Governo federal: descaso com a vacinação infantil

Falta vacina para a população brasileira, e a imunização contra várias doenças está sendo efetuada de maneira insuficiente e ineficaz. As crianças são o público mais afetado, e estão vulnerabilizadas, segundo reportagens do jornal O Globo e da Agência Senado.

Contra a Covid-19, um mês após o Ministério da Saúde autorizar a aplicação do imunizante CoronaVac em crianças a partir de 3 anos, não há contrato para aquisição de mais doses para o público pediátrico. Além de Brasília, Rio de janeiro, Itapira (SP) e outros 11 municípios do Rio Grande do Norte suspenderam a aplicação da primeira dose nesse público, segundo reportagem do jornal O Globo desta semana. O desabastecimento de vacinas contra Covid também afeta municípios baianos e vários outros estados da federação – só Pará e Roraima responderam que dispõem de vacinas suficientes para a tender à demanda, ainda segundo a reportagem do Globo.

Há cerca de 5,6 milhões de crianças de 3 e 4 anos no Brasil, logo seriam necessárias cerca de 11 milhões de doses de CoronaVac, pois o ciclo contempla duas aplicações no intervalo de 28 dias.

Números do LocalizaSUS, porém, mostram que apenas 261.611 crianças de 3 e 4 anos receberam a primeira dose até a última sexta-feira no Brasil – 4,67% da população almejada. Desse total, o irrisório número de 3.168 crianças, em todo o país, completaram a vacinação com a segunda dose.

O Ministério da Saúde informou em nota à reportagem do Globo que ainda “está em tratativas para aquisição do imunizante com maior celeridade, de acordo com a disponibilidade de entrega das doses pelos fornecedores”, sem informar detalhes. E, mesmo sem ter efetivado a compra, a pasta prevê receber os imunizantes a partir de setembro, mas não divulgou sequer a quantidade de doses a serem adquiridas.

Fabricante da CoronaVac no Brasil, o Instituto Butantan informou que poderia entregar vacinas à pasta para as crianças a partir do próximo mês. Ainda não há, porém, pedidos ou negociações em andamento. O Butantan importou o Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA), insumo essencial para produzir o imunizante, a fim de atender toda a faixa etária.

Mas o problema não se restringe à CoronaVac. Dados do próprio Sistema Único de Saúde (SUS) dão conta de que a redução na imunização das crianças brasileiras é uma realidade. Texto da Agência Senado dá conta de que os níveis de imunização infantil são os mais baixos dos últimos 30 anos.

A reportagem informa que em 2021, em torno de 60% das crianças foram vacinadas contra hepatite B, tétano, difteria e coqueluche. Contra tuberculose e paralisia infantil, perto de 70%. Contra sarampo, caxumba e rubéola, o índice não chegou a 75%. A baixa adesão se repetiu em diversas outras vacinas. Para que exista a proteção coletiva e o Brasil fique blindado contra as doenças, o recomendável é que entre 90% e 95% das crianças, no mínimo, estejam imunizadas.

Médicos das áreas de pediatria, infectologia, epidemiologia e saúde coletiva temem que, se esse quadro de baixa vacinação for mantido, o país poderá assistir a novas catástrofes sanitárias, com o ressurgimento de epidemias que eram comuns no passado. O infectologista José Cassio de Moraes, professor da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo, alerta:

— Estamos brincando com fogo. Ao contrário do que muita gente acredita, essas doenças não são benignas. Elas são graves e, dependendo da situação, deixam sequelas e levam à morte.

A meningite e a caxumba, por exemplo, podem causar surdez. O sarampo pode retardar o crescimento e reduzir a capacidade mental. A difteria pode levar os rins à falência. A coqueluche pode provocar lesões cerebrais. Quando a mulher contrai a rubéola na gravidez, o bebê pode nascer com glaucoma, catarata e deformação cardíaca, entre outros problemas, além do risco de aborto.

Médico desde 1971, Moraes lembra que o Hospital das Clínicas de São Paulo teve antigamente um andar inteiro destinado à internação de pacientes com paralisia infantil que, para respirar e viver, dependiam dos chamados pulmões de aço. O Hospital Emílio Ribas, também em São Paulo, reservava dois ou três andares para o isolamento dos doentes de difteria.

— O que estamos vendo é a crônica de uma tragédia anunciada — ele acrescenta. — Precisamos agir rápido para que não andemos para trás e voltemos a ser aquele Brasil dos séculos 19 e 20, que era tomado pelas epidemias e mortes.

Os primeiros sinais dessa tragédia são concretos. Em 2016, o Brasil ganhou da Organização Pan-Americana da Saúde (Opas) o certificado de território livre do sarampo. Naquele momento, o país vinha registrando um ou outro caso importado da doença. Logo em seguida, no entanto, o sarampo voltou com força total. Entre 2018 e 2021, o Brasil contabilizou mais de 40 mil doentes, dos quais 40 morreram. A Opas acabou retirando o certificado em 2019.

“É inacreditável. Temos uma infraestrutura de vacinação nacional que começou a ser montada ainda na década de 1960. As campanhas de vacinação eram eficazes a ponto de alcançarmos 100% de imunização em algumas campanhas. Dentre todos os sucateamentos e desmontes promovidos por este governo irresponsável e inconsequente, o descaso com a saúde infantil é o mais mórbido de todos”, pondera Cláudio Antunes, diretor do Sinpro-DF.

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