Entrevista | Desafios da desnaturalização do machismo na escola

“Não me testa, que eu vou te dar um ‘bombril’. Não me testa. Se você apelar, vai ficar ruim para ‘tu’.”   Essa foi a resposta-ameaça dada pelo estudante que “presenteou” sua professora negra com um pacote de palha de aço da marca Bombril diante dos(as) colegas que reprovaram sua atitude. O fato, protagonizado por um estudante do Centro de Ensino Médio 09 de Ceilândia (CEM 09), aconteceu em pleno 2023, em uma escola pública do Distrito Federal, no Dia Internacional da Mulher.

Desde então, o Sinpro tem reforçado sua atuação na categoria no sentido de estimular todas as escolas a promoverem atividades de conscientização política sobre o racismo estrutural e a misoginia (ódio às mulheres) e reforçado a defesa de uma educação pública, gratuita, democrática, libertadora, inclusiva e socialmente referenciada. Nesse sentido, realizou, na semana passada, uma aula pública no CEM 09 de Ceilândia com envolvimento de toda a escola na atividade.

Na ocasião, o sindicato presentou os(as) professores(as), orientadores(as) educacionais, a direção com o caderno “É preciso ser antirracista” para subsidiar o planejamento pedagógico da escola. Confira aqui a matéria. O caderno segue as diretrizes do Artigo 2ª da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) e da Lei nº 10.639/2003, que, há 20 anos, incluiu o ensino de história e cultura afro-brasileiras nos currículos oficiais da educação do País. Na avaliação da diretoria do Sinpro, é preciso atuar pedagogicamente e aplicar a lei antirracista nas escolas para mudar, definitivamente, esse tipo de atitude.

No entanto, como afirma Márcia Gilda, coordenadora da Secretaria de Raça e Sexualidade, o fato em si constitui “crime de racismo porque atingiu e ofendeu a toda uma coletividade”. Embora a professora-alvo da situação tenha tratado o fato com serenidade e maturidade, não conseguiu esconder a gravidade do problema.  O Bombril utilizado como arma pelo estudante apenas explicita, em uma de suas formas mais cruéis, o sarcasmo, o que está enraizado na estrutura da nossa sociedade e que, nos últimos anos, retomou proporções de dois séculos atrás: o machismo.

O Bombril tira do armário e coloca uma lupa sobre um monstro que mesmo estando lá dentro já fazia muitas vítimas e, agora, perdeu o constrangimento de se expor. A misoginia e a cultura do ódio incitadas nos últimos anos no país publicamente, tirou o pudor das manifestações de intolerância, racismo, machismo, misoginia que passaram a alvejar os mais vulneráveis, principalmente as mulheres.

E o que já é inadmissível em qualquer esfera ou setor da sociedade, torna-se emblemático quando acontece na escola; que é locus próprio da esperada mudança das pessoas para a transformação social. É que a escola também sofre dos males do machismo estrutural, sobretudo ao reforçar um processo pedagógico, que se inicia na primeira infância.

Nesta entrevista exclusiva para o site do Sinpro-DF, a professora Olga Freitas fez uma análise da situação. Pedagoga, doutora em Educação, mestra em Neurociência do Comportamento, especialista em Neuropsicologia, Neuropisicopedagogia, Gestão Escolar, Libras e em Educação Inclusiva, Olga é professora aposentada da Secretaria de Estado da Educação do Distrito Federal (SEE-DF). Confira a entrevista.

 

 

ENTREVISTA | Olga Freitas

 

Professora, como esse caso da agressão do estudante do CEM 09 da Ceilândia contra a sua professora pode ser fruto de um  “machismo pedagógico? 

Olga Freitas – Bem, pedagógicos são todos os processos que têm por objetivo promover relações significativas entre a/o aprendiz e o conhecimento social e historicamente produzido pela humanidade. Esses processos tanto podem ser intencional e deliberadamente desenvolvidos para possibilitar a aprendizagem

como podem ocorrer de forma não intencional e assistemática, mas é igualmente relevante e eficaz, na perspectiva da produção e assimilação do conhecimento. 

 

Nesse sentido, a escola, seja por meio de currículos e práticas que reproduzem as características do modelo da sociedade patriarcal, seja pela ação generalizada, expressa em comportamentos e atitudes aprendidos e naturalizados, tanto em  homens quanto em mulheres, reverbera a estrutura que enaltece os valores considerados masculinos, em detrimento, desproporcional, dos valores considerados femininos. E isso vale também para as identidades de gênero e orientações sexuais que não são heteronormativas.

 

Basta ver que boa parte das rotinas escolares é estabelecida a partir daquilo que é considerado próprio de menina e o que é próprio de menino, como a organização do espaço social, dos agrupamentos, dos símbolos, da proposição dos jogos, brinquedos, conteúdos, atividades recreativas, práticas de esportes,  expectativas de comportamento, entre outros.

 

Esses aspectos separam meninas e meninos apenas com base nos estereótipos de gênero e ocorrem de forma tão natural que dificilmente percebemos o quanto contribuímos para uma educação sexista para nossas crianças e jovens.

 

Podemos dizer que isso revela a necessidade de a educação estar conectada com a política? 

Olga – Sim. A educação não pode estar desconectada da política, pois, como nos ensina Paulo Freire, educar implica, necessariamente, perguntar-se a todo tempo, que tipo de sujeito queremos ajudar a formar e para que tipo de sociedade. E isso é um ato político. Se queremos viver em um mundo mais justo e mais igual, em que mulheres e homens tenham as mesmas oportunidades, a educação deve ser, intencionalmente, livre de toda e qualquer forma de discriminação e preconceito e, para isso, a escola deve desenvolver planos, programas, ações que eduquem meninas e meninos para essa igualdade.

 

Importantíssimo também que professoras e professores, diretoras e diretores, merendeiras e merendeiros, secretárias e secretários, agentes de portaria, orientadoras e orientadores educacionais, mães e pais, enfim, toda a comunidade escolar se perceba como referência para as crianças e os jovens e que o exemplo educa muito mais do que as palavras.

 

Esse caso expõe o fato de a escola ser um ambiente tóxico para as mulheres? 

Olga – O ambiente escolar ainda é tóxico tanto para meninas quanto para meninos porque tende a reproduzir ideias e estereótipos de gênero, que valorizam mais o masculino em detrimento do feminino. Para citar um exemplo, o estudo da fisiologia humana não aborda a menstruação, como o que ela é: uma evidência da natureza; é biológica, fisiológica.

 

Ao contrário, a escola assume uma posição de aparente “neutralidade”,  para responder à parcela conservadora da sociedade, tratando o tema  como um assunto delicado e, portanto, privado. Dessa forma, a menstruação é mais um conteúdo que fica armazenado na nuvem, sem ser abordado nem na escola nem no âmbito familiar.

 

Na escola, quando abordada, a menstruação é assunto apenas nas aulas de genética,  quando o sistema reprodutor é explicado,  de forma professoral, asséptica e hermética. Além disso, muitas de nós,  professoras (que, em geral, também menstruamos), abordamos o assunto de forma inadequada, na maioria das vezes como algo nojento, por se tratar da expulsão de sangue. Essa é uma atitude que faz com que, em vez de se sentirem confortáveis com seus corpos, as meninas sintam vergonha dele; têm vergonha de fazerem parte da natureza. Mais um ponto para o machismo pedagógico.

 

Além disso, o descaso com o tema também contribui para a pobreza menstrual, que impede muitas meninas de irem à escola quando estão menstruadas, por falta de condições financeiras para comprarem absorventes higiênicos.

 

A discriminação, o bullying e outras práticas criminosas disfarçadas em piadas, por exemplo, têm uma relação estreita com a estereotipização das pessoas. Há décadas as sociedades lutam contra isso. O que é preciso fazer? 

Olga – É necessário implementar ações para desconstruir os estereótipos de gênero e remover as barreiras baseadas neles por meio de currículos inclusivos, antissexistas e que transformem impedimentos construídos, culturalmente, em oportunidades. 

Essa desconstrução passa, necessariamente, pela ampliação da participação feminina nos espaços de poder, seja pela política ou pela carreira profissional, principalmente, nas instâncias legislativas. Quanto maior o número de mulheres ocupando esses espaços, maior sua representatividade na priorização das agendas e na regulação das relações sociais. A construção de normas e regras sociais também deve incluir as mulheres, que, geralmente, são negligenciadas em razão da sua sub-representação nesses espaços.

Basta ver que, na rede pública de ensino do Distrito Federal, as mulheres são mais de 80% do corpo docente, mais de 70% na carreira assistência, mas de 70% como responsáveis legais pelos estudantes e mais de 50% do alunado, mas estão sub-representadas tanto na gestão central quanto nas gestões escolares. Nas escolas, as mulheres só são maioria nas equipes diretivas porque a maioria das escolas está direcionada à educação da primeira infância, segmento ainda fortemente associado à extensão dos cuidados maternos.

 

Esse “machismo pedagógico” se reflete nas relações internas da categoria do Magistério? 

Olga – Sim. Reflete. O processo de escolha das equipes diretivas é um exemplo claro. Mesmo com todos os segmentos da comunidade escolar compostos, majoritariamente, por mulheres, que também são as que votam e são votadas, o fato de as mulheres serem eleitas massivamente para as unidades que contemplam a educação infantil e anos iniciais, e preteridas em relação aos homens em unidades que incluem estudantes maiores e mais autônomos, é sintomático e revela a força do machismo estrutural com seus elementos inseridos na cultura feminina.

 

Professora, nesse sentido, qual o papel da escola e o que é preciso ser feito para isso ser erradicado do ambiente escolar? 

Olga –  O papel da escola não é outro senão o de  proporcionar, às meninas, condições para a superação e transformação da realidade imposta às mulheres de cuidar de coisas consideradas “menos importantes”, de serem  as únicas responsáveis por cuidar de suas casas, dos filhos, e de assumirem atividades cujo salário é menor, ou que, mesmo exercendo o mesmo cargo, recebam salários inferiores aos dos homens.

 

A escola precisa ser um ambiente seguro, intencionalmente estruturado para garantir, principalmente às meninas, a liberdade de ir e vir, de se expressar, de ser; um ambiente em que os sonhos são incentivados e fortalecidos, em que meninos e meninas desfrutam e exercem condições iguais, quer seja na tomada de decisões, quer seja nas rotinas estabelecidas no cotidiano.

 

Em outras palavras, se o machismo é pedagógico, reproduzido de forma naturalizada, por meio da transmissão de um sistema de valores, pensamentos e atitudes sexistas que reforçam o submetimento da mulher e a supervalorização do homem, a igualdade de gênero também pode e deve ser, o que requer uma intencionalidade educativa crítica nesse sentido.

 

É preciso transpor o teto de vidro que impede a mulher de avançar profissional e socialmente, incluindo a ruptura com os estereótipos de gênero e seus papéis sociais, a autopercepção imposta que as próprias mulheres têm sobre suas habilidades, a associação natural do poder com o masculino, a desvalorização do trabalho das mulheres e a desvalorização de suas capacidades intelectuais, entre outros. Precisamos, mulheres e homens, junt@s, lutar por uma educação para a igualdade de gênero.