Estudo que identifica 130 mil órfãos da Covid-19 no Brasil alerta para os desafios da Educação

O mundo foi surpreendido, nesta semana, com uma nova notícia alarmante relacionada à pandemia do novo coronavírus. A revista The Lancet, um periódico científico qualis do Reino Unido, divulgou, na terça-feira (20), um estudo que diz haver, só no Brasil, mais de 130 mil crianças e adolescentes órfãos porque perderam o pai, a mãe, os avós ou todos os seus cuidadores para a Covid-19.

 

Susan Hillis, coordenadora do estudo e pesquisadora de doenças infecciosas do Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos EUA, mostrou que há 1,5 milhão de órfãos da pandemia pelo mundo e que o Brasil é o segundo país mais afetado pelo problema. “Se você parar agora e contar até 12, é o tempo que basta para haver um novo órfão por Covid-19 no mundo”.

 

Olga Freitas, professora da rede pública de ensino do Distrito Federal, pedagoga, mestra e doutoranda em neurociência e especialista em Gestão, Educação e Democracia, afirma que “para além dessa orfandade da Covid-19 e dos mais de 550 mil mortos registrados até agora, temos, insistentemente, dito que quem faleceu era o amor de alguém: era uma mãe de alguém, um pai de alguém, um filho, uma avó etc. Isso se concretiza neste último estudo que mostra a quantidade de órfãos que a Covid-19 deixou e deixa a cada 12 minutos”.

 

O estudo revelou que há 2,4 órfãos para cada mil brasileiros menores de idade, o quarto maior número registrado entre 21 países participantes do estudo e que, no Brasil, tem um órfão por Covid-19 a cada 5 minutos: “Pensamos que crianças não são afetadas, mas é o oposto”, afirma Hillis. Os autores do artigo científico consideram essa tragédia de “uma pandemia oculta”.

 

Eles dizem que “essas crianças não identificadas são a consequência trágica esquecida dos milhões de mortos na pandemia”. Detalhamento do estudo indica que mais de 113 mil crianças e adolescentes brasileiros perderam o pai, a mãe ou ambos para a Covid-19 entre março de 2020 e abril de 2021 e que se consideradas as crianças e adolescentes que tinham como principal cuidador os avós/avôs, esse número salta para 130.363 órfãs por causa da Covid-19.

 

O estudo indica que o Peru tem a situação mais grave, com 10,2 órfãos para cada mil menores. Em termos absolutos, o número do Brasil só não é pior do que o do México, que registra pouco mais de 141 mil órfãos, ou 3,5 por mil. Embora o Instituto Nacional dos Direitos das Criança e do Adolescente afirme que contabilizar os órfãos brasileiros é viável por meio das certidões de óbito, não há estatística oficial no País até agora.

 

“As crianças que perderam pais ou responsáveis na pandemia precisam de apoio governamental urgente ou enfrentarão danos de longo prazo”, afirmou Seth Flaxman, pesquisador do Departamento de Matemática do Imperial College de Londres e de ciência da computação da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e um dos 16 autores do trabalho.

 

Volta às aulas presenciais, impacto da orfandade e os desafios Educação

 

“Infelizmente, o Brasil vive um dos piores momentos de sua história recente. É um momento regado a um negacionismo da ciência, ao fundamentalismo, a muita ignorância e a muita intencionalidade de se destruir aquilo que a sociedade e o povo brasileiro têm de mais rico que é a sua diversidade e a sua cultura. O governo federal e o do Distrito Federal deixam à míngua a sua população porque, assim, se livram de terem de prestar o papel para o qual o Estado existe que é o de assistente social, de promotor de políticas públicas para diminuir as desigualdades”, critica Olga Freitas.

 

Segundo ela, tanto o governo federal como o distrital se eximiram e se eximem de adotarem políticas públicas em saúde, educação, trabalho, moradia etc. Ela considera esse estudo ainda superficial sobre os impactos da política econômica dos governos Bolsonaro e Ibaneis e a de combate à pandemia. “Intencionalmente, esses governos negligenciam a parte mais pobre e mais necessitada da população. Não por acaso vimos, nos primeiros meses de pandemia, o afloramento das desigualdades sociais. Essa desigualdade social ficou mais transparente e, além de ficar mais escancarado, o abismo entre os mais pobres e mais ricos aumentou. Esse estudo é um retrato ainda muito superficial da situação que vivemos neste momento”.

 

Ela assegura que essa situação de orfandade por Covid-19 impacta na educação. “O impacto dessa orfandade na Educação, por exemplo, é incalculável. Se já pensávamos que demoraríamos mais de 10 anos para recuperar os estragos que a pandemia causou nos estudantes de famílias mais pobres, principalmente porque foram desassistidos, porque a pandemia foi uma janela de oportunidade para quem quer privatizar o ensino, entregando-o a grandes conglomerados privados de tecnologia, deixaram essas crianças e adolescentes à mercê, sem acesso à tecnologia, à Internet e sem condição nenhuma de acompanhar as atividades remotas, agora, com a orfandade tanto mais. Se imaginávamos que esse acesso negado à educação já vai causar um retrocesso enorme e um problema seriíssimo em termos de escolarização, educação, cultura, situações de trabalho profissional no futuro, imaginem o que essas crianças e adolescentes perderam por não terem tido o acesso a esse período”.

A professora afirma que o Brasil e o DF precisam pensar e criar estratégias para recuperar essas crianças e adolescentes. “E não será fácil!”, avisa. O país tem de buscar também a recuperação da frequência e da participação nas escolas porque a evasão aumentou de forma gritante. “Se tínhamos de pensar estratégias para lidar com essas defasagens e problemas que surgiram, imagine o que precisaremos lidar com as crianças e adolescentes que podem ser um número muito coincidente entre crianças e adolescentes sem acesso à tecnologia, na situação de pobreza, em situação de fome. A interseccionalidade não para por aí porque também boa parte dessas crianças e adolescentes pode ser as que perderam suas mães e seus pais para a Covid-19”, alerta.

 

“Precisamos pensar em estratégias de ensino e aprendizagem, de escolarização que seja qualitativa, garanta e defenda a vida. Não pode ser a qualquer custo que a gente tenha de voltar às escolas”, diz Olga

 

Olga entende que o impacto dessa orfandade na sociedade brasileira é muito grande, maior do que o que o estudo inglês informa. “Não conseguimos calcular as dimensões desse problema, até porque não falamos que é só um problema afetivo pela perda do pai e da mãe. É também porque os vínculos afetivos constroem aprendizagens, nos constituem sujeitos de nós mesmos, nos constituem indivíduos autônomos e nos preparam para o enfrentamento da vida. Mas para além dos vínculos afetivos, o que vamos ter de crianças e adolescentes marginalizadas, sem ter quem os assumam, os orientem, os norteiem, os acolham, os ensinem os valores que estão para além da escola. O impacto dessa mortandade, totalmente evitável, essas 130 mil crianças e adolescentes até o momento órfãs, é bom que a gente lembre que a pandemia não acabou e que está num estágio muito avançado no País, que ainda nem sequer sabe lidar com as novas cepas que estão chegando, até este momento, é um número invisibilizado, mas que terá profundas consequências na sociedade brasileira”.

 

A professora diz que é preciso a sociedade inteira se posicionar, reivindicar e cobrar dos governos Bolsonaro e Ibaneis que não se pode, de maneira alguma, tomar medidas exacerbadas para o retorno às aulas presenciais de qualquer forma. “Precisamos prensar nos impactos, nas perdas, nas sequelas físicas, emocionais e sociais que a Covid-19 está deixando e precisamos pensar políticas públicas para assistir e minimizar os estragos que já são feitos até aqui. Precisamos pensar estratégias de ensino e aprendizagem, de escolarização que seja qualitativa, que efetivamente garanta e defenda a vida. Não pode ser a qualquer custo que a gente tenha de voltar às escolas”.

 

Segundo ela, a perda das crianças e adolescentes de não estarem na escola é grande, mas ela será muito maior na medida em que retomarem as atividades presenciais de qualquer forma. É preciso considerar e desenvolver estratégias de acolhimento, inclusive emocional, psicológico, que se preocupe com a defasagem de aprendizagem. Enfim, é preciso política pública para garantir que essas crianças e adolescentes estejam seguras, acolhidas, alimentadas, com seus direitos garantidos. A gente precisa lembrar que educação é um direito, mas o direito não é só ao acesso. O direito é ao acesso, à permanência com aprendizagem com êxito.

 

“Estamos felizes, enquanto professoras e professores, porque estamos sendo vacinados. Fico feliz porque a maioria da nossa categoria entenda que a vacina é um dos mais eficazes remédios para o combate ao vírus, associada, é claro, às medidas de distanciamento social e de higiene, mas isso só não basta para que retornemos às aulas. Precisamos pensar estratégias que atuem nas dimensões biopsicossocial. Não somos sujeitos só cognitivos, apenas físicos, nem apenas sociais. Somos sujeitos em que essas três potências interagem e se uma dessas dimensões não está bem trabalhada, o todo não estará bem. Precisamos antes ter um planejamento severo. Não é só dizer que a escola vai ter distanciamento social. Não basta ter álcool em gel na escola. O que não se discute e não se debate de forma alguma, e isso é intencionalmente, é o que ativa os afetos, é o que acolhe, é o que trata, dialoga, debate aquilo que alimenta os sujeitos sendo visto numa perspectiva biopsicossocial”, finaliza.

 
 
 

MATÉRIA EM LIBRAS