Especialistas e educadores pressionam o governo Lula para revogar a excludente do Ensino Médio

Desde 2022 começou a ser aplicada em todo o Brasil a reforma do Ensino Médio, proposta aprovada durante o governo do golpista Michel Temer. A reforma, que será implantada gradualmente até 2024, é um dos piores retrocessos da história do Brasil que pode produzir o aumento da desigualdade entre estudantes mais ricos e mais pobres. O grande prejuízo é aprofundar o abismo que existe entre as escolas. A reforma, que promete fazer uma revolução, na prática significa que vai diminuir o conteúdo da escola dos(as) alunos(as) mais pobres, se transformando um grande atraso.

O Sinpro, a exemplo da CNTE e de outras entidades ligadas à educação, tem lutado contra esta reforma, que vai acentuar ainda mais o abismo educacional no Brasil. Além de todos os aspectos negativos, a comunidade escolar não foi consultada.

A revogação da lei e o início de um novo debate para definir as diretrizes de um Ensino Médio que atenda às demandas de alunos(as), professores(as) e gestores(as) da educação é fundamental e urgente. É preciso considerar as necessidades da rede pública de ensino.

Confira abaixo a matéria completa divulgada no site Carta Capital:

 

Não há como remendar

 

Fruto de uma Medida Provisória publicada no primeiro ano do governo de Michel Temer, o surfista do golpe de 2016, a reforma do Ensino Médio volta ao debate público. As mudanças começaram a ser implantadas por etapas a partir de 2019, dois anos após o texto ser convertido na Lei 13.415/17, e passou a ser obrigatória desde o ano passado, a começar pelos alunos do primeiro ano. A introdução do novo modelo prossegue, agora, com os estudantes do primeiro e do segundo ano e, em 2024, terá de ser concluída, abrangendo os terceiranistas que se preparam para prestar o Enem, principal porta de acesso ao ensino superior público.

Desde o primeiro momento, o novo Ensino Médio sofre resistência por parte de pesquisadores, alunos e professores, que acusam a reforma de ser excludente. A justificativa é de que o modelo vai acentuar ainda mais as desigualdades no País, devido às enormes desvantagens das escolas públicas em relação às particulares na viabilização da proposta. É com esse argumento que numerosas organizações da sociedade civil pressionam o Ministério da Educação para revogar a medida.

“Esse novo Ensino Médio foi instituído por uma MP precária, então ele pode ser revogado pelo mesmo instrumento, desde que essa seja a vontade do Ministério da Educação. Além disso, já existe um projeto em tramitação na Câmara, da deputada Alice Portugal, e pretendemos apresentar um novo em termos semelhantes para ampliar a pressão pública pela revogação”, explica o deputado federal Glauber Braga, do PSOL, a liderar um movimento com mais de 300 mil assinaturas pedindo a anulação da reforma de Temer. Na avaliação do parlamentar, o atual modelo só interessa ao setor privado. “Vai estabelecer um sistema voltado exclusivamente para os interesses do mercado, com foco na profissionalização precarizada”, diz, acrescentando que o novo Ensino Médio dificulta o acesso dos pobres à universidade pública.

A reforma de Temer divide o currículo escolar em duas partes, uma comum a todos os alunos e que envolve praticamente matemática e português, e outra denominada de itinerário formativo, com conteúdos subjetivos. Cada escola monta a sua própria grade curricular e o aluno escolhe o que lhe for mais atrativo. Com esse formato foram criadas cinco áreas de conhecimento: Matemáticas e suas Tecnologias, Linguagens e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e Sociais Aplicadas e ensino técnico profissionalizante. Segundo a socióloga Ana Paula Corti, professora do Instituto Federal de São Paulo e integrante da Rede de Escola Pública e Universidade de São Paulo (Repu), os itinerários formativos geram uma formação segmentada e desigual entre as escolas, com diferenças gritantes entre um estado e outro. “Você não teria mais aquela base comum para os estudantes. Quando você fala em educação básica, você está falando de algo que é essencial para todos, e não é isso que acontece no novo Ensino Médio”, explica Corti.

Antes da reforma, havia 2,4 mil horas na grade dos três anos do Ensino Médio. Agora, são 1,8 mil horas para as disciplinas obrigatórias e outras 1,2 mil para os itinerários formativos, o que totalizaria 3 mil horas. “Como a reforma não tem um investimento financeiro, promete resolver os problemas do ensino a partir de um rearranjo curricular, mas isso não funcionará na prática. Se você vai promover uma diversificação de currículo e criar disciplinas novas, precisa contratar mais professores. As escolas terão de oferecer itinerários com base na estrutura atual. Ao cabo devem oferecer o mínimo previsto em lei, porque não têm equipes suficientes para ofertar o cardápio de disciplinas”, salienta a socióloga, ressaltando que as escolas maiores, que atendem os estratos econômicos mais elevados, acabam oferecendo um número superior de itinerários e o aluno fica com mais liberdade de escolha do que aquele com menor nível socioeconômico. “Essa segregação dentro de uma mesma rede de ensino fará com que a desigualdade aumente”.

Nesse rearranjo, disciplinas que promovem o senso crítico do aluno, como história, filosofia e sociologia, deixam de ser obrigatórias, o que tem estimulado as escolas a fazerem uma grande redução na carga horária desses conteúdos. Se na rede pública de ensino é perceptível a diferença entre escolas com mais e com menos estrutura, a disparidade entre as instituições públicas e privadas é ainda maior. “Essa reforma do Ensino Médio é fruto do golpe sofrido pela presidenta Dilma Rousseff. Jamais teria sido aprovada em qualquer cenário de tramitação legislativa em um período democrático normal. Na prática, cria várias alternativas de reduzir custos com a educação, em especial com os professores. É uma reforma que precisa ser revogada com urgência. A geração que hoje está na escola será punida por um Ensino Médio de baixíssima qualidade, que atua contra o pensamento crítico e vai impactar no acesso às universidades. E isso é cruel demais”, destaca Daniel Cara, cientista político e e pesquisador da USP.

Heleno Araújo, presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Educação, a CNTE, ressalta o caráter autoritário da reforma. Ele lembra que a comunidade escolar não foi consultada e cobra do atual governo a revogação da lei e o início de um novo debate para definir as diretrizes de um Ensino Médio que atenda às demandas de alunos, professores e gestores da educação, considerando as necessidades da rede pública de ensino. Ao ressaltar o caráter excludente da reforma de Temer, Araújo cita a evasão escolar, quando muitos alunos abandonam os estudos para trabalhar e ajudar na renda familiar. Dados de 2022 divulgadas pelo MEC mostram que o número de matrículas realizadas no ensino médio em 2022 foi 5,3% menor que no ano anterior. O sindicalista critica a equipe que compõe o Ministério da Educação, a maioria formada por empresários da educação que defendem o novo Ensino Médio, dentre eles representantes da Fundação Lemann, do empresário Jorge Paulo Lemann.

“O ministro Camilo Santana e sua equipe estão acompanhando a reforma com base apenas na nota do Ideb, que só avalia matemática, português e a taxa de aprovação. Não leva em consideração os outros aspectos da escola, não tem um olhar social mais amplo ”, critica Araújo. “O novo Ensino Médio está provocando o abandono de muitos alunos já no primeiro ano de implantação, com o aumento da carga horária. É a destruição dessa juventude. Na escola privada isso não acontece”. De fato, a reforma praticamente não foi sentida pelos alunos das escolas particulares. Isso porque a grade das disciplinas foi mantida e os conteúdos ofertados dentro do itinerário formativo são uma espécie de reforço das matérias que constam na grade obrigatória, ampliando a chance de aprendizagem dos estudantes.

“Achei bem interessante a especificidade que vai passar a ser cobrada, uma vez que cada estudante terá de se aprofundar em sua área de desejo profissional. Ainda mais quando o Enem aponta para o implante de questões discursivas da área de cada estudante, o que reduz a responsabilidade de dominar muitos assuntos que não têm relação direta com o curso que o vestibulando quer seguir”, opina Pablo Kaly, estudante do primeiro ano do Ensino Médio de uma escola particular em Pernambuco. “Mas acho que a democratização do acesso ainda é um problema muito grave, até porque diversas escolas públicas não possuem estrutura suficiente”, completa. Na escola em que Pablo estuda, a oferta de itinerário formativo vai desde química olímpica, passando por biologia prática, linguística olímpica, fotografia e história da arte, além de diferentes laboratórios que auxiliam no aprendizado. Pablo, que participou recentemente da Olimpíada de Simulação da ONU, escolheu entre as opções de itinerários formativos as eletivas de biologia prática e laboratório de física, opções que, em geral, não são oferecidas na rede pública, como é o caso do Colégio Estadual Padre Arnaldo Jansen, no Paraná.

“Depois da reforma do Ensino Médio, o que vimos foram diversas matérias serem tiradas da grade curricular. No segundo ano não tem física e a carga horária de sociologia, artes e filosofia foi diminuída. Matérias extremamente importantes, que fazem as pessoas pensarem, são tiradas da grade curricular e são colocadas matérias como robótica e planejamento de vida, pensamento computacional, sem a menor estrutura para apresentar essas matérias”, destaca Luiz Miguel Reis Mazza, concluinte do colégio Padre Arnaldo Jansen e membro do grêmio escolar. “Queremos uma reforma do Ensino Médio, porém deve ser uma reforma de qualidade. A escola pública tem uma função social, de formar cidadãos e nos preparar para a vida profissional”.

Bem diferente do que acontece no colégio de Pablo, nas escolas públicas o itinerário formativo é composto de conteú­dos que vão desde empreendedorismo até disciplinas nada convencionais, como “brigadeiro caseiro”, “confecção de almofadas” ou ainda “o que rola por aí”. Na Escola Estadual de Ensino Médio Jardim América, em Capão do Leão, no Rio Grande do Sul, por exemplo, foram ofertadas aos alunos do primeiro ano as disciplinas “Projeto de Vida”, “Cultura e Tecnologias Digitais” e “Mundo do Trabalho”. Dentre as ofertas para o segundo ano estão “Corpo e Movimento”, “Estrutura e Funcionamento da Máquina Humana” e “Gestão e Políticas Públicas”, cujos conteúdos não estão inseridos no programa do Enem e, portanto, não são passaporte para ingresso na universidade.

“Ainda não há como dimensionar perdas no longo prazo. Agora, a principal delas é não oportunizar um conhecimento integral. Com a enorme redução nas disciplinas das ciências humanas, deixamos de oportunizar conhecimentos em que os estudantes possam discutir e compreender o mundo em que vivem e a sociedade em que estão inseridos”, avalia Guilherme Bourscheid, professor da Escola Jardim América e dirigente da CNTE. “A redução de conteúdos aprofunda as desigualdades e cria um abismo entre a educação pública da classe trabalhadora e a educação privada da classe dominante”, completa.

Citada com frequência pelos críticos da reforma como grande entusiasta do novo Ensino Médio, a ONG Todos pela Educação defende a manutenção do modelo, mas reconhece falhas e aponta a necessidade de ajustes. A entidade acusa o governo Bolsonaro de não ter assumido a coordenação da implantação do projeto, deixando os estados à deriva para implantarem o novo Ensino Médio de maneira heterogênea, e cita também a dificuldade imposta pela pandemia de Covid-19. Alguns dos aspectos que precisam ser revistos, segundo o Todos pela Educação, são os referenciais nacionais para a construção dos itinerários formativos, que na visão da entidade são muito amplos e que em alguns casos tem possibilitado o surgimento de trilhas esdrúxulas, e a permissão excessiva para o EAD (20%), o que pode resultar em precarização. “Urge que o MEC organize um diagnóstico preciso e completo da atual situação a partir do diálogo com as redes, com os profissionais da educação e estudantes”, defende Olavo Nogueira Filho, diretor executivo do Todos pela Educação. Contactado pela reportagem, o MEC não quis falar sobre o assunto.

*Matéria publicada no site Carta Capital.

MATÉRIA EM LIBRAS