Maria Rita Kehl: nada justifica um golpe no Brasil

Roberto Parizotti

Nada justifica um golpe no Brasil, nem de direita e nem de esquerda, mas a possibilidade de isso ocorrer assanha setores conservadores, até então desconhecidos, e que hoje se sentem à vontade para pedir a volta dos militares. Com isso, demonstram, inclusive, desconhecimento sobre a ditadura militar e os casos de corrupção que assolaram os governo nos anos de chumbo.
A opinião é de Maria Rita Khel, psicanalista, especialista em Psicologia pela PUC-SP, ensaísta e jornalista, e que foi indicada, em 2010, pela presidenta Dilma Rousseff para integrar a Comissão Nacional da Verdade, que investigou os crimes durante o período da ditadura.
Nesta semana ela recebeu a reportagem do Portal da CUT em seu consultório, no bairro de Perdizes, em São Paulo, e demonstrou preocupação com o cenário político: “Esse é o pior momento que vivemos, com esse atual presidente da Câmara dos Deputados”, enfatiza.
A autora do livro “Ressentimento” (editora Casa do Psicólogo), que aborda quatro pontos de vista diferentes – na clínica psicanalítica, na produção literária, nos movimentos sociais e na filosofia, analisa o avanço do ódio e do conservadorismo no país. Veja a entrevista a seguir:
Como você avalia esse momento da conjuntura política em que setores conservadores de direita avançam e pedem o impeachment da presidenta Dilma?
Eu tenho tanto medo dessa onda conservadora que está na sociedade que não consigo dizer se vai ou não ter impeachment, porque o medo me impede de enxergar claramente a conjuntura.  O fato do Eduardo Cunha estar na operação Lava Jato, quer dizer, isso que é triste, porque não podemos contar com a sociedade para defender o governo. Quem está mobilizado nesse momento é a direita pelas redes sociais e pelo descontentamento que já vinha desde o governo Lula, mas que estava em minoria por não querer o governo do PT, além de estarem mobilizados pela crise econômica. Isso, não é absurdo que, quando os governos de esquerda, mesmo que sejam moderados, estão no poder, quem está insatisfeito é a direita, então é ela quem vai pra rua. Só que esse governo de esquerda não criou base de esquerda, pois fez tanta concessão com a direita que ficou atordoado.
Outra coisa que também criticamos [do Lula] foi a coalizão com o PMBD, embora o PMDB no período militar tenha sido um partido valoroso – porque o MDB foi um partido que teve elementos valorosos de oposição e, quando virou o PMDB, principalmente depois das alianças com os governos petistas, vira um partido ônibus: entra quem quer. Esse é o pior momento com o atual presidente da Câmara, Eduardo Cunha. O PMDB quer estar perto do poder, seja ele qual for. Se naquele momento o Executivo tivesse colocado limite nas reivindicações, o PMDB não iria deixar de apoiar e nem virar oposição. Tanto que ele só vira oposição hoje porque o governo está desprestigiado por conta de uma crise econômica. Quer dizer, é um partido sem moral, sem fibra. É fácil virar oposição e ficar chantageando a presidenta, no entanto, quando Lula estava forte, era a hora de ter barrado e não barrou.
Mesmo não havendo fundamentação jurídica para o afastamento da presidenta Dilma alguns especialistas afirmam que pode acontecer. Podemos falar em golpe?
Se não há fundamentação, quer dizer que vai existir? Não tem elementos. Vai trazer o exército? Eu não sei se a imprensa espelha algo que está acontecendo no país. Acho a democracia um valor inestimável, temos que preservá-la, defendê-la sempre de qualquer maneira. Nada justifica um golpe, nem de direita e nem de esquerda, um golpe que suprime a democracia, que suprime a liberdade. Há uma retomada do conservadorismo, inclusive uma direita pra lá de conservadora que pede a volta dos militares. Isso é de uma ignorância, é como se os militares viessem colocar a ordem na casa.  A corrupção endêmica começa na ditadura porque não havia notícia, nem imprensa livre e nas estatais permitia-se que se metesse a mão. A sociedade brasileira nunca conseguiu erradicar a corrupção, inclusive a corrupção nas grandes estatais começa ali. Mas no ponto que nos dói mais, há uma responsabilidade do PT, nessa despolitização da sociedade brasileira.
E como você avalia o comportamento da mídia nesse processo?
A mídia é conservadora, no entanto, a imprensa, as televisões, o patrão deles não é só o dono da empresa, o patrão deles são os leitores e os telespectadores. Se a imprensa fica mais conservadora é porque esses leitores estão mais conservadores, uma coisa alimenta a outra. A Folha de S. Paulo no final dos anos 1970 virou uma imprensa progressista quando a grande parte da sociedade brasileira estava contra a ditadura. Na ditadura, a Comissão Nacional da Verdade não conseguiu comprovar isso e não lembro se está anexo dos relatórios; dizia-se que Octávio Frias [morto em 2007] emprestava os carros pra levar presos ou cadáveres. Então, não é que eles eram contra a ditadura por princípios, mas quando foi crescendo a onda de insatisfação no país pelos militares, a imprensa se coloca contra. Não dá para saber quem vem primeiro, se é o ovo ou a galinha.
Há uma torcida [por parte da mídia] contra o atual governo?
É claro que tem uma torcida contra o governo do PT. Eu não acho que a imprensa seja golpista, ela é de direita, conservadora. Naquela outra passeata da direita [15 de março deste ano] a estimativa da Globo era de 1 milhão de pessoas e a PM, que é PM, falou em duzentas mil e olhe lá . Nós [esquerda] temos que fazer crescer o Brasil de Fato, o Portal da CUT, a TVT e a imprensa de esquerda.
A Câmara dos Deputados, sob comando de Eduardo Cunha, tem colocado pautas que vão contra os direitos dos trabalhadores e contra os direitos humanos, como é o caso da terceirização, do financiamento empresarial de campanha, da maioridade penal e da PEC 451, que viola o direito à saúde, entre outras.  Qual sua avaliação sobre isso?
O que eu posso dizer desse Congresso? No caso das igrejas evangélicas não sei analisar o crescimento delas, eu respeito as religiões que vieram do protestantismo  de Lutero, mas é claro que essa bancada é uma bancada mais conservadora. Avaliar o Congresso nesse momento é me pedir pra dizer um monte de palavrão porque é uma decepção gigantesca, porém a sociedade votou nesses representantes. Eduardo Cunha é uma pessoa que não se detém diante do apelo ao bom senso, da moralidade. Ele tem um projeto pessoal, manipula fortemente, não sei em que base ele manipula, me parece que tem uma prática mafiosa, isso é o que os jornais dizem.
Podemos falar que o Brasil está passando por uma crise institucional, uma falência na representatividade dos partidos políticos?
Eu gostaria de poder dizer que há uma falência, e que os partidos não representam a sociedade brasileira, mas eu posso está errada porque os partidos talvez representem a sociedade brasileira. Talvez a sociedade brasileira esteja num retrocesso conservador, já que ela tem uma tendência conservadora. O Brasil foi o último país livre dos países do ocidente a abolir a escravidão.  Foi uma elite que deitou na sopa porque os outros países já tinham abolido, e que só deixou de ser porque se tornou economicamente inviável por uma elite cafeeira e canavieira.
Nas duas ditaduras que tivemos aqui, a oposição foi fraca. Se considerarmos a oposição à ditadura Argentina, Chilena e Uruguaia, não é que lá houve muito mortos e muitos mais presos, porque as ditaduras eram brutais – aqui houve menos porque teve menos oposição. A questão é que a passeata dos cem mil em apoio ao Jango foi superada pela Marcha da Família com Deus pela Liberdade. A sociedade do Brasil na sua formação socioeconômica é conservadora. Muitas mudanças progressistas foram efeitos de arranjos da elite, porque não valiam mais à pena como é o caso da escravidão e da República. E, mesmo assim, no caso da República o primeiro grande ato qual foi? Reprimir Canudos de uma maneira horrorosa e violentíssima. Então, tem um conservadorismo aqui, principalmente com os pobres, com os quilombolas, camponeses.