Feminicídio na Fercal atinge Escola Classe do Catingueiro

Todo dia um tipo de violência atinge a comunidade escolar da rede pública do Distrito Federal, sobretudo a violência doméstica. Nesta sexta-feira (27), a Escola Classe Catingueiro (EC), situada na Fercal, cancelou uma atividade pedagógica cultural, que seria realizada neste sábado (28), por causa de um feminicídio da mãe de uma estudante.
 
“Tivemos de cancelar a atividade porque estamos de luto. A escola está transtornada, abalada, insegura, sem condições de realizar um evento festivo de valorização da atividade rural. A própria comunidade não está em condições emocionais. Todos estamos tristes com o feminicídio da mãe de uma de nossas estudantes”, afirma a professora Cleyse Coelho de Oliveira Alves.
 
O crime afetou estudantes, professores e funcionários técnico-administrativos. Elaine Cristina da Silva Macedo, vice-diretora, afirma que a violência é um dos fatores que afetam as condições de trabalho de quem atua na educação e prejudica a qualidade de vida da categoria. Preparados para detectar crianças vítimas de violência doméstica, os professores da rede pública de ensino do DF acabam afetados e desgastados, psicologicamente, pela violência da comunidade que entra na escola por meio dos sofrimentos das crianças e adolescente.
 
Esse foi o caso da adolescente C.G., de 13 anos. A estudante do 5º Ano, que perdeu a mãe para o feminicídio nessa quinta-feira (26/9), já apresentava comportamento característico de quem presencia e vive a violência doméstica. Ela está na EC há 3 anos e, nesse período, mostrou uma presença irregular: saiu e voltou algumas vezes para a escola. A professora Cleyse conta que ela “é uma criança pouco comunicativa, retraída, reprimida, extremamente tímida, triste, calada. A gente vê que ela é uma pessoa sofrida. Quase não sai da sala de aula no recreio. O mesmo comportamento do pai”.
 
Elaine Macedo, vice-diretora da escola, conta que, para piorar o estado emocional da estudante, a menina presenciou o crime contra a mãe. Queila Regiane das Costa Santos, 43 anos, foi assassinada a facadas, nessa quinta-feira (26), pelo marido e pai de C.G. O crime ocorreu na residência do casal, na Fercal, região rural do DF. Ela é a 23ª vítima de feminicídio no Distrito Federal entre janeiro e setembro de 2019.
 
“Pelo que entendi da história, Queila foi morta porque estava cuidando de si e ficando mais bonita. O marido estava muito enciumado porque ela fez uma cirurgia, mudou de vida, ficou mais bonita, passou a se cuidar mais e começou a trabalhar fora, coisa que ele não estava podendo fazer porque estava com problemas na coluna. Desde sempre a gente vive esse machismo. Isso impacta muito a nossa vida enquanto mulheres”, declara a vice-diretora.
 
Elaine esteve no local do crime para prestar solidariedade e colocar a escola à disposição da família para cuidar da criança e no mais que a família precisasse.  Ela afirma que o feminicídio atingiu a todos da escola e que esse não é um caso isolado. A situação de boa parte das crianças que frequentam a EC Catingueiro preocupa e desgasta a equipe de professores e funcionários.
 
Antes do crime desta quinta, por exemplo, professoras e direção já se sentiam incomodadas com o sofrimento da filha adolescente da vítima. “Era perceptível que ela estava em sofrimento. Chegamos a convocar os pais e conversar com eles”, conta Elaine.  Há duas semanas a direção e a orientadora educacional levaram Queila e o marido na escola para conversar, descobrir os problemas e ajudar a resolver a mudança de comportamento da adolescente.
 
A mãe revelou que estava um pouco ausente da filha porque andou trabalhando fora, mas que havia saído do emprego e, agora, ela e o marido estavam trabalhando juntos em um comércio próprio no Catingueiro. “Na reunião, o pai sempre pacato e calado. Quase não falou durante a reunião. A mãe, por sua vez, era muito comunicativa, sempre presente e querida na escola”, afirma.
 
Elaine diz que o impacto deste crime foi grande. “Todas as crianças, professores e funcionários estamos muito abalados. Na quinta, a nossa equipe foi à unidade escolar apenas para cumprir a obrigação. Nos limitamos a cuidar das crianças porque a dor, o medo, a revolta e a falta de concentração na atividade pedagógica foi total para todos”, confessa. “Foi uma comoção geral. Ficamos perdidos. Isso é uma coisa que não entra na cabeça da gente. Acho que vivemos um tempo de aumento da violência contra a mulher”, completa.
 
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA ATRAPALHA A ESCOLA
Elaine diz que a história de Queila não é um caso acidental da comunidade do Catingueiro. “A violência doméstica está presente no cotidiano das famílias desta comunidade. Muitas crianças desta escola apresentam as características de vítimas dessa situação. A equipe vive em sobressalto e isso causa sofrimento nos professores e funcionários”, afirma.
 
Por causa desse clima de violência contra a mulher, direção e professores estão sempre realizando atividades que abordam e esclarecem o tema da violência contra a mulher. Recentemente, realizaram um debate com a delegada Jane Klébia, da 6ª Delegacia de Polícia (DP) do Paranoá.
 
“A gente sabe que isso é recorrente no Catingueiro e, por isso, a gente sempre aborda esse tema com os pais, busca conscientizar as crianças e dar a elas os meios para se proteger e denunciar, como o Disque Denúncia. A gente tem também um projeto interventivo com as crianças com uma pedagoga que as atende”, informa.
 
Elaine conta que quando a equipe percebe que algum estudante está em sofrimento, o encaminha para a orientadora educacional. “No dia da palestra com a delegada a gente sentiu que essa violência é uma preocupação das mães e das próprias crianças porque perguntaram muito sobre o tema e, principalmente, como e o que poderiam fazer para se defender”, relata.
 
A vice-diretora diz que a criança vítima de violência em casa tem o emocional instável, abalado e não consegue atingir sua capacidade de aprendizagem. “Temos vários exemplos aqui na escola de crianças com os sintomas desse mal. Uma delas, por exemplo, o pai já ameaçou a mãe de morte. Essa mãe já apanhou muito, já teve de se esconder no mato. É uma criança extremamente emotiva, imatura, chora por qualquer coisa, a aprendizagem é prejudicada e a criança repetiu de ano”, conta.
 
VIOLÊNCIA DOMÉSTICA É FATOR DE SOFRIMENTO PARA PROFESSORES
A violência das famílias dos estudantes também afeta os professores e funcionários técnico-administrativos. “Ontem foi um dia difícil. A gente foi trabalhar porque precisou de ir: os estudantes já estavam lá. Como somos uma escola do campo e o transporte escolar já os havia levado, tivemos de ir. Até a professora da estudante que perdeu a mãe teve de ir. Mas o pensamento de todos não estava na escola”, relata.
 
Elaine diz que quanto mais aumenta a violência na sociedade, mais a escola é afetada. “Somos mães e mulheres e, a partir do momento em que a gente vê a violência acontecendo dentro do ambiente do trabalho nosso, ou seja, à medida que a gente fica sabendo que as crianças estão passando por esse problema, não tem como não nos envolvermos. E isso acaba causando um desgaste. Isso é um dos motivos pelos quais muitos professores e outras pessoas que trabalham com educação adoecem emocionalmente”, afirma.
 
A vice-diretora diz que vê em toda a rede. “Temos muitos colegas com síndrome do pânico. A gente presencia isso não só na Escola Classe do Catingueiro, mas em toda a rede pública. É geral. Na minha escola tem professores com o emocional abalado, que já teve de se tratar da ansiedade, da depressão”.
 
FEMINICÍDIO OBRIGA ESCOLA A ADIAR ATIVIDADE PEDAGÓGICA
A atividade pedagógica que ocorreria no sábado (28/9) foi adiada. Na escola, ninguém sabe que dia a exposição de trabalhos das crianças acontecerá. Neste sábado, a comunidade iria visitar, na escola, a exposição do inventário: o resultado as atividades desenvolvidas durante o ano. Nessa ação pedagógica, a escola trabalha os aspectos culturais da comunidade escolar.
 
“É um trabalho pedagógico no qual a equipe de docentes trata das questões do campo, trazendo a história do local, dos moradores, para resgatar os valores, despertar o sentimento de pertencimento e o amor pela atividade rural. Atualmente, essa população está cada vez mais se urbanizando. Apresentaríamos os trabalhos dos estudantes, como desenhos, redações, poesias, músicas, teatro, comidas típicas, danças”, informa Elaine.
 
Ela conta ainda que a direção ia convidar também moradores antigos, bem como o casal que cedeu o terreno para a escola ser construída. “Ia ser um resgate histórico e emocional e uma exposição e festa. Cancelamos em respeito à dor da comunidade. Cancelamos porque não temos condições emocionais de fazer essa comemoração”, finaliza.
 
FEMINICÍDIO É O TEMA DA AGENDA DO SINPRO-DF
O tema da Agenda do Sinpro-DF 2019 e do Concurso de Redação e Desenho de 2018 foi o “Feminicídio: ato final da violência doméstica”. Sempre preocupado com esse problema social, o Sinpro-DF tem uma secretaria dedicada à mulher educadora.
 
É por meio da Secretaria para Assuntos e Políticas para Mulheres Educadoras que o sindicato põe em curso atividades e esclarecimentos para a categoria. Desde que implantou essa secretaria, a diretoria colegiada sentiu a necessidade de produzir atividades voltadas para o esclarecimento e suporte da categoria, bem como de um periódico exclusivo com abordagem jornalística sobre o tema da mulher, com conteúdo voltado para o magistério público.
 
Lançou o jornal Sinpro Mulher, o qual evoluiu e, hoje, a entidade publica, anualmente, a revista Sinpro Mulher. O sindicato também põe à disposição da categoria a Secretaria de Assuntos de Saúde do Trabalhador que, dentre outras serviços, oferece atendimentos psicológicos.
 
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