Homeschooling: a tentativa de controle intelectual de humanos em formação

Uma série de pautas conservadoras estão na iminência de ser reativada na Câmara dos Deputados. Uma delas é o homeschooling, prática que nada mais é do que o controle intelectual de seres humanos em processos de formação.

Há o receio de que o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), paute o homeschooling em meio a outros dois que serão votados, o Sistema Nacional de Educação e a Política Nacional de Educação Digital.

Bem diferente do ensino remoto, necessidade criada pela pandemia de Covid-19, que obrigou as crianças a ficarem em casa para se protegerem do vírus SARS-CoV-2, e em vez de irem para salas de aula físicas passaram a frequentar salas de aula virtuais, nas quais mantiveram a interação com professor(a) e colegas, o homeschooling é uma prática que visa a prevenir que crianças tenham contato com o mundo.

A diretoria colegiada do Sinpro-DF observa que o homeschooling vai atender a famílias com condições econômicas confortáveis, capazes de contratar um professor particular e até com renda suficiente para que um dos pares deixe de trabalhar para cuidar da educação dos filhos, que, provavelmente, será a mãe. Esse é um problema sério que faz parte do desmonte silencioso da educação pública e gratuita que ocorre no Brasil pelas mãos do ministro Milton Ribeiro, da Educação.

“Além de ter apenas características negativas para a criança e o adolescente vítima desse golpe denominado homeschooling, esse modelo de exclusão educacional ignora, totalmente, o papel da escola. A gente acredita na formação da pessoa como um cidadão ou cidadã como um todo, um ser em sua totalidade. E para ter a formação na sua totalidade, inclusive atendendo ao convívio com as diferenças, é a escola. E aí estamos falando da escola como um todo e não somente a deposição de conteúdos, que são importantes e indispensáveis, mas precisam de ser acompanhados de ações pedagógicas, políticas etc. É a escola que me ensina e me prepara para a vida lá fora”, alerta Rosilene Corrêa, diretora do Sinpro-DF

 

Desvantagens e desvantagens

O processo de ensino doméstico só tem desvantagens para a formação holística da criança. A começar pelo fato de que quem acompanha o processo de educação é geralmente (adivinha?) a mãe, que a priori não tem formação para isso. Logo, não adquiriu habilidades para transmitir o conteúdo didático, não sabe como avaliar o estudante e tampouco é capaz de observar se a aquisição do conteúdo foi satisfatoriamente compreendida pelo estudante.

A prática do homeschooling também ocorre em horários flexíveis, ao contrário do ensino oficial, seja do estado ou ministrado por entidades privadas, que deve obedecer a um rigoroso calendário letivo. Educação com horários flexíveis não cria uma saudável rotina de hábitos na criança.

No homeschooling, a função de educar os filhos acaba recaindo sobre (adivinha?) a mãe, que, automaticamente, se vê privada de trabalhar fora. Se houver necessidade de a mulher trabalhar fora para ajudar no orçamento familiar, o homeschooling, de antemão, já inviabiliza essa alternativa (e vamos nos ater a apenas este comentário, que já é suficiente para dimensionar o problema envolvendo a questão de gênero).

Finalmente, e talvez o mais assombroso aspecto do homeschooling, a visão de mundo do estudante submetido à prática do ensino domiciliar é limitada e reduzida ao interior de sua casa e ao ponto de vista de seus pais. Ainda que sua socialização seja feita na igreja ou no clube, o estudante não vive a experiência, em ambiente de sala de aula, de ser provocado por visões ou pensamentos diferentes. Cresce cordato, não questionador, e incapaz de ponderar ou mesmo pensar sobre diferentes visões de mundo. Quando conclui os estudos e consegue se inserir num mercado de trabalho cada vez mais voraz e exigente, apresenta sérias dificuldades de trabalhar em equipe.

 

Homeschooling no STF…

Pela legislação atual, o homeschooling é inconstitucional. Em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que os pais não podem oferecer ensino domiciliar a seus filhos. Pelo voto da maioria dos ministros, a Constituição prevê apenas o modelo de ensino público ou federal e não há lei que autorize a medida.

O ministro Alexandre de Moraes lembrou, em seu voto, que a Constituição Federal não proíbe a modalidade de ensino, mas não existe regulamentação do Congresso Nacional para este tipo de ensino, estabelecendo a fiscalização ao rendimento e à frequência do estudante. Para Moraes, não cabe ao Judiciário estipular essas regras. Portanto, o homeschooling não poderia ser considerado legítimo no Brasil.

A ministra Rosa Weber, ao concordar com o colega, afirmou que, enquanto a Constituição de 1946 previa que a educação dos filhos se dava no lar e na escola, a Carta de 1988 impôs um novo modelo, sintetizado no artigo 208: “Compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela frequência à escola”. Lembrou ainda a ministra que tal modelo foi regulamentado pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que falam na obrigatoriedade dos pais em matricularem seus filhos na rede regular de ensino. Ela disse também que a LDB estipula que, se o estudante apresentar mais de 50% de faltas em taxa superior a 50%, é dever da escola comunicar o fato à Justiça.

 

… e no MPDFT

Em 2020, o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) decidiu que o processo de autorização do ensino domiciliar (homeschooling) no Distrito Federal é inconstitucional. A procuradora Ana Maria Villa Real F. Ramos, coordenadora-regional da Coordenadoria Nacional de Combate à Exploração do Trabalho da Criança e do Adolescente no DF, assina manifestação da Procuradoria Regional do Trabalho da 10ª Região que aponta “graves e insanáveis vícios de inconstitucionalidade que violam a garantia do direito à educação” em referência aos Projetos de Lei Nº 356/2019, 1167/2020 e 1268/2020, aprovados pela Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF).

 

Abandono intelectual X direito à liberdade

Pela legislação vigente, o ensino domiciliar pode ser categorizado como abandono intelectual, crime previsto no art. 246 do Código Penal. O atual governo quer transformar “abandono intelectual” em “direito à liberdade educacional”. O governo quer “revisar” a definição de uma prática taxada de negligência pelo Estado, para ser considerada “liberdade parental”.

Por causa disso, há um segundo projeto em tramitação na Câmara dos Deputados. Ele é da deputada Bia Kicis, do PSL do Distrito Federal, e descriminaliza o abandono intelectual de menores de idade.

Nunca é demais lembrar que diversas denúncias de prática de pedofilia são descobertas por professoras ao observarem o comportamento das crianças, ou mesmo as crianças que denunciam os crimes após assistirem a palestras sobre educação sexual. Quem protegeria as crianças vítimas de pedófilos numa realidade de homeschooling?

 

Mas deu certo há 300 anos

Homeschooling é, também, lobby de poderosas entidades internacionais do chamado “mercado cristão”. O governo federal publicou uma cartilha com 20 páginas em defesa da prática do homeschooling. Um dos “argumentos” empregados é o fato de que “muitas pessoas que mudaram a história do mundo foram educadas na modalidade de educação domiciliar”. Para ilustrar esse argumento, citam nomes como Benjamin Franklin, Carlos Gomes e Barão de Mauá, que viveram nos séculos XVIII e XIX, quando educação não era considerada um direito humano, e a expressão “sistema de ensino” nem fazia sentido. E projetos de homeschooling disputam orçamento com os já parcos recursos do Ministério da Educação.

 

Homeschooling no mundo

Apenas nove países autorizam e regulamentam a prática. Nos Estados Unidos, cerca de 2 milhões de crianças e jovens são submetidos ao homeschooling. Na Alemanha e na Suécia, a prática é proibida – e quem não cumprir com a obrigação de mandar os filhos à escola perde a guarda.

O homeschooling, portanto, é prática que prejudica a educação, e nossa categoria deve estar atenta às movimentações no sentido de legalização dessa modalidade que é uma verdadeira afronta a tudo o que estudamos e defendemos para nossas crianças e jovens.

 

 

 

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