EXTINGUIR O MOVIMENTO NEGRO E O 20 DE NOVEMBRO ATENDE A QUAIS INTERESSES?

Há um assombro, no Brasil, após a nomeação de Sérgio Camargo para presidir a Fundação Cultural Palmares, e suas declarações, tais como: “extinguir o movimento negro e o dia 20 de novembro” e que “a escravidão negra foi benéfica”, ou ainda “Zumbi dos Palmares é um falso herói”, dentre outras que exigem uma resposta de negros/as e não negros/as comprometidos/as com a humanidade. Respostas que não são a um indivíduo isolado de seu contexto ideológico, político, cultural e social concretos.
A Fundação Cultural Palmares é um órgão do governo federal que tem como uma das missões “promover a preservação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira”. Mas, em contexto de Estado/governo/sociedade atual, cabe uma problematização: qual é o perfil exigido para assumir a presidência dessa instituição e de outras no âmbito federal/local? É a fala de Sérgio Camargo somente sua? Quais os interesses que estão subjacentes às afirmativas de Sérgio Camargo?
O PERFIL
Cada governo imprime sua marca, seu modo de governar, e até de desgovernar. Não é preciso recorrer ao modo como Sérgio Camargo se intitula, se “conservador, neoconservador” ou outra postura correlata, porque assumir qualquer cargo no governo federal hoje é se submeter aos ditames de um modo de fazer política e de organizar a economia de maneira conservadora/neoconservadora e neoliberal. Ou pensa/faz de acordo com a orientação política do Estado/governo ou está fora. Fazer escolha de um tipo de projeto de sociedade faz parte de um processo livre e democrático, mas não temos o direito de pensar-agir com perversidade.
Dizer-se “conservador/a” é um direito de quem o diz e age em conformidade com essa tendência, mas não se pode disseminar o ideário de extinção de vozes dissonantes, dentre as quais as vozes do movimento negro, do movimento social em geral, das mulheres, LGBT, indígenas, quilombolas, esquerda brasileira, etc.
O perfil escolhido para presidir a Fundação Cultural Palmares, neste cenário de indicação do nome de Sérgio Camargo pós-celebrações do 20 de novembro de 2019 e em contexto de extinção da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI) e da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial, tem a ver com o que considero negro instrumentalizado para atender interesses dominantes-dirigentes, mesma configuração representativa de Damares Alves, Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos.
Trocar pessoas nos ministérios e outros cargos no governo muda a realidade do Estado/governo/sociedade? Creio que não, porque os problemas não estão basicamente vinculados a uma pura subjetividade, nem ao indivíduo isolado de estruturas de poder. Essa realidade é o que metaforicamente se diz “trocar seis por meia dúzia”. Por essa razão, a fala de Sérgio Camargo traduz um desejo que não é só dele.
SÉRGIO CAMARGO NÃO FALA SOZINHO
Vejo que não há mera coincidência entre o desejo de extinguir o 20 de novembro e o movimento negro e banir Freire, a diversidade, direitos da mulher e demais direitos humanos. É o mesmo ideário em um contexto de crise profunda de humanidade e de civilidade sociocultural, socioambiental e de governabilidade. O desejo de Sérgio Camargo é a metáfora de um desejo maior, em nível institucional dominante-dirigente: banir o sonho de uma sociedade equitativa, livre, democrática, cidadã, soberana, solidária e amorosa. É, na verdade, o ataque ao Estado de bem-estar social com sua significação de pessoa e de mundo que vem sendo o alvo, e o protesto é urgente, mais que nunca.
O ataque ao movimento negro e ao 20 de novembro tem sua expressão em um movimento conservador/neoconservador, neoliberal e capitalista que não pode conviver em harmonia com projetos de emancipação e libertação. Trata-se de uma contradição antagônica entre projetos de dominação-opressão e projetos de emancipação-libertação. Não se trata, portanto, de uma ação/atitude isolada de Sérgio Camargo e de outras pessoas.
Vivemos, no Brasil atual (narrativas e práticas sociais), o reflexo de um fechamento político-social estrutural e estruturante. Vive-se o imperativo de uma cultura do silenciamento de vozes que clamam por libertação e bem-estar social, e não dá para culpar o indivíduo e poupar estruturas de poder opressivas. E Bertolt Brecht tem razão: “Do rio que tudo arrasta se diz que é violento. Mas ninguém diz violentas as margens que o comprimem”.
A afirmação “Zumbi dos Palmares é um falso herói”, é uma continuidade do que se tem tentado fazer ao desqualificar Freire como patrono da educação brasileira, ao criminalizar o movimento social/sindical, criminalizar e vigiar/punir docentes. Não há ingenuidade na indicação de Sérgio Camargo, nem no fato de sair dele as falas que incomodam o movimento social, as lideranças políticas comprometidas, os sindicatos, historiadores/as, e até a grande mídia que ainda não assumiu qualitativamente a causa do povo negro.
O que há de falso é a história narrada pelo/a opressor/a, a que trata Zumbi dos Palmares como herói e falso herói; a que invisibiliza contribuições de homens e mulheres que lutaram, até as últimas consequências, em defesa da dignidade, liberdade e bem-estar social. O que há de falso é a narrativa histórica de que a “África é lugar de predomínio de doenças, fome, guerra” ou, no mínimo, um “espaço exótico”. A própria categoria “herói” não tem nada a ver com Zumbi, porque ele foi e continua sendo agente político-social de mudança. Herói é categoria do ponto de vista dominante-dirigente-midiático que tem produzido também mitos. No Brasil há falsos heróis, falsos mitos e falsos salvadores da pátria no poder público, mas permanecem uma espécie de “casta intocável”.
O que ocorre, nas palavras de Sérgio Camargo, não diferente de outras pessoas que a ele se endereçam o mesmo teor, é o que Freire em Pedagogia do Oprimido chama de “oprimido que hospeda o opressor dentro de si”. Há aqui a necessidade de uma tomada de consciência da relação de opressão para extrojetar o/a opressor/a de dentro do oprimido/a, por meio do rompimento da contradição oprimido-opressor. Deve-se falar em opressores/as no plural, porque não há um Sérgio Camargo ilhado de outras pessoas hospedeiras do/a opressor/a dentro de si.
Há uma ausência de conhecimento histórico em relação à escravidão, às lutas, formação de quilombos, falsa abolição, novo pelourinho e, o pior, ausência de sensibilidade para com o tempo atual. A Lei Áurea subjugou negros/as a uma vida sem acesso à terra, moradia, trabalho, saúde, educação, em suma, sem direito à dignidade humana. Dizer “a escravidão foi benéfica ao povo negro” fere um princípio ético fundamental: viver e viver bem. Fere, da mesma forma, a conquista de leis, acordos, tratados, convenções e encontros nacionais e internacionais contra a homofobia, o racismo, o sexismo e discriminações correlatas.
Desconsiderar a nova escravidão brasileira, perpetrada pelo sistema do capital e políticas públicas desfavoráveis e ausência de políticas decentes, é fechar os olhos ao que está exposto cotidianamente: negros/as discriminados/as nas redes sociais, na subida de elevador, na escola, na abordagem policial, na rua (situação de rua – mendicância), no crescente número de analfabetismo, na organização e gestão da economia, na linguagem preconceituosa, racista e sexista, no genocídio, na reserva de vagas nos presídios, nos prostíbulos, nas favelas, etc.
O que está posto é que um bode foi introduzido na sala com o objetivo explícito de confundir a cabeça, distorcer os acontecimentos e fortalecer o status quo dominante-dirigente. É típico da corporação dominante-dirigente promover a guerra, a revolução fica por conta do/as oprimidos/as. Sérgio Camargo não está sozinho na condição de vitimado, e esse termo tem força política, porque, ao atingir um/a negro/a, atinge todos/as, inclusive o próprio Camargo que, sendo negro, sofre também as mesmas mazelas do povo negro como classe e como etnia/raça.
Bom seria que Sérgio Camargo e demais adeptos do falso heroísmo, do falso messianismo, do falso mito e da extinção de lutas históricas em favor da vida lessem as contribuições teórico-vivenciais de Grada Kilomba, Carolina Maria de Jesus, Conceição Evaristo, Meimei Bastos, Cristiane Sobral, Scholastique Mukasonga, Lázaro Ramos, Kabengele Munanga, Abdias Nascimento, etc. Para transformar a realidade é preciso conhecer e romper com a subserviência e obediência servil, e especificamente no tocante à Presidência da Fundação Cultural Palmares e em níveis mais amplos, é preciso romper com os ditames do totalitarismo do mercado que submetem indivíduos e instituições.
O grande sonho que nutro, com apelo poético, mas com profundo senso político, é que façamos um abaixo-assinado contra a arrogância e totalitarismo do sistema do capital, contra o pensamento-ação de nível sistêmico que pretende desmontar a república brasileira, a democracia, o pluralismo político-religioso, o Estado de bem-estar social e a soberania nacional. Com esse sonho, reitero a necessária importância de não subjugar o indivíduo e poupar estruturas de poder opressivas. É urgente, no contexto político-social e ideológico em que vivemos no Brasil, saber decifrar o enigma da esfinge, e, na esteira de Brecht, ao considerar o rio, há que incluir suas margens.

*Cristino Cesário Rocha é professor da rede pública de ensino do Distrito Federal. Possui formação filosófico-teológica. É especialista em Administração da Educação; Educação, Democracia e Gestão Escolar; Culturas Negras no Atlântico: História da África e Afro-brasileiros; Educação na Diversidade e Cidadania com Ênfase na Educação de Jovens e Adultos. É Mestre em Educação pela Universidade de Brasília.