Índia: falta de vacina é culpa de impasse criado por Brasil e países ricos

Na busca por se aliar aos interesses dos países ricos, de atender demandas de Donald Trump e em seu sonho de entrar na OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), o governo de Jair Bolsonaro passou os últimos meses atacando a proposta feita pela Índia ainda em 2020 para que patentes (direito de propriedade) sobre vacinas fossem abolidas. Um dos resultados seria permitir que a produção dos imunizantes pudesse ocorrer em laboratórios distribuídos pelo mundo. Agora, Nova Déli diz que é justamente a falta de produção de versões genéricas da vacina contra covid-19 que impede o abastecimento global de um imunizante. Nesta terça-feira, numa reunião fechada na (Organização Mundial do Comércio) em Genebra (Suíça), o representante indiano foi explícito em constatar que o “pior dos pesadelos” se confirmou diante da incapacidade de se encontrar um acordo: não há vacinas para todos. Sabendo de sua vulnerabilidade, o Itamaraty se manteve em silêncio durante a reunião de hoje na OMC, numa posição que se contrasta com os ataques que o governo promoveu desde setembro contra a ideia dos indianos. Mas o Brasil tampouco saiu em defesa do projeto.

 

25.jan.2020 - O presidente Jair Bolsonaro e o primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, em encontro em Nova Déli - Altaf Hussain/Reuters

 

O recuo foi interpretado como um sinal da debilidade em que se encontra o país na busca por vacinas. Elevar o tom das críticas, neste momento, poderia atrasar ainda mais o acesso aos imunizantes e enterraria o país para o final da fila na lista de pedidos que os indianos têm recebido. O silêncio em Genebra ocorreu no mesmo dia em que, no Brasil, Bolsonaro e o chanceler Ernesto Araújo recebiam o embaixador da Índia, Suresh Reddy. Nos últimos meses de 2020, o Itamaraty chegou a ser acusado por ativistas estrangeiros de estar inundando o debate na OMC de perguntas aos indianos como forma de arrastar a negociação e enfraquecer a proposta. O Brasil comprou sua vacina da Oxford/AstraZeneca. Mas o produto é fabricado na Índia. O problema é que, com um governo nacionalista, Nova Déli dificultou a exportação dos imunizantes para permitir que sua campanha de vacinação fosse iniciada. Além disso, os indianos indicaram que vão começar a exportar as doses, mas, num primeiro momento, para seus aliados na região e vizinhos, num gesto geopolítico calculado. O primeiro lote de exportações será enviado para o Butão, ainda na quarta-feira. Um dia depois, dois milhões de doses da vacina também serão enviadas para Bangladesh. Não há uma data para o fornecimento ao Brasil.

 

Sem patentes, países poderiam estar produzindo vacina, defende Índia

Enquanto isso, porém, a Índia alerta que “um grande número de instalações de fabricação em muitos países com capacidade comprovada para produzir vacinas seguras e eficazes são incapazes de utilizar essas capacidades devido a novas barreiras de propriedade intelectual”. Esta é a prova, na opinião da Índia, de que o atual sistema de patentes não é suficiente para atender a enorme demanda global de vacinas e tratamentos.

Segundo o discurso da Índia, o que os países desenvolvidos disseram sobre a suficiência de tais acordos de licenciamento para aumentar as capacidades de fabricação se provou ser insuficiente. As licenças voluntárias, mesmo quando existem, estão envoltas em segredo, os termos e condições não são transparentes e o escopo é limitado a quantidades específicas, ou para um subconjunto limitado de países, encorajando assim o nacionalismo.

Nova Déli ainda colocou dúvidas sobre a capacidade de o mecanismo da OMS (Organização Mundial da Saúde) de distribuir vacinas poder ser uma solução. Países como África do Sul, Afeganistão, Paquistão, Zimbábue, Egito, Mongólia, Chade, Indonésia, Nepal, Bangladesh, Sri Lanka, Camboja e Venezuela também falaram em apoio à proposta. A OMS também é favorável à ideia indiana de quebrar patentes.

 

Brasil abandonou sua posição tradicional

O projeto de democratizar vacinas conta com uma forte rejeição por parte dos países ricos, detentores das patentes. O Brasil, desde o começo do projeto, foi o único país em desenvolvimento a declarar abertamente que era contra a proposta, abandonando anos de liderança internacional para garantir o acesso a remédios aos países mais pobres. Há 20 anos, foi a ação internacional do Brasil que levou a OMC a estabelecer regras para permitir um maior acesso a remédios. Naquele momento, a luta era para enfrentar a aids. A liderança se transformou em um dos maiores ativos da política externa de FHC e Lula. A quebra de patentes acabou ocorrendo num caso, sob a gestão do então ministro da Saúde, José Gomes Temporão. Mas foi o papel assumido pelo governo nas negociações que catapultou o país para um outro patamar no debate internacional. Para rebater os indianos, Europa, Estados Unidos e Japão insistiram que a quebra de patentes não resolveria a questão do abastecimento de matérias-primas. Eles também enfatizaram que o atual sistema contém ferramentas suficientes para resolver quaisquer problemas relacionados à propriedade intelectual e que a implementação da proposta de renúncia minaria os atuais esforços para combater a pandemia. Um dos impactos seria afastar investimentos do setor privado. Esses países observaram que embora haja financiamento público para pesquisa e desenvolvimento, a produção e distribuição das vacinas continua sendo um risco de investimento para o setor privado. 

 

Reprodução: UOL