Ex-aluna da rede pública de ensino do DF assume direção-geral do Arquivo Nacional

Professora da UnB, Ana Flávia Magalhães Pinto assume cargo de diretora-geral titular do Arquivo Nacional. Foto extraída do WhatsApp da professora

 

Em 185 anos, Ana Flávia Magalhães Pinto é a primeira mulher negra a ocupar o cargo de diretora-geral titular do Arquivo Nacional. Em entrevista para o site do Sinpro-DF, a professora da Universidade de Brasília (UnB) revela que toda a sua trajetória de vida está atravessada pelas lutas pelo direito à Educação.

Nascida e criada em Planaltina, Região Administrativa do Distrito Federal a 38 quilômetros do centro da capital do País, Ana Flávia é filha de Sara Ramos Magalhães Pinto, uma professora de matemática aposentada da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEE-DF), que desenvolveu um método de alfabetização próprio para ensinar sua filha a ler e a escrever em três semanas.

A nova diretora-geral titular do Arquivo Nacional conta que fez sete vestibulares para ingressar na universidade pública. “E brinco que eu sou uma pessoa gestada nas manifestações do Sinpro-DF e me orgulho muito disso porque eu cresci vendo professoras e professores dentro da minha casa, nos espaços onde estudei, lutando pela educação”.

Doutora pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre pela UnB, licenciada em História pela Universidade Paulista (Unip) e formada em Jornalismo pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília (CEUB), ela assume, no terceiro mandato do governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), o comando do Arquivo Nacional com a consciência de que há uma série de desafios pela frente.

Ela considera, dentre outras coisas, que fazer a gestão desse órgão “é algo fundamental porque a preservação e o acesso aos documentos são condições para que haja até mesmo subsídios consistentes para a formulação e o monitoramento de políticas públicas”.

No novo governo, o Arquivo Nacional passou a ter status de secretaria no recém-criado Ministério da Gestão e Inovação em Serviços Públicos, sob o comando da ministra Esther Dweck. Com respostas incisivas, a professora ensina, nesta entrevista, novos conceitos e outras direções quando perguntada sobre as várias representatividades que ela traz a público ao ser escolhida para gerir o Arquivo Nacional.

Por exemplo, ela explica que a expressão mercadológica “exemplo de mulher negra bem-sucedida” se reveste do mito da meritocracia e não deve ser vista assim. “A minha trajetória escolar é resultado dos sucessos e dos insucessos das políticas públicas de educação deste País, sobretudo daquilo que a gente entende por ‘sucesso'”. Confira, na íntegra, a entrevista.

 

ENTREVISTA | ANA FLÁVIA MAGALHÃES PINTO

 

Sinpro O que a senhora vê, atualmente, na gestão do Arquivo Nacional e o que pretende implementar no órgão?

Ana Flávia –  O que vejo é uma série de desafios que dizem respeito aos dois eixos da missão institucional do Arquivo Nacional: por um lado, fazer a gestão dos documentos gerados pela Administração Pública Federal – isso é algo fundamental porque é a partir disso que a gente vai ter condições para que tanto haja subsídios para a percepção em escala de série histórica de dados que auxiliam na formulação e no monitoramento de políticas públicas, e também até como um instrumento importante para que a gente tenha fontes documentais para pesquisa histórica e das outras áreas, como antropologia, ciências da saúde, tudo depende. Em tudo isso, o trabalho de arquivistas é central.

Por outro lado, a gente vê outro desafio que é o de fortalecer a missão institucional que é o atendimento ao público amplo, composto por pesquisadores e demais cidadãos. Os desafios afetam essas missões institucionais. As ações específicas, por sua vez, a gente não vai falar sobre isso agora porque tem um planejamento em curso que, inclusive, depende de visitas e outras ações que não queremos antecipar porque, em primeiro lugar, devemos realizar um encontro para diálogo com os(as) servidores(as) do Arquivo Nacional, previsto para acontecer na segunda e terça-feira da semana que vem. A partir daí é que vamos falar mais.

 

Sinpro – Por que o Arquivo Nacional é importante para o Brasil e seu povo?

Ana Flávia – Muito se diz, por exemplo, de uma história que a História não conta. É importante que a gente se atente para os processos em curso justamente em sentido contrário e que já produzem resultados. O Arquivo Nacional é uma instituição estratégica para que essa história que a História já conta e pode contar ainda mais aconteça porque é ali que estão guardados, preservados e disponíveis documentos por meio dos quais podemos reestabelecer narrativas sobre a nossa história nacional, com o povo, em que justamente o povo, os diversos segmentos da nossa população , seja reconhecido como sujeito social e histórico estratégico para a vida da nossa sociedade para o bem e para o mal. Digo isso porque a gente se acostumou com uma narrativa histórica em que o povo é espectador e os documentos do Arquivo Nacional, todos eles, indiscutivelmente, a despeito das intenções originais da sua produção,  permitem que a gente leia a contrapelo essas informações e perceba a presença desses sujeitos que, muitas vezes, por muito tempo, foram negligenciados. Sabemos que isso provocou uma sensação na sociedade de que o povo não teria lugar na História do Brasil, mas ele tem. A nossa história passa, indiscutivelmente, pela documentação que segue sendo preservada e disponibilizada no Arquivo Nacional.

 

Sinpro – Conte-nos sobre a emoção de se tornar na primeira mulher negra a exercer o cargo de diretora-geral de um órgão tão importante para o Brasil.

Ana Flávia – A emoção pode ser traduzida em um grande desafio, afinal de contas anos atrás, ao longo desses 185 anos, a gente nunca teve uma diretora-geral titular, é importante destacar, dentro do Arquivo Nacional. Quando muito se teve a também historiadora Maria Isabel de Oliveira, que assumiu interinamente em momentos curtos. Nesse sentido, é preciso refletir sobre essa sensação de novidade. É importante registrar que, na História do Brasil, diante da figura das mulheres negras, ou se tem uma baixa expectativa absoluta ou se tem uma superexpectativa absoluta. Afinal de contas, é um sujeito social, em termos coletivos, que não é pensado para estar nesses lugares de prestígio. É por isso que eu digo que a sensação é de estar diante de um baita desafio para o qual vai ser preciso me valer, nos valer, de aprendizados construídos ao longo de toda uma trajetória tanto minha como da equipe que vai trabalhar comigo para lidar com  as inseguranças deste momento. O importante é que a gente possa otimizar essa mobilização diante da novidade para que seguir dando conta de aspectos centrais e estratégicos para o bom funcionamento e a boa realização da missão institucional do Arquivo Nacional (AN).

 

Sinpro – O Sinpro  vê o exemplo da senhora como uma trajetória bem-sucedida e galgada, praticamente, toda dentro da rede pública de ensino. Conte como é estar nesta posição de diretora-geral do AN hoje e também em outras instituições, por exemplo, dentro da universidade, esta última considerada um ambiente historicamente restrito à elite branca intelectual, e fale também da sua origem planaltinense, filha de uma professora aposentada da rede e também ex-aluna da escola pública do DF. Como foi possível caminhar pelos caminhos da educação pública, ser mulher negra e conquistar o espaço de poder dentro da universidade pública e, agora, no AN?

Ana Flávia – A primeira coisa que é preciso sinalizar é que está sendo apontado como “trajetória bem-sucedida”. No que diz respeito a mim, mas apenas, isso  não deve ser lida como a comprovação do mito da meritocracia. A minha trajetória escolar é resultado dos sucessos e dos insucessos das políticas públicas de educação deste País, sobretudo daquilo que a gente entende por “sucesso”. Digo isso porque eu nasci e me criei em Planaltina, Região Administrativa do Distrito Federal a 38,5 quilômetros do centro de Brasília, e foi nessa cidade que eu frequentei escolas da Educação Infantil, Ensino Fundamental e depois eu fui  para o Centro de Ensino Médio  da Asa Norte, o CEAN, também uma pública. Sendo mais precisa, na educação infantil, eu estudei no Centrão, hoje CEM 01 de Planaltina. Depois fiz para a Paroquial, como era conhecido o Centro de Ensino Fundamental 02 (CEF02) de Planaltina. Em seguida, o conclui o fundamental 2 o Centrinho, o CEF01. Quando chego ao ainda segundo grau no CEAN, eu, como vários estudantes negros e negras, em meados da década de 1990, éramos afetados por baixa expectativa de ingresso na Universidade de Brasília, mas circular na Asa Norte me fez ter isso como horizonte. Mesmo assim, o ingresso não foi fácil. Eu fiz uma primeira graduação em jornalismo no CEUB – uma universidade privada –, como vários outros estudantes negros e periféricos também faziam naquela época em que até mesmo os incentivos de acesso via financiamento eram bem frágeis. A presença se dava mais por força de esforços familiares ou individuais para dar conta do pagamento das mensalidades. Tanto é que a gente via até mais estudantes negros e periféricos nas instituições de ensino superior privadas do que nas universidades públicas. Nesse sentido, eu vou ingressar na UnB somente quando eu já estava concluindo minha primeira graduação, no início dos anos 2000.

 

Sinpro – Enfim, a senhora ingressou na UnB no auge das lutas pelas políticas afirmativas de cotas e de democratização da educação superior. Como foi participar desse momento?

Ana Flávia – Entrei em Letras e ainda não tinha as cotas. Eu gosto de dizer que eu, praticamente, me graduei em vestibular porque eu fiz sete vestibulares até que ingressei no curso de bacharelado em Letras. A princípio eu sonhava com jornalismo. Sendo um curso com pouquíssimas vagas e muita concorrência com estudantes de escolas particulares, eu fui mudando de opção. Bati na trave várias vezes para o curso de Ciências Sociais, até que, considerando o que já vivia num grupo de pesquisa do qual participava na UnB, eu opto por Letras Português e passo. Nesse momento encontro a UnB numa luta intensa pela implantação de políticas de cotas e de ações afirmativas em geral. Isso é importante porque, embora eu não seja cotista, eu vivenciei lutas pela democratização da educação superior pública e de qualidade para a maioria da população brasileira. Eu, que nasci no ano das greves dos professores por direitos e pela própria defesa da educação e não só das demandas imediatas da categoria dos trabalhadores do ensino, digo com tranquilidade: eu sou fruto das melhores lutas por educação no Brasil. Mas isso não deve ser lido na chave do “e a pessoa se esforçar, os caminhos estão abertos para realização de seus projetos”. A sociedade brasileira tinha e tem muito mais costume de excluir do que essa frase sugere. É preciso dizer que muitas outras pessoas potencial para trilhar uma trajetória como a minha e foram interditadas. O Brasil não estava organizado para esta mudança de perfil. De todo modo, felizmente, as lutas para fazer essa mudança acontecer estão em curso e têm sido protagonizados por sujeitos como professoras e professores que incansavelmente lutam pelo direito à educação neste País.

 

Sinpro – Embora tão nova, a senhora faz parte de um momento histórico de luta pela democracia e pela democratização dos espaços públicos de poder. Como é estar nesses lugares?

Ana Flávia – Estar nesses lugares, ainda que eles não estejam preparados para pessoas como eu, é operar com a consciência de que, em virtude da formação vivenciada no Movimento Negro e de Mulheres Negras, a fomos preparados e preparadas para fazer com que isso mude. E não é uma ação individual. É expressão de um desejo coletivo. É uma demanda por cidadania que vai se apresentando por meio de sujeitos que estão cada vez mais conscientes de seus direitos e do potencial de melhoria que essa presença consciente, qualificada, crítica permanentemente analisada e aprofundada pode trazer.

 

Sinpro – Dentro da UnB, qual a pesquisa desenvolvida pela senhora?

Ana Flávia – Na UnB, fui aprovada incialmente num concurso para Teoria e Metodologia do Ensino de História. Nas cadeiras dessa área, fiquei de 2018 até o primeiro semestre de 2022, que acabou no fim do ano passado. Neste momento, estamos concluindo o segundo semestre de 2022, no qual ofereço, pela primeira vez, uma disciplina diferente, que foi inserida a área de História do Brasil, que é Estudos das Relações Étnico-Raciais e de Gênero. É uma disciplina que acaba articulando demandas de praticamente todas as áreas que compõem o Departamento de História. Ou seja, teoria da história, história do Brasil, história das Américas, outras temporalidades, como história moderna, contemporânea. Ou seja, é uma disciplina que a gente vai confrontando esse letramento histórico, esse letramento de mundo em que todos aqueles sujeitos que são tratados, via de regra, como os outros, são trabalhados como nós. A proposta é a ampliação dessa ideia de nós, de modo que a gente não lide com pessoas negras, indígenas, mulheres, integrantes da comunidade LGBT e outros segmentos sociais como aqueles que são acessórios, apêndices da verdadeira história, da história dos sujeitos que realmente seriam decisivos. É uma disciplina ofertada numa perspectiva inter, transdisciplinar, porque tem o objetivo de dialogar com estudantes também dos cursos de Geografia, Serviço Social, Filosofia e, por óbvio, da História. Estava me dedicando a isso porque eu venho de uma tradição de investigação sobre a agência de pessoas negras tanto em contexto de escravidão quanto de liberdade. Importante dizer que eu tenho me dedicado muito às experiências negras na e da liberdade. Em especial, àquelas que antecedem à abolição da escravidão no Brasil e em outras partes do mundo. As pessoas se acostumaram a fixar a imagem de gente negra nos limites da escravidão. Acontece  que os dados históricos que estão, inclusive, disponíveis nos documentos presentes nos arquivos, demonstram que fruto da agência de pessoas negras em defesa de liberdade e cidadania, houve uma expressiva presença de pessoas negras na condição de nascidos livres e libertos muito antes do fim da legalidade do escravismo. Isso faz com que tenhamos que nos perguntar: por que é assim que a gente enxerga a população negra? Isso no levar a admitir que isso é resultado de uma persistente negação do racismo. Essa, aliás, é uma das minhas frentes de pesquisa, a fim de desmontar esses mitos legitimados e mantidos por força justamente do racismo.

 

Sinpro – Qual a  participação de sua mãe, uma professora da rede pública de ensino, engajada na luta do Sinpro, na sua formação?

Ana Flávia – Minha mãe é a pessoa que me ensinou a sonhar. Ela é uma professora de matemática, que fez o magistério. Quanto eu entrei com 6 anos na primeira série, fui colocada numa turma de estudantes já alfabetizados, embora eu não soubesse nem ler, nem escrever. A minha mãe foi a pessoa que desenvolveu um método por meio do qual ela me alfabetizou em três semanas, praticamente. Em um bimestre, minha mãe realizou uma tarefa que estava prevista para um ano. Se eu demorasse um ano para ser alfabetizada, poderia, além de sofrer um trauma muito grande por estar entre crianças que já eram alfabetizadas, correria o risco de construir uma perspectiva em que o meu lugar dentro dos espaços da educação seria o de atraso e de desvantagem. Isso é muito interessante porque ela acreditou e apostou em mim e se valeu dessa legitimidade de ser “professora normalista” para encarar a missão de me alfabetizar. Ela que inclusive gosta de contar que, mesmo grávida, não faltou às Assembleias Gerais de 1979 da categoria, quando eu estava ainda em gestação. Então eu brinco que eu sou uma pessoa gestada nas manifestações do Sindicato dos Professores e me orgulho muito disso, porque eu cresci vendo professoras e professores dentro da minha casa, nos espaços onde estudei, lutando pela educação.

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