Estrangeira no próprio país

Estive em Oslo, entre 7 e 14 de outubro, a convite da embaixada norueguesa no Brasil. Participei de uma série de encontros com representantes do governo, sindicato de jornalistas, movimentos sociais, institutos de pesquisa. Foi uma experiência incrível de troca e aprendizado.
Um dos meus compromissos era ministrar duas palestras, uma na Universidade de Oslo e outra na Embaixada do Brasil, na mesma cidade. Nesta última, várias brasileiras que moram na capital norueguesa estiveram presentes. Ao fim do seminário, uma delas fez uma pergunta que me levou a refletir bastante.
Ela contou ser filha da mistura entre negro e branco, mas que, por ter a pele clara, era considerada branca no Brasil. Por conta disso, nunca refletia sobre o racismo. Ao morar na Noruega, percebeu que não era branca. Os habitantes do país não a viam como, e se confundiam em acertar sua origem. Na Europa, percebeu que era vista como o “outro”, aquela que não é branca e é estrangeira.
A partir desse choque de realidade, ela passou a questionar seu papel. Ao sentir na pele ser olhada como alguém que não se encaixa, percebeu a necessidade de se posicionar, e me perguntou: “Só fui perceber isso na vida adulta, mas, quando volto para o Brasil, sou bem tratada e com respeito, deixo de ser estrangeira ou estranha. Você, como mulher negra, sabe bem o que é sofrer com essa dupla violência, inclusive em seu próprio país. Como é para você ser estrangeira em seu próprio país?”
Demorei um tempo para processar a densidade daquela pergunta. É exatamente esse o sentimento que me acomete. É duro, inclusive, ter de admitir que na maioria das vezes sou mais bem tratada fora do que no próprio Brasil.
Grada Kilomba, em seu livro Plantation Memories: Episodes of everyday racism, afirma que a mulher negra é o “outro do outro”, por ser essa dupla antítese de branquitude e masculinidade. Quem não é pensada a partir de si mesma, mas por meio do olhar masculino e branco.
A cada seguida de segurança na loja, olhar de estranhamento quando estou em lugares que julgam não ser para mim, a cada “você deveria ser passista e não estudar filosofia”, a cada reportagem mostrando os números absurdos de assassinatos de jovens negros, de mulheres negras assassinadas, sei bem o que essa moça quis dizer.
Quando ligo a tevê e vejo pouquíssimos negros, penso viver na Escandinávia. Ser negra brasileira é sentir-se estrangeira no próprio país.
Patricia Hill Collins, intelectual estadunidense, afirma que o local em que as mulheres negras ocupam dentro do movimento feminista é o de “forasteira de dentro”. Por estar e ao mesmo tempo não estar, entende esse lugar como um espaço de fronteira ocupado por grupos com poder desigual, pois, ao mesmo tempo que essas mulheres estão dentro de algumas instituições, não são tratadas como iguais.
Collins aponta, porém, a necessidade de se tirar proveito desse lugar. O fato de sermos estrangeiras nos possibilita também estar num espaço de fronteira, num “não lugar” que pode ser doloroso, e é, mas também um lugar de potência.
Reconfigurar o mundo por meio de outros olhares pode ser uma perspectiva potente desse lugar, pois tem o poder de gerar algum pertencimento que não seja o de pertencer a uma sociedade doente e desigual.
*Por Djamila Ribeiro
(da Carta Capital)