Estamos assassinando o nosso futuro

Cerca de 20 dias antes de o V Encontro de Mulheres Educadoras do Sinpro-DF trazer para o seu debate o tema da violência contra a mulher, a população brasileira foi surpreendida pela notícia de crimes cometidos contra várias meninas país afora. Para se ter uma ideia, somente nesse pequeno período que antecedeu o nosso encontro, realizado no Espaço Educador Chico Mendes, na Chácara do Professor, o noticiário apresentou uma série de crimes bárbaros todos factíveis de serem julgados com base na Lei do Feminício.
No Piauí, no município de Castelo, a 190 km de Teresina, quatro adolescentes foram perversamente agredidas, violentadas e arremessadas do um despenhadeiro. Após sobreviverem a um estupro coletivo, elas foram espancadas e atiradas do alto de um penhasco de mais de 10 metros de altura no dia 27 de maio. Uma delas não resistiu e faleceu na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) do Hospital de Urgência de Teresina.
No Rio de Janeiro, no dia 16 de junho, uma menina de 11 anos, foi vítima da intolerância religiosa. Ela levou uma pedrada na cabeça quando saída de uma festa de Candomblé com a avó e um grupo de pessoas. Os dois homens que a agrediram fugiram do local do crime. Três dias depois, ela foi novamente alvo de uma manifestação de intolerância na porta do Instituto de Medicina Legal (IML), onde foi fazer exame de corpo de delito. Um homem passou em frente ao IML e gritou que a menina e sua avó, Kátia Marinho, de 53 anos, eram “macumbeiras” e deveriam “queimar no inferno”.
No Distrito Federal, no dia 10 de junho, moradores da Cidade Estrutural encontraram uma menina de 10 anos em uma área de cerrado, desacordada, com ferimentos e sinais de agressão e de abuso sexual. Outra menina, de 11 anos e também moradora da Cidade Estrutural, foi espancada por um desconhecido, no dia 16 de junho, e se recupera dos ferimentos no Hospital de Base de Brasília. Informações enviadas à Câmara Legislativa do Distrito Federal dão conta de que a criança pode ter sido usada como “moeda de troca” para pagar dívidas com traficantes de drogas.
Na semana passada, um idoso de 77 anos, após ser preso acusado de abusar sexualmente de uma vizinha, uma criança de apenas 9 anos, no Céu Azul, bairro de Valparaíso de Goiás (GO), região do Entorno do DF, colocou-se no papel de vítima, durante uma entrevista à TV Record Brasília, e disse que a menina é quem ficava em cima dele. Nesse caso, o agressor tenta passar de vítima a réu. Relatos jurídicos e policiais de violência contra mulheres apontam que a difamação é um dos principais instrumentos de defesa dos agressores de mulheres.
A criação da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) e da Lei que tipifica o Feminicídio 13.104/2015 condena esse tipo de atitude. Com base no § 8º do art. 226 da Constituição Federal, na Convenção sobre a Eliminação de todas as formas de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, a Lei Maria da Penha define que injuriar, caluniar e difamar a mulher perante delegadas(os), promotoras(es) ou magistradas(dos) em diligências pessoais, audiências ou petições constitui violação de direitos humanos grave.
ESTATÍSTICAS
Um levantamento da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República (SDH-PR) de 2015 indica que a cada duas horas e meia uma criança e/ou adolescente sofre abuso sexual e, diariamente, pelo menos dez crianças e/ou adolescentes são vítimas da violência sexual na capital do país. O estudo da SDH-PR mostra que somente nos seis primeiros meses deste ano foram registrados 1.870 casos no Distrito Federal.
O subsecretário de Direitos Humanos da Sejus-DF (Secretaria de Justiça do Distrito Federal), Mário Gil Guimarães, acredita que esse número possa ser muito maior porque algumas vítimas não denunciam os abusos com medo dos agressores que, quase sempre, fazem ameaças. “Esses são os dados que constam em registros policiais, mas certamente não fica só nisso”, disse Guimarães à imprensa.
E é verdade. Muitos crimes não são nem sequer registrados. Os números existentes aterrorizam e a violência revela que somos um país em guerra. Em 9 de março, dia da sanção da Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/2015), a presidenta da República, Dilma Rousseff, informou, em seu discurso, que hoje, no Brasil, 15 mulheres são assassinadas por dia pelo fato de serem mulheres. A lei incluiu o crime no código penal, com agravamento da pena se a violência atingir gestante ou mãe com filho de até 3 meses.
E dados oficiais da Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (SPM-PR) dão conta de que desde a criação da Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, em 2005, foram realizados 4.124.017 atendimentos. Em 2014, a Central realizou 485.105 atendimentos. Na média, 40.425 atendimentos/mês e 1.348/dia.
Dos atendimentos realizados em 2014, 32% corresponderam à prestação de informações; 16% ao encaminhamento para serviços especializados; e 40,26% a encaminhamentos para outros serviços de teleatendimento (telefonia), tais como: 190 – Policia Militar, 197 – Polícia Civil e Disque 100 – Secretaria de Direitos Humanos.
Dos 485.105 atendimentos em 2014, 52.957 corresponderam a relatos de violência. Desses relatos, 35,47% (18.869) foram encaminhados a órgãos de segurança pública e ao sistema de justiça. O encaminhamento a órgãos de investigação passou a ocorrer após a transformação da Central Ligue 180 em disque-denúncia, a partir de março de 2014. Ele depende do consentimento da mulher para sua efetivação.
Em 2014, do total de 52.957 relatos de violência contra a mulher, 27.369 corresponderam a relatos de violência física (51,68%), 16.846 de violência psicológica (31,81%), 5.126 de violência moral (9,68%), 1.028 de violência patrimonial (1,94%), 1.517 de violência sexual (2,86%), 931 de cárcere privado (1,76%) e 140 de tráfico de pessoas (0,26%).
Em comparação com 2013, a Central de Atendimento à Mulher constatou que, no tocante aos relatos de violência, em 2014 houve aumento de 50% nos registros de cárcere privado, numa média de 2,5 registros/dia, e de 18% nos casos de estupro, numa média de três denúncias/dia. O relato de violência sexual contra mulheres – estupros, assédios e exploração sexual – cresceu 20% em 2014, numa média de quatro registros/dia.
Campo Grande (MS) foi a capital com a maior taxa de atendimentos registrados, seguida por Brasília (DF) e Vitória (ES). Foi em Campo Grande que a Secretaria de Políticas para as Mulheres inaugurou a primeira Casa da Mulher Brasileira, em fevereiro de 2015. No início de junho, a presidenta da República inaugurou a segunda Casa da Mulher Brasileira no Distrito Federal. Entre as unidades da Federação, a maior procura é pelo Ligue 180 e mulheres denunciam violências em todas as regiões do país.
 
QUEM LUCRA E QUEM MORRE COM A VIOLÊNCIA
A violência é um excelente e lucrativo negócio para empresários do ramo. O Fórum Brasileiro de Segurança Pública calcula que os custos com violência no país chegam a R$ 258 bilhões. Os sistemas de segurança pública e privada investem, cada vez mais, na compra de armamentos e equipamentos de prevenção, defesa e combate. Cresce o uso de carros blindados pelas classes A e B. O Brasil tem hoje quase três vezes mais vigilantes privados do que policiais civis, militares, federais e bombeiros. Idem em relação às Forças Armadas.
A indústria de armas e munições elegeu, nas eleições de 2014, 70% dos candidatos que tiveram financiamento privado e receberam doações legais de campanha. Dos 30 candidatos beneficiados pelo setor, 21 saíram vitoriosos: 14 deputados federais e sete estaduais. Esses fabricantes, cada vez mais ativos, financiaram políticos de 12 partidos em 15 estados – a maioria do PMDB e do DEM do Rio Grande do Sul e de São Paulo.
O fato é que a violência é uma foram de fazer dinheiro e acompanha pari passu toda a história do Brasil. O país é violento e isso não é caso recente. A população indígena foi quase que totalmente dizimada no início da colonização. Era prática comum entre os colonizadores estuprarem meninas e mulheres indígenas. Alguns povos sucumbiram:  não existem mais nem miscigenados. Fomos o penúltimo país a acabar com a escravidão negra. Chegamos ao século 21 entre as cinco nações mais desiguais do planeta. E, até hoje, a tortura tem sido largamente empregada por forças policiais no dia a dia das delegacias e penitenciárias.
Somos um país em que a educação, um direito humano, é mercantilizada para poucos lucrarem com esse serviço público e poucos terem acesso a ela. O mercado de trabalho não absorve a juventude e nem as mulheres após os 50 anos de idade. Somos uma nação com profundas marcas de sofrimento. Para piorar, há uma parcela da sociedade que sente prazer em se diferenciar de seus semelhantes e de submetê-los a constantes humilhações. Boa parte galga postos importantes pela via de apadrinhamentos, mas se sente confortável em defender a meritocracia.
EXTERMÍNIO DA JUVENTUDE NEGRA
O Brasil é o segundo país do mundo, atrás somente da Nigéria, em assassinato de adolescentes. Dados divulgado pelo jornal espanhol El País, em 2013, revelam que entre 2006 e 2012 houve 33 mil homicídios. Na época, o periódico informou que “os homicídios cometidos à bala no Brasil têm cor, idade e sexo”.
Um adolescente é assassinado a cada hora, 24 por dia, geralmente pelo fato de ser pobre, por ser negro ou por ser homossexual. Se continuarmos com essa política de tentar resolver somente pela repressão, com propostas como a diminuição da maioridade penal, serão 42 mil adolescentes mortos até 2019, conforme cálculos de Gary Stahl, representante do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) no Brasil. Aqui, os jovens são 29% da população, mas concentram a metade das mortes por arma de fogo.
Estudos, levantamentos e estatísticas dessa violência não faltam. Um deles é o do Programa de Redução da Violência Letal contra Adolescentes e Jovens, realizado pelo Observatório de Favelas, o qual mostra que 19 cidades entre as 50 mais violentas do mundo estão no Brasil. Esse estudo, realizado em parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef), a Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República e o Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, mostrou que os adolescentes entre 12 e 18 anos têm quase 12 vezes mais probabilidade de ser assassinados do que as meninas dessa mesma faixa etária. Os adolescentes negros têm quase três vezes mais chance de morrer assassinados do que os brancos – geralmente por arma de fogo.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública divulgados em 2013 revela que a polícia brasileira mata, em média, cinco pessoas por dia. É uma das polícias mais violentas do mundo. Somente no Estado de São Paulo, entre 2005 e 2009, a PM matou 6% mais que todas as polícias dos EUA juntas. No Brasil, mata-se mais do que em regiões em guerra. Segundo a Anistia Internacional, o país registra cerca de 56 mil homicídios por ano. Menos de 10% desses casos são esclarecidos.
Somos sobreviventes nesse quadro de guerra. E diante dessa situação, nós, professoras, sindicalistas, educadoras não podemos nos calar e tão-somente reforçar os apetrechos de segurança em nossas residências. Não podemos nos isolar, nem ajudar a enriquecer a indústria bélica. Sabemos que a mudança dessa situação violenta e o redesenho desse quadro terá de ter o protagonismo da educação e de nossa categoria docente. É por isso que o V Encontro de Mulheres Educadoras do Sinpro-DF teve como slogan a frase: “Mexeu com uma, mexeu com todas!”
É por meio da educação que mudaremos o Brasil. Para isso, precisamos estabelecer, entre nós, uma relação de solidariedade, unicidade, cumplicidade e lealdade para combatermos a violência e construirmos no Distrito Federal uma nova sociedade: mais justa, fraterna, igualitária, que respeite os direitos de cada uma de nós.
Diretoria colegiada do Sinpro-DF
Brasília, 19 de junho de 2015