Flexibilização das regras de isolamento social preocupa especialistas
Existe uma grande expectativa em relação ao Carnaval de 2022, festa que pode acentuar a contaminação pelo coronavírus
Com praticamente 55% da população brasileira totalmente imunizada contra a Covid-19 e uma redução nos casos de contaminação e de mortes pela doença, estados e municípios se utilizam desses dados para reduzir os protocolos sanitários de controle. A flexibilização tem preocupado a comunidade científica, que teme um aumento descontrolado de novos casos.
Em Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro, os estádios de futebol estão autorizados a encher as arquibancadas, para alegria dos torcedores. Na segunda-feira 1°, São Paulo também liberou a capacidade máxima de público sem a exigência de distanciamento social em teatros, cinemas, casas de eventos em geral, bares e restaurantes, inclusive shows com público em pé. A medida não desobriga, porém, o uso de máscara e só vale para quem apresentar um comprovante do ciclo completo de vacinação.
No Rio de Janeiro, o governador Cláudio Castro aboliu a obrigatoriedade do uso de máscara em locais abertos, alegando a queda no número de internações por Covid-19 na rede pública, que, segundo afirma, não chega a 3%. O estado tem cerca de 52% da população com a segunda dose da vacina, porcentual abaixo do considerado suficiente pelos cientistas para provocar a imunidade de rebanho.
“Não temos ainda o porcentual de vacinação adequado para a flexibilização. Precisamos, no mínimo, de 80% dos brasileiros vacinados com as duas doses. Quando você tem essa flexibilização, sempre é possível um aumento de casos. Isso aconteceu em vários países e pode acontecer aqui, apesar do número grande de infectados que tivemos pelo controle inadequado da pandemia, o que aumenta a imunidade da população. Mas, de qualquer jeito, é um risco abrir dessa maneira neste momento”, alerta Marcos Boulos, infectologista e professor de Medicina da USP.

Para o Conselho Nacional de Secretários de Saúde, o uso de máscara continua a ser uma medida essencial na proteção contra a Covid-19, mesmo com o avanço da imunização, uma vez que as vacinas não impedem a transmissão do vírus. A entidade lembra que os espaços abertos, a depender da aglomeração, são locais de alta transmissão. O Conass recomenda que os gestores tomem decisões baseadas nos dados epidemiológicos e no avanço da vacinação, mas observem a situação em sua totalidade, considerando os cenários nacional e internacional, sempre apoiados na ciência.
Na Europa, vários países registraram alta na contaminação pelo coronavírus depois da flexibilização dos protocolos sanitários, o que deu início a uma quarta onda da pandemia. A média no continente é de 1,5 milhão de novos casos e 19 mil mortes por semana, o que tem chamado a atenção da Organização Mundial da Saúde. Nos Estados Unidos, o contágio também voltou a crescer depois que o governo afrouxou as regras de combate à doença, como a não obrigatoriedade do uso de máscara. Na China, o governo decidiu endurecer novamente os protocolos, para deter o avanço da doença. O país vai sediar os Jogos Olímpicos de Inverno, em fevereiro, e quer evitar a proliferação do vírus antes do evento. Após detectar surtos em diferentes regiões, o governo chinês determinou o fechamento de fronteiras, lockdowns e quarentena rigorosa, além de restringir viagens entre as províncias e intensificar as testagens. As autoridades também sugeriram à população que estoque alimentos nas próximas semanas.
Apesar dos altos índices de infecção e morte, o Brasil só pensa no Carnaval
Sobre o limite entre endurecer e afrouxar as regras de combate à pandemia, o ex-ministro Arthur Chioro defende a parcimônia no processo de flexibilização. “Nem sequer conseguimos a vacinação dos menores de 12 anos e, nas demais faixas etárias, temos uma infinidade de brasileiros que tomaram uma dose e não retornaram para completar o calendário vacinal. Não sou contrário ao retorno das atividades progressivamente, é importante esse momento, mas é preciso manter a obrigatoriedade da máscara, inclusive em ambientes externos, e o distanciamento mínimo. Para que a gente tenha a perspectiva de poder voltar a um certo normal a partir do fim do ano, quando provavelmente alcançaremos a cobertura vacinal adequada, é fundamental se proteger agora. E ter o compromisso de, caso se identifique o aumento de contaminação, mesmo que isso não signifique o crescimento imediato de óbitos, retroagir nas medidas.”
O cineasta, ex-secretário municipal de Cultura de São Paulo e diretor da Pandora Filmes e do Cine Belas Artes André Sturm defende a retomada das atividades culturais. Desde o começo da pandemia, afirma, o setor tem sido discriminado pelo Poder Público e recebe um tratamento diferente das demais atividades econômicas. “Temos dificuldade de mobilizar o público, diante do desestímulo e da satanização que tentam fazer com a cultura, o que é um grande erro. Por que ir ao teatro ou ao cinema é mais arriscado que ir ao salão de beleza, ao banco ou ao shopping?”, questiona. Em relação aos cuidados em locais como cinemas e teatros, Sturm cita o controle sanitário que garante a segurança do público, embora muitos dos antigos frequentadores continuem reticentes em voltar a esses espaços. No Cine Belas Artes, mesmo com a liberação de 100% da capacidade, na prática a ocupação não passa de 40%. O produtor aposta no lançamento de Marighella, filme dirigido por Wagner Moura, para elevar esse porcentual nas próximas semanas.

Existe uma grande expectativa em relação ao Carnaval de 2022, festa que pode acentuar a contaminação pelo coronavírus. O prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, anunciou a folia. O Rio de Janeiro, embora não tenha oficializado, dá sinais de que fará o tradicional desfile das escolas de samba e permitirá os blocos de rua. Recife, Olinda e Salvador também se programam para a realização do evento. “A situação epidemiológica de hoje não nos dá segurança para decidir por esta abertura. Além disso, não são desenvolvidas ações de vigilância epidemiológica, considerando o acompanhamento da taxa de transmissão e o monitoramento do genoma viral, assim como o desenvolvimento de estratégias de comunicação e educação em saúde, objetivando a ampliação da consciência sanitária da população. Mesmo considerando a importância do lazer e da recuperação da economia, tais medidas poderão trazer mais danos”, destaca Bernadete Antunes, médica sanitarista e professora de Saúde Coletiva da Universidade de Pernambuco.
Outra grande polêmica que envolve medidas de segurança contra o avanço da Covid-19 é a exigência, por parte de algumas empresas, de vacinação de seu quadro funcional. Na segunda-feira 1º, o governo federal publicou uma portaria que proíbe a cobrança. O documento impede o empregador “na contratação ou na manutenção do emprego do trabalhador, exigir quaisquer documentos discriminatórios ou obstativos para a contratação, especialmente o comprovante de vacinação”. “A portaria está em descompasso com as decisões do Supremo Tribunal Federal. O STF tem decidido que prevalece a proteção coletiva sobre a liberdade individual e, por isso, há a necessidade de vacinação. Então, eu entendo que a portaria é inconstitucional, porque fere um direito fundamental, o direito à saúde, e não há nenhum tipo de discriminação em exigir que os trabalhadores apresentem a carteira de vacinação em dia. Isso, na verdade, é uma medida de proteção coletiva”, explica Cláudio Ferreira, advogado trabalhista e presidente do Conselho de Direitos Humanos da OAB Pernambuco.
Na China, o governo recomenda estocar comida. Na Europa, o repique de casos assusta
No atual contexto da pandemia no Brasil, o infectologista José David de Brito defende um programa de testagem em massa, com o uso de testes rápidos de antígeno. Além de auxiliar no controle da pandemia, a medida iria subsidiar os governos municipais e estaduais e a iniciativa privada na flexibilização de protocolos de segurança, seja para eventos culturais e esportivos, seja na relação com o trabalhador.
“Seria uma ferramenta importantíssima para consolidar essa evolução, detectar os infectados e colocá-los em isolamento para retirarmos cada vez mais a carga de transmissão, que ainda é alta no Brasil. Esse protocolo de testagem seria muito fácil e barato de ser adotado em grandes eventos, escolas, instituições, entrada de estabelecimentos de saúde, restaurantes. A tecnologia facilita, com totens detectores de sinais que poderiam identificar casos de Covid-19. Dessa forma, a gente faria uma triagem muito intensa em pouquíssimo tempo. Deveria ser prioridade, mas, infelizmente, muitos decretaram que é assim mesmo e terão de conviver com a circulação do vírus. Levado ao limite, teremos de aceitar que a morte por Coronavírus continue a ser uma companheira de viagem, o que é bastante lamentável.” Neste início de novembro, o número de mortos pelo vírus ultrapassou a marca de 5 milhões no mundo. No Brasil, o total está prestes a superar os 610 mil óbitos.
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1183 DE CARTACAPITAL, EM 4 DE NOVEMBRO DE 2021.
Fonte: Carta Capital