Entrevista | Levando memes e “fake news” para a sala de aula: conheça a pesquisa da professora Gilda

A professora Gilda das Graças e Silva tornou-se notícia na imprensa do DF porque uma pesquisa sua foi tema de uma questão do Enem. O estudo é bastante atual e de muita relevância: a interpretação de memes, os discursos ali contidos, a multiplicidade de linguagens que os compõe e as fake news.

Produto de seu mestrado em Letras na Universidade Federal de Uberlândia, a pesquisa teve diversos momentos e também incluiu os pais ou responsáveis dos estudantes. “Em muitos momentos, as pessoas compartilham um meme porque acham engraçadinho ou bonitinho; mas como há essa questão da rapidez, uma atitude impensada pode trazer diversas complicações”, aponta Gilda. “Essa prática não é só dos alunos do ensino fundamental, mas é uma prática também da sociedade contemporânea”, destaca ela.

Mineira de nascimento, da cidade de Coromandel, Gilda é filha de pais que não puderam concluir o ensino fundamental, mas dedicaram todos os seus esforços para que os filhos estudassem. Ela também teve professores que mudaram sua vida, e decidiu se dedicar à educação, área em que atua há 28 anos. Está na Secretaria de Educação desde 2004, e hoje leciona no CEF Vila Areal e no CEF 6, ambas em Taguatinga.

Leia abaixo nossa entrevista com a professora Gilda sobre sua pesquisa. Para ler o trabalho na íntegra, bem como acessar o protótipo, clique: https://repositorio.ufu.br/handle/123456789/21441.

 

 

Como surgiu a ideia do projeto?

A ideia surgiu em 2016, quando já havia um burburinho em relação ao uso do celular, que, por vezes, tornava os estudantes dispersos. Ao mesmo tempo, eu notava que atividades usando o livro didático já estavam um pouco desmotivantes, porque apresentavam, quase sempre, textos verbais. Logo, eram poucos os textos usando a linguagem não verbal, e, nesse caso, quase sempre os mesmos gêneros: histórias em quadrinhos, tirinhas, charges… às vezes, propagandas ou campanhas comunitárias.

Era preciso trazer para a sala de aula gêneros presentes no dia a dia do estudante, textos multissemióticos, que despertassem o olhar investigativo e crítico dos alunos. Considerando, assim, as redes sociais e aplicativos, defini que a proposta seria um trabalho com a leitura crítica dos memes, gênero discursivo conhecido por muitos apenas com o discurso humorístico. No entanto, era preocupante perceber memes que têm a criança como participante incentivando a adultização, a erotização, a intolerância, textos divulgando inverdades.

Esses textos circulam com muita velocidade, são replicados, podem se tornar famosos, sobreviverem ou não, uma vez que a comunicação acontece de maneira ágil. Assim, surgiu uma proposta de trabalho, que se voltava para o ensino da leitura e análise crítica por meio de textos compostos por linguagens diversas e o uso de Tecnologias da Informação e da Comunicação.

Vale ressaltar que os diálogos com minha orientadora, Dra. Maria Aparecida Ottoni Resende, foram essenciais nessas definições que eu tomava e, principalmente, no estudo mais aprofundado das bases teóricas dessa pesquisa: a Análise de Discurso Crítica, a Pedagogia dos Multiletramentos e a Gramática do Design Visual.

 

E então você passou a analisar o impacto da prática de curtir e compartilhar memes nas redes sociais com a representação da criança?

Sim. A prática de curtir e compartilhar não demandava reflexão, atenção, um olhar atento, mais apurado do leitor. Então, por esse motivo, muitos compartilhamentos divulgavam discursos que traziam inverdades – as fake news -, discursos que traziam a adultização da criança, a erotização, a exposição da criança, o preconceito, vários discursos produzidos por meio das linguagens, que nem sempre são perceptíveis. Dessa forma, era preciso ampliar o conhecimento, o olhar para a estrutura do texto, para os elementos que o compunham.

Essa desatenção não é uma prática só dos alunos do ensino fundamental, mas é uma prática também da sociedade contemporânea, que curte e compartilha diversos textos porque acha engraçadinho ou bonitinho. Isso pode ser uma atitude impensada e produzir diversas complicações: estresse, ansiedade , que foram questões trazidas por muitos estudantes durante as discussões. Então, eu percebia que, por meio da escola, por meio de um trabalho de formação e instrução, seria possível minimizar alguns problemas, orientar não só os estudantes, mas também seus pais, a comunidade escolar, em relação a essa prática.

 

Como foi a aplicação do projeto na escola?

Inicialmente, conversei com os gestores, que marcaram uma reunião com os estudantes participantes e seus responsáveis para apresentar a proposta. Para a elaboração da proposta, foram selecionados treze memes coletados nas redes sociais e aplicativos. Após esse momento de conhecimento do trabalho, apliquei um questionário e fiz uma entrevista gravada com os estudantes e também com seus pais ou responsáveis.

A partir desses dados, empenhei-me em compreender como os alunos e seus pais estavam utilizando essas tecnologias. Mesmo já tendo uma avaliação prévia, identifiquei com qual frequência eles usavam as redes, se compartilhavam os memes indicados e por quê, quais eram os objetivos deles ao utilizarem as tecnologias e as redes sociais. Esses diversos tópicos foram essenciais para definir os participantes da pesquisa e o que eles já traziam de bagagem em relação ao acesso à tecnologia, às redes sociais e aplicativos, e às leituras que já faziam desses textos.

Após essa etapa, criamos um portfólio, exploramos conhecimentos, analisamos memes, comentamos e realizamos vários momentos de compartilhamento de aprendizagens e fui registrando as impressões durante todo o processo. Juntamente com a publicação da minha dissertação, apresento esse trabalho, definido como protótipo, pois pode ser utilizado por professores e estudantes de Língua Portuguesa e de áreas afins, bem como adaptado para qualquer nível de ensino.

 

 

E como eram estruturados os encontros?

Nos encontros, observávamos os memes, suas especificidades e o fato de serem repercutidos rapidamente por meio de redes sociais e aplicativos. É um texto que utiliza uma imagem dinâmica, com movimento, às vezes com áudio. Avaliamos o participante principal dos memes, como estava representado, quais as semioses [termo da semiótica e da semiologia, utilizado para designar o processo de significação] presentes. Avaliamos a relação do texto com o contexto, refletimos sobre discursos implícitos e explícitos, se havia informações incoerentes e inverídicas, fake news e o objetivo de induzir o leitor ao consumismo, por exemplo.

Tivemos muitos momentos de interação, os alunos faziam leituras e apresentavam memes selecionados por eles conectando e compreendendo o gênero. A partir daí, comecei a fazer uma avaliação do desenvolvimento da pesquisa por meio de todos esses registros. Foi um trabalho criterioso, interessante, e eu ouvia dos participantes que conhecer mais do gênero discursivo trouxe mais cuidado para compartilhar, curtir.

 

Há, sobre esses estudantes, um impacto das fake news na formação da opinião e até de personalidade/identidade?

Sim, com certeza! As fake news, inverdades produzidas e muitas vezes realimentadas pelas bolhas sociais, podem impactar a formação de ideias e a personalidade dos jovens. Logo, a importância da formação de leitores críticos e conscientes, que compreendam os diversos discursos e as vozes que os constituem. Promover o conhecimento dos gêneros discursivos, perceber suas características, as informações implícitas e explícitas são maneiras de levar os estudantes a não agirem sem refletirem. O impacto de uma atitude impensada pode trazer diversas consequências tanto para quem curte ou compartilha quanto para quem é o participante da mensagem. Importante levar o leitor a refletir que, ao divulgar textos que tenham discurso de ódio, inverdades, você estará afetando outras pessoas. Por que essa ação? O que isso trará de positivo para quem promove a ação e quem a recebe?

Durante as discussões e as entrevistas, ouvi de alguns participantes: “ah se fosse num grupo mais restrito eu até mandava ou curtia, mas em um grupo mais ampliado, aí não”. E aí vem outra reflexão: por que algumas pessoas podem brincar com esse discurso, achar graça? Quais argumentos tenho para publicar textos em um grupo, rir e divertir-se com a mensagem, e, em outro grupo, jamais publicar e ainda avaliar como postura inadequada? Através dessa análise, foi possível perceber que por trás de um discurso de inverdades há diversas intenções. Logo, é importante socializar o conhecimento, promover discussões, mostrar esses riscos.

 

Qual foi a proposta para lidar com fake news em sala de aula? Quais foram os efeitos observados?

A pesquisa foi motivada por um problema que não era só um problema escolar, mas da sociedade contemporânea. Posso afirmar que um trabalho de socialização de ideias e observação dos elementos na composição de um texto é capaz de minimizar os efeitos dessa ação de curtir ou compartilhar textos com discursos de ódio, inverdades, adultização, preconceito.

Percebi, no decorrer do desenvolvimento da proposta, que os participantes perceberam os efeitos negativos dessa atitude e passaram a ter um olhar mais apurado para leitura e interpretação, um cuidado em observar as fontes dos textos para identificar se as informações são confiáveis, o entendimento de que um recurso tecnológico pode tanto trazer pontos positivos quanto negativos, pode promover o bem quanto promover o mal, tornar alguém famoso ou anular uma pessoa. Por meio desse trabalho, acredito que os participantes terão um cuidado maior ao curtir e compartilhar textos nas redes sociais e aplicativos bem como poderão replicar esse conhecimento em seu meio social.

Outro aspecto necessário é levá-los a perceber que acreditar apenas num grupo que tem determinados valores, ideias, gostos, hábitos pode ser perigoso. É necessário saber ouvir outras ideias, conhecer outras culturas e, a partir dessa socialização, não ficar condicionado apenas a uma ideia porque isso pode afetar a vida da pessoa. Ela pode não enxergar o que é realmente verdade. Esse fenômeno está presente no nosso dia a dia e diversos são os riscos: extremos, conflitos, hostilidades, violência, radicalização. Isso nos afeta no campo mental, no campo emocional, no campo das informações, do conhecimento, das atitudes. Então, eu não posso confiar em qualquer publicação, não posso confiar em qualquer manifestação. Preciso duvidar, preciso avaliar, preciso comprovar por meio de diversas fontes confiáveis.

 

Para além das questões da tecnologia e das linguagens, havia também o componente das relações humanas, certo?

Foi muito importante considerar em tudo isso o trato com o outro, nessa relação de formação e de informação. Saber ouvir, saber falar. Essa perspectiva aparecia nos nossos encontros: a importância de escutar o ponto de vista do outro, considerar o ponto de vista do outro, mesmo não sendo um ponto de vista igual. Dar lugar a outras opiniões ajuda a repensar. Será que eu não posso aproveitar um pouquinho disso aqui e melhorar ou diversificar a minha ideia, meu ponto de vista? Socializar o conhecimento, promover discussões, criar laços é essencial para a qualidade de vida emocional, construção de relacionamentos saudáveis e significativos.

 

Continua desenvolvendo pesquisas como essa?

Sim, acredito que a pesquisa faz parte da sala de aula, espaço ideal para análise, discussão, inovação, criação de projetos. Dessa forma, integro a minha proposta de leitura e análise crítica de textos multissemióticos ao meu planejamento, visto que é preciso trabalhar textos do dia a dia dos estudantes, discutir temas contemporâneos, prepará-los para avaliações e para os desafios que o mundo fora da escola exige.