Luta pela memória está nas mãos da sociedade civil, afirma integrante da Comissão da Verdade

Criada oficialmente em 2012, a Comissão Nacional da Verdade (CNV) entregou seu relatório final, contendo diversas recomendações, no final do ano passado. Para Maria Rita Kehl, psicanalista e uma das integrantes do grupo, para que os esforços em prol da Memória e Verdade se concretizem no Brasil, a sociedade civil deve pressionar o pode público.

Kehl participou de um debate promovido pela Associação dos Amigos da Escola Nacional Florestan Fernandes (ENFF), no último sábado (27). Também estava na mesa Maurice Pontili, ex-preso político e membro do Núcleo de Preservação da Memória Política. O encontro foi mediado Aton Fon Filho, advogado da Rede Social de Justiça e Direitos Humanos e também ex-preso político.

Maria Rita Kehl | Foto: Rafael Stedile

Cidadãos de segunda classe

Maria Rita Kehl, em sua fala, lembrou de diversas vítimas “anônimas” da Ditadura Militar brasileira, principalmente indígenas e camponeses. “A quantidade de crimes sem apuração [nesse período] é gigantesca”, disse.

No caso dos camponeses, Kehl afirmou que era “muito claro o conluio do Estado com os grandes proprietários de terra”. Segundo ela, os crimes sequer eram cometidos em propriedades ocupadas por posseiros, mas “nas terras que os proprietários queriam invadir e tomar”.

Lembrando parte de seu trabalho na Comissão, Maria Rita apontou o caso do Reformatório Agrícola Krenak. A unidade se situava na cidade de Resplendor (MG) e, segundo as apurações, funcionou como centro de torturas de indígenas. ( http://www.brasildefato.com.br/node/10854).

Disputas

A psicanalista foi crítica em relação às recomendações do relatório da CNV, “não pelo que está lá, mas pelo que não está”. Kehl afirmou que, internamente, a Comissão se dividiu entre aquelas que defendiam com maior ênfase o conceito de justiça, com punição dos agentes de Estado envolvidos em violações, e os que pendiam para a ideia de conciliação.

“No final, a divisão política se traduziu em uma divisão de gênero. Ficamos Rosa [Maria Cardoso da Cunha] e eu contra os cinco cavalheiros”, afirmou em tom jocoso. Ela ainda lembrou de peculiaridades do caso brasileiro. “Somo o único país latino-americano que anistiou seus torturadores”.

Esse fenômeno teria reflexos no presente: “nossa polícia mata mais na democracia do que na época da Ditadura”. Além dos impactos no cotidiano, apontou desdobramentos políticos: “a demora do Estado brasileiro em assumir essa questão permitiu, por exemplo, que, durante os protestos recentes, pessoas demonstrassem simpatia explícita pela Ditadura, além do retorno de discursos reacionários de parlamentares”.

Futuro

“A não continuidade dos trabalhos da Comissão, tem um aspecto positivo: antes havia a ideia de ‘alguém estava levando o assunto adiante’. Agora, a bola está na mão da sociedade”, disse Kehl.

Maurice Pontili concordou com as análises de Kehl e demonstrou otimismo em relação ao avanço do resgate da memória. Ele lembrou o caso argentino, no qual “se passaram 22 anos sem ninguém tocar no assunto, e hoje vemos oficiais sendo condenados”.

“A memória e a verdade dependem da atuação do poder público, mas também da mobilização da sociedade. As principais recomendações ainda não foram adotas, mas algumas já foram implementadas”, opinou ele.

“Quando vemos o número de pessoas que frequentam o Memorial da Resistência, por exemplo, é animador. Não devemos perder a esperança nunca”, finalizou Pontili.

(Do Brasil de Fato)