. As professoras devem estar preparadas para lidar com isso, seja do ponto de vista pedagógico, seja do ponto de vista profissional.”

Outra professora contou que “um dia eu me vi sentada à mesa com cinco mulheres. Pela conversa, percebi que eu era a única a não ter sofrido violência de marido ou namorado – porque nunca me casei!” Vanessa Rodrigues aproveitou a fala dessa professora e complementou: “enquanto a imprensa brasileira escolher, deliberadamente, contar a história de um feminicídio a partir da ótica do ‘foi por ciúmes’, não veremos um ‘ela foi vítima do machismo da sociedade’”.

“Cada capítulo desse livro fustiga a leitora. O texto, a forma como Niara e Vanessa escrevem, é uma grande epifania. Esse é o tipo de livro que faz pensar. Faz pensar em aulas, em seminários, em alunos e alunas, em nossa postura diante da sala de aula… simplesmente fundamental para vencermos o machismo tão entranhado na sociedade”, disse a coordenadora da secretaria de mulheres educadoras, Monica Caldeira.

O livro, totalmente produzido por mulheres, está disponível no site da Drops Editora por R$ 55,00.

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