Homeschooling: parlamentares apresentam projetos de lei para legalizar o abandono intelectual de menores

O homeschooling (educação domiciliar) continua na pauta do Congresso Nacional como tema prioritário da política nacional de educação. Nessa terça-feira (6/7), ganhou um espaço no programa Profissão Repórter, da Rede Globo. A reportagem mostrou que, embora não tenha vazão na sociedade em geral, um grupo pequeno, geralmente ligado a associações de educação privada, atua nos Poderes Legislativos federal, estaduais e municipais para aprovar projetos de lei que buscam legalizar o abandono intelectual e a doutrinação fundamentalista de crianças e adolescentes.

Assunto superado pela Constituição em vigor, o homeschooling volta a incomodar o País juntamente com outros temas também ultrapassados. O homeschooling está no rol de itens da pauta econômica neoliberal, em curso no Brasil, que impede o desenvolvimento e o crescimento do País, tais como a venda da Eletrobrás, dos Correios, a reforma administrativa entre vários outros.

 

O homeschooling (educação domiciliar) vai contra o direito da criança e do adolescente à educação e à sociabilidade. No entanto, embora não encontre apoio na sociedade, tem um forte lobby em curso nos Poderes Legislativos federal, estaduais e municipais.

 

O objetivo é meramente impedir estudantes de menores de idade de usufruírem o direito à educação socialmente referenciada; criar legalidade para mais um canal de desvio de dinheiro público; e fortalecer a Lei da Mordaça (Escola sem Partido), um projeto político-ideológico de um setor privatista que atua na educação e assedia o dinheiro público destinado à Educação pública.

 

Homeschooling no Profissão Repórter

O programa Profissão Repórter, dessa terça-feira (6), mostrou um pouco das articulações recentes, no Congresso Nacional, sobre o projeto de lei da deputada Luisa Canziani (ex-PTB), que regulamenta o ensino domiciliar. O programa acompanhou duas semanas de movimentações políticas para a aprovação da lei que passa a permitir que pais tirem os filhos da escola e os ensinem em casa, mostrou o debate intenso dos parlamentares sobre a aprovação do PL que propõe a regulamentação da educação domiciliar .

 

Na reportagem, foi mostrado, por exemplo, um levantamento da Associação Nacional de Ensino Domiciliar (Aned) e que se afirma haver quase 18 mil alunos no País “usufruindo” dessa modalidade. Segundo os dados dessa associação, 0,04% do total de estudantes brasileiros no ensino regular. A votação do homeschooling, que hoje é considerado crime de abandono intelectual na maior parte do Brasil, foi uma das 35 prioridades do governo Bolsonaro entregues à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal. E a única que contempla o tema educação.

 

O Profissão Repórter acompanhou a deputada governista Luísa Canziani (sem partido-PR), que recebeu a missão de ser a relatora do projeto neste seu primeiro mandato. Aos 25 anos, Luísa é atualmente a deputada mais jovem do Congresso Nacional e integra a Frente Parlamentar Mista pela Educação. Acompanhou também a rotina do deputado federal Professor Israel Batista (PV-DF), presidente da Frente Parlamentar Mista pela Educação e opositor ao projeto. Enquanto a deputada Luísa Canziani batalha pela aprovação de sua versão do projeto, o parlamentar trabalha pelo engavetamento do texto.

 

Embora não seja forte no Distrito Federal, o movimento pela educação domiciliar tem ganhado espaço midiático e lobby nos Poderes Legislativos federal e distrital desde que uma decisão, de dezembro de 2020, do Governo do Distrito Federal (GDF), autorizou o ensino em casa. A Globo disse que procurou várias famílias que utilizam o homeschooling para dar entrevista, mas só conseguiu uma. A família de Edilaine Lima e Jônatas Lima. Eles são da Associação de Famílias Educadoras do DF e responsáveis pela educação dos três filhos.

 

Inconstitucionalidade

 

Melquisedek Aguiar, diretor do Sinpro-DF, informa que desde que esse assunto voltou à pauta do Brasil, o Sinpro-DF se posiciona contrário e aponta, com dados e informações científicas porque é o homeschooling é um problema a ser monitorado e a ser rejeitado. “O direito constitucional à educação não pode ser desvirtuado de sua condição, do interesse coletivo, da sociedade para atender interesses privatistas de determinados “grupos sociais”, que, no afã de garantir seus objetivos, criam falsas narrativas como a de que as leis que asseguram a escola pública e o direito da criança à socialização e construção cidadã de sua personalidade, ser uma forma de ditadura”, afirma

 

O diretor alerta para o fato de que o homeschooling é defendido por uma minoria inexpressiva da população, porém, é defendido por um forte lobby político e empresarial no Congresso Nacional para a aprovação com vista, unicamente, a atender aos interesses de um governo que atua e ataca, insistentemente, a educação pública. “Nesse sentido, é fundamental que toda a sociedade se mobilize para dizer não a esse falso projeto de educação que, em realidade levará a educação em nosso País ao caos, pois o mesmo compromete o direito das crianças e adolescentes à convivência social e ao acesso a conhecimentos científicos e humanísticos e visões de mundo”, explica.

 

Ele completa afirmando que o projeto de educação domiciliar “oculta e aumenta a violência doméstica e a exploração sexual, traz o aumenta a insegurança alimentar e nutricional, promove o rompimento com a política de educação especial, negando a educação inclusiva, aprofundando as desigualdades educacionais, impulsiona e estimula a evasão escolar, fragilizando, dessa forma, a democracia e a cidadania, pois, desregula e leva a omissão do Estado em cumprir sua obrigação de investimento e atenção a educação pública”.

 

Evasão escolar no Distrito Federal

 

Na reportagem, a Rede Globo entrevistou a equipe de professores e o diretor do CED São Francisco (Chicão), em São Sebastião. O diretor da escola, Matheus Costa de Sousa, afirma que, em vez de se preocupar com homeschooling, o governo deveria estar preocupado com os números elevados de evasão escolar e encontrar uma solução financeira e educacional para isso.

 

Ele explica que é difícil ter um número da evasão escolar no Distrito Federal porque, embora a pandemia do novo coronavírus tenha pego a todos de surpresa, na educação foi um caos.  “A escola pública não estava preparada para conduzir um ensino emergencial. Como tudo foi pensado da noite para o dia, a gente teve muita orientação para que a gente pudesse se colocar, ao máximo, no lugar do estudante para conseguir que ele tivesse um mínimo de progresso e avançasse nos estudos, foi essencial para que a gente tivesse essa sensibilidade”.

 

Ele conta que uma das formas de contabilizar a evasão nas escolas públicas do DF foi a observação do número de aprovados do ano letivo de 2020 para 2021. “Muitos passaram fazendo muito pouco e esse muito pouco variou muito de escola para escola. Contudo, foi possível a gente notar alguns parâmetros para “medir” a evasão, como, o número de matrículas confirmadas do ano de 2020 para este ano. Outro parâmetro foi a evasão nas provas de progresso de estudos, como, por exemplo, o PAS, Enem. Este ano teve Enem na nossa escola, referente a 2020, e chegamos a uma evasão de metade dos nossos estudantes”, afirma.

 

Ele diz que essa observação já apresenta um número assustador, contudo, em termos de escola, a direção conseguiu contabilizar um terço de estudantes do Chicão muito ausentes, fazendo outras coisas da vida. Muitos abandonaram a escola para trabalhar, cuidar de casa, e a escola foi ficando em terceiro, quarto plano.

 

“No Chicão, a gente foi monitorando, ao longo do ano passado para este ano, inclusive tentando contabilizar o número de matrículas confirmadas do 9º Ano para o 1º Ano, levando em consideração que a gente é uma escola de Ensino Médio. A gente havia previsto, por exemplo, para chegar no 1º Ano de cerca de 900 estudantes e a gente conseguiu contabilizar um pouquinho mais de 700. Duzentos estudantes não continuaram, não progrediram nos estudos”, afirma Matheus.

 

Ele disse ainda que, “ao longo do semestre, a gente foi fazendo Conselho de Classe, e esse número chegou a quase um terço de toda a escola. Então, a gente diminui aí um terço de 1.900 estudantes. Estamos fazendo de tudo para que esse um terço não desista da escola. Estamos fazendo busca ativa, entrando em contato constantemente para que esse número diminua e atuando para que o estudante tenha uma motivação para continuar e concluir o Ensino Médio”.

 

Direitos da criança e do adolescente

O diretor do Chicão explica que, para além da transmissão e troca de conhecimento, a escola é o espaço da democracia, diversidade, socialização, cidadania e que retirar o direito da criança/adolescente de ter acesso à escola é prejudica-la em todos os sentidos.

“É, sobretudo, prejudica-la no sentido de ela não conseguir ter uma formação cidadã, holística, democrática, então, significa retirar esse direito da criança e do adolescente de se construir no mundo democrático, no mundo cidadão, no mundo diverso, no mundo mais tolerante, no mundo mais respeitoso. A escola pública é o espaço dessa construção por meio de uma educação humanizada. Mas a escola, por si só, tem, sobretudo, essa função social”.

 

Os pais de estudantes da escola pública

 

O movimento pela educação domiciliar (homeschooling, em inglês), é um movimento que não tem essa força que tem sido divulgada pelo governo federal. Muito pelo contrário. A maioria esmagadora dos pais que matriculam seus filhos e filhas nas escolas públicas são pessoas trabalhadoras que têm uma carga horária exaustiva de trabalho e a gente vê que as famílias que defendem o homeschooling têm perfil diferente do comum.

“Dentro desse rol de famílias que defendem o homeschooling existe um pequeno grupo que é capaz de conseguir dentro de casa ou então separar para que familiares e responsáveis acompanhem cotidianamente o progresso do estudante no contexto familiar. A gente vê que essa é uma realidade acessível a uma pequena, uma minúscula parcela da população. A gente vê que essa discussão do homeschooling não ganha espaço nas escolas públicas. Muito pelo contrário: os pais veem na escola pública uma parceria no processo de educação e formação de seus filhos e filhas”, afirma o direito do Chicão.

Ele também explica que, “com todos os pais que a gente tenta conversar sobre esse tema, eles descartam. Não querem nem discutir. Eles querem que os filhos e filhas voltem à escola e tenham a socialização, estejam próximos dos professores e professoras. Não é um discurso bem visto pelos pais, mães e responsáveis por estudantes da escola pública do DF”, assegura.

 

Perfil do homeschooling: classe alta, cristã fundamentalista e branca

 

O diretor do Chicão alerta para o fato de que entre os defensores do homeschooling, um grupo muito pequeno tem condições de ofertar aos filhos e filhas a educação domiciliar. No entanto, estão organizados para ganhar terreno, expressão nacional e abocanhar uma parte do dinheiro público destinado à educação pública.

Para encontrar sustentação e ampliar seu tamanho para legalizar o abandono intelectual de menor, esse grupo começou criar associações para encaminhar seus interesses e também para ministrar “aulas” a estudantes em esquemas privados em detrimento da socialização na escola.

“A gente vê que as famílias associadas têm um perfil que, normalmente, é perfil de classe média alta, cristãs fundamentalistas e brancas. Esse é o perfil que predomina nesse espaço e que quer ganhar alguma legitimidade constitucional para ter dinheiro público nesse negócio. É difícil dizer o número de pessoas nisso no DF, mas existe uma perspectiva em torno de Brasil que uma política pública de homeschooling alcançaria cerca de 7 a 10 mil famílias com condições de manter esse cenário”, informa Matheus Sousa.

Ele também observa que as escolas privadas também são contra o homeschooling porque valoriza o espaço físico e por entenderem que o contato, o acolhimento, a troca é fundamental para o progresso pedagógico do estudante. “Tudo isso acontece no espaço físico, na socialização. É um movimento que também não tem ganhado força dentro do ensino privado”.

 

Uberização da profissão professor(a)

 

O diretor do Chicão explica, ainda, que, além de infringir todas as leis de defesa da criança e do adolescente em vigor no País, de tentar legalizar uma situação para receber dinheiro público, o homeschooling apregoado pelas associações fundamentalistas que atuam no Congresso Nacional também destrói a própria educação pública e aprofunda a uberização.

 

Abre muito espaço para os chamados “reforços”. A maioria dessas famílias contrata professores já graduados ou em formação, sem qualquer garantia de direitos trabalhistas, para que tenham atendimento específico, particular e um acompanhamento do progresso do estudante. A gente vê também que os critérios que norteiam nossa profissão, como a Lei de Diretrizes e Bases, a Base Nacional Curricular Comum e as outras leis que reforçam e legitimam o nosso trabalho têm muito menos chance de serem colocadas em prática e fiscalizadas dentro do contexto do ensino domiciliar e isso desvaloriza muito a profissão.

 

Ao precarizar a profissão, reforça-se um giro na economia no sentido de que os professores(as) vão, cada vez mais, se submeterem a condições precárias de trabalho, cada vez mais professores uberizando seus serviços, fortalecendo esta fase do capitalismo na qual cada pessoa vira uma empresa.

 

Olhando para o contexto do homeschooling, o(a) professor(a) teria de bancar seu próprio plano de saúde e da sua família, fazer sua hora de trabalho de forma a conseguir ganhar dinheiro suficiente para o sustento; fazer o seu deslocamento à residência da pessoa que o contrata; e todos esses custos de trabalho são precarizados  tendo em vista as condições estabelecidas no aprovamento. O homeschooling é a própria desvalorização do magistério. É importante olhar com o devido cuidado porque cada vez mais temos visto o aumento da uberização de diversos ramos profissionais e está batendo na porta da profissão do professor agora.