Há 7 anos, CEF 407 de Samambaia supera analfabetismo funcional com Projeto de Leitura

Frequentar a escola, assistir às aulas, assinar o próprio nome e ler um livro nem sempre significa que a pessoa esteja entendendo o que está fazendo e que o aprendizado esteja fluindo como deveria. Muitas vezes, crianças e adolescentes passam pelo Ensino Fundamental e Médio sem adquirir e nem internalizar o conhecimento lecionado por falta de habilidades que as capacitem para isso.

 

Números recentes do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) confirmam essa tragédia educacional, com a qual professores(as) e orientadores(as) educacionais das redes pública e privada de ensino convivem todo dia. Em fevereiro deste ano, a ONG Todos pela Educação divulgou estudo segundo o qual 41% das crianças de 6 a7 anos não sabem ler nem escrever, muito embora seja nessa idade que as crianças brasileiras iniciam sua trajetória no mundo das letras e começam, nesse período, a aprender de fato.

 

 

Mesmo assim, a organização diz que esse é o maior índice de analfabetismo registrado no Brasil desde 2012 e que esse recorte de idade ocorreu por causa do Plano Nacional de Educação (PNE), que tem como diretriz curricular a alfabetização de crianças no 1º e 2º Anos do Ensino Fundamental, quando as crianças têm idades entre 6 e 7 anos.

 

 

Analfabetismo funcional na mídia

 

O tema do analfabetismo funcional foi veiculado, nessa segunda-feira (23/5), no Jornal Nacional, da TV Globo, como algo ainda mais grave. Segundo apuração do JN, milhares de estudantes brasileiros chegam ao Ensino Médio sem conseguir ler fluentemente e que mais de 50% chegam ao 3º Ano do Ensino Fundamental sem ter habilidades básicas de leitura.

 

Na matéria, além de mostrar a presidente-executiva da ONG, Priscila Cruz, falando sobre outros dados e atribuindo muito dessa tragédia educacional à pandemia da covid-19, o JN destaca o Projeto de Leitura do Centro de Ensino Fundamental nº 407 da Samambaia (CEF 407 da Samambaia): uma solução pedagógica vitoriosa, que vem retirando muitos estudantes do analfabetismo funcional.

 

O Projeto de Leitura foi criado, em 2015, para ensinar crianças e adolescentes do CEF 407 a ler, entender, compreender e aprender o conhecimento ministrado na escola. Cinco anos antes da pandemia do novo coronavírus, a equipe de docentes da escola pública do Distrito Federal detectou o problema mencionado na matéria do JN e começou a enfrentá-lo.

 

 

Josuel Santos da Silva, professor de história e vice-diretor do CEF 407, é o autor, juntamente com as professoras de língua portuguesa Márcia Videira e Teresa Cunha, do Projeto de Leitura. Ele diz que foi justamente por causa da constatação desse analfabetismo funcional na escola que o elaboraram. “Em 2015 percebemos que um grupo de estudantes de nossa escola estava incluído nessa estatística e resolvemos retirá-los da lista. Criamos o Projeto de Leitura”, conta.

 

“Foi elaborado com a preocupação de criar formas de ensinar o e a estudante a gostar de ler. O projeto foi encampado pela escola e, no início de cada semestre, os(as) professores(as) se unem para escolher um livro de literatura paradidático que será lido por todos em todas as disciplinas juntamente com os estudantes na sala de aula; quer seja na aula de história, geografia, matemática, química”, explica Josuel.

 

Segundo ele, o resultado é extraordinário. “Temos, agora, por exemplo, estudantes se propondo a escrever livros. A proposta é fazer de um grupo de estudantes que tinha dificuldade com a leitura e a escrita a gostar de ler e até a querer ser escritores. Hoje, eles e elas perguntam: ‘professor, como posso escrever um livro?’ Ou seja, se o livro era um objeto afastado numa estante, essa criança agora pensa na possibilidade de ser um escritor, uma escritora”, revela.

 

Do muro ao concreto: do castigo ao prazer de ler

 

 

“Chamamos carinhosamente, entre nós, professores, de Projeto de Leitura, mas a cada ano a gente ajusta o título para a temática do ano. Este ano, o tema está relacionado ao muro da escola em razão da pintura e sua visibilidade, que está vinculada às autoras que trabalhamos nas obras”, anuncia o vice-diretor.

 

Para ele, o muro da escola é uma escolha política. Aliás, o muro e o baobá (foto) são um sinal de resistência ao modelo de gestão militarizada imposto pelo governo Ibaneis Rocha (MDB) em 2019. O Gisno e o CEF 407 foram duas escolas que resistiram a esse modelo de gestão que ocorre em algumas escolas do Distrito Federal, cuja principal ação, quando é instalada, é tolher a liberdade de cátedra, as liberdades individuais e pintar os muros de branco.

 

“Mesmo que a Globo não tenha falado sobre isso, temos lá cinco autoras negras. Mulheres negras, escritoras. E aí temos de pensar em qual é a cor da educação pública. Estamos falando de crianças negras. E na nossa prática lidamos muito mais com as mães. Então quando a gente entra em contado com as famílias, a gente fala com as mães, com as avós. Como é uma forma de representar positivamente essa comunidade. Tanto é que a gente escolheu esse relato de família”, diz Josuel.

 

O vice-diretor conta que, nesses 7 anos, o projeto passou por um amadurecimento que o levou a ter dois princípios básicos: a educação antirracista e a antissexista. “O muro dialoga com esses dois princípios. Agora, estamos construindo um nome temporário que é ‘Do muro ao concreto’. Mas não o concreto do cimento, e sim o concreto da realidade concreta e imediata dos(as) estudantes”, argumenta.

 

Segundo ele, uma das primeiras iniciativas do grupo ao adotar o Projeto de Leitura foi a de mudar a velha e alienante cultura de que salas de leitura são o espaço de castigo das escolas. “A primeira coisa que a gente rompeu foi com essa cultura e instituímos que a leitura não deve ser um lugar de punir estudantes. Pelo contrário, a leitura tem de ser prazerosa. E foi assim que mudamos a cultura de que estudante deve ser punido em sala de leitura.  Conseguimos, em diálogo com os(as) professores(as), superar isso e, em diálogo conosco mesmo, leitores e leitoras, estabelecemos essa nova cultura”.

 

Em 2015, o Projeto de Leitura começou com a preocupação de ensinar a gostar de ler. O problema da deficiência de leitura, da falta de habilidades básicas de leitura entre os estudantes é um diagnóstico detectado muito antes de 2015, de muito antes da pandemia da covid-19. A equipe da 407 já via que os estudantes não liam e que quando liam não entendiam o que liam, não davam sentido ao que liam e alguns copiavam e não davam sentido ao que copiavam. Professores(as) foram vinculando cada vez mais a leitura à docência e superando o problema.

 

A cor da educação pública: uma proposta pedagógica

Gina Vieira, criadora do projeto Mulheres Inspiradoras também esteve no CEF 407
Gina Vieira, criadora do projeto Mulheres Inspiradoras também esteve no CEF 407

 

Os(as) professores(as) aderiram ao projeto e vincularam, cada vez mais, a leitura ao trabalho pedagógico de cada disciplina e à docência de cada um. Assim, quando o projeto nasceu, ele não nasceu como uma coisa à parte do trabalho docente. Ele é parte desse trabalho.

 

“Muitas vezes a gente foca muito no livro paradidático, o livro escolhido no semestre, mas esse projeto de leitura acontece o ano inteiro com o material que a professora e o professor montam com o livro didático, com a escrita do e da estudante, com a elaboração do e da estudante e, muitas vezes, no tempo dele ou dela. Claro que o professor e a professora vão corrigindo e reelaborando essa escrita. Mas, num primeiro momento, valoriza muito a escrita criativa. Por isso que tem aquele relato de estudantes falarem de ter vontade de serem escritores e escritoras”, explica Josuel.

 

Frei Betto e professores no CEF 407
Frei Betto e professores no CEF 407

 

Este ano, o Projeto de Leitura completa 7 anos. Na formatação inicial, de 2015, uma das primeiras obras trabalhadas, foi “O pequeno príncipe”, uma novela escrita pelo aviador aristocrata francês Antoine de Saint-Exupéry. “Escolhemos a tradução de Frei Betto e fomos recebidos por ele, que nos colocou em contato com a editora e com outras possibilidades que refletem até hoje nessa ação pedagógica. Na época, Frei Betto escreveu uma carta para os estudantes da escola que distribuímos para cada um dos estudantes”, conta.

 

Hoje, o projeto trabalha com autoras negras, como Meimei Bastos, de Brasília e moradora da Samambaia, Kiusam de Oliveira, Carolina Maria de Jesus, a nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie, dentre várias outras escritoras negras. O CEF 407 vem demarcando uma resistência na educação. Recentemente, a comunidade plantou um baobá (foto) no estacionamento da escola.

 

“Não é acidental. É uma escolha política porque se trata de uma escola que está construindo uma proposta educacional afrocentrada e, por isso, antirracista e antissexista e em diálogo com as Leis nº 10.639/03  e nº 11.645/08, que estabelecem a obrigatoriedade do ensino da cultura e história africana, afro-brasileira e indígena, além de manter um diálogo com o nosso Currículo em Movimento. Assim, plantar o baobá e pintar o muro é uma escolha política”, afirma Josuel.

 

De um Projeto de Leitura que nasceu em 2015 como um trabalho de alguns professores e professoras, ele cresceu de tal forma que, em 2016, foi ajustado e passou a integrar o Projeto Político Pedagógico (PPP) da escola até o início da pandemia da covid-19, envolvendo o maior número de professores dos turnos matutino e vespertino.

 

Este ano, quando tudo voltou ao normal, presencialmente, o método ainda é utilizado por vários(as) professores(as). Continua sendo um sucesso e segue, há quase uma década, formando novos leitores com habilidades e capacidades para entender o que lê, de escrever textos e até de transformar pessoas com ojeriza à leitura em novos amantes dos livros. O projeto é tão bem recebido pelos(as) estudantes que muitos pedem para a escola os(as) ensinar a ser novos(as) escritores(as).

 

Confira matéria do JN
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