Entrevista | “Após 5 anos descaracterizada, Comissão de Anistia retoma a Justiça de Transição”, diz presidenta Eneá Almeida

Nesta quinta-feira (30), véspera dos 59 anos do golpe de Estado que instalou 21 anos de ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985), a Comissão de Anistia realiza, no terceiro governo Luiz Inácio Lula da Silva (PT), sua primeira sessão de julgamento, entre 9h e 13h, no auditório do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania (Bloco A da Esplanada dos Ministérios). Com essa sessão, a comissão retoma a análise dos pedidos de indenização de vítimas e presos políticos do regime autoritário e pretende reavaliar casos negados pelo governo de Jair Bolsonaro (PL), que diversas vezes se declarou a favor do golpe militar de 1964.

Em razão desse entendimento, entre 2017 e 2022, a Comissão de Anistia sofreu uma descaracterização de sua concepção original e funções. Nesta entrevista exclusiva para o site do Sinpro-DF, Eneá de Stutz e Almeida, recém-nomeada presidenta da comissão, explica que, a partir de 2017, no governo Michel Temer (MDB), a Comissão de Anistia iniciou um processo de deixar de ser uma comissão de Estado e foi sendo desconfigurada em uma comissão de governo até atingir o ápice dessa transformação no período do governo Bolsonaro (2019-2022).

Em janeiro deste ano, uma das primeiras iniciativas do Governo Lula 3 foi a desmilitarização da comissão e a reconfiguração dela como uma comissão de Estado. O Ministro Sílvio Almeida, dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC), afastou militares indicados por Bolsonaro do colegiado e todos os que pretendiam reverter o entendimento de que houve perseguição política e assassinatos contra militantes da esquerda durante a ditadura.

Com a Portaria 31/2023 e por intermédio do ministro Silvio Almeida, Lula recompôs a Comissão de Anistia. Segundo informações do MDHC, os(as) novos(as) conselheiros(as) têm “experiência técnica, em especial, no tratamento do tema da reparação integral, memória e verdade”. Também conduziu ao cargo de presidenta da comissão a professora Eneá de Stutz e Almeida. Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB), especialista em Justiça de Transição, Estado de direito, democracia e direitos humanos, ela já foi conselheira da comissão.

Deste janeiro e, sobretudo nesta última semana de março, o MDHC tem realizado várias atividades para retomada das agendas institucionais de preservação da memória, da verdade, da luta pela democracia e justiça social. Informações da Assessoria Especial de Defesa da Democracia, Memória e Verdade dão conta de que, entre os dias 24 de março e 2 de abril, o MDHC iniciou a “Semana do Nunca Mais – Memória Restaurada, Democracia Viva”. “O período proposto coaduna-se com fases da História do Brasil em que o apagamento cultural e o autoritarismo tentaram mudar o curso dos acontecimentos reais e escusos aos interesses democráticos, progressistas e em defesa da dignidade humana”, informa o site do ministério.

Nesta entrevista, a professora Eneá fala para a categoria sobre a importância da Comissão de Anistia para o País e o papel histórico dela na reparação dos danos e traumas profundos que a ditadura militar causou na Nação. O golpe civil-militar-empresarial foi aplicado em 31 de março de 1964 e foi extinto em 15 de março de 1985. Os grupos golpistas eram formados, principalmente, por uma associação entre o governo dos EUA, a CIA estadunidense, as Forças Armadas brasileiras, empresários brasileiros e estrangeiros e igrejas ligadas à chamada TFP (Tradição, Família e Propriedade).

Um dos objetivos do golpe de 1964 era estrangular até destruir completamente a soberania do Brasil e transformar a Nação num pária mundial e num território sem identidade: uma mera colônia com suas riquezas subordinadas aos países ricos e a uma casta de militares e empresários. Durante 21 anos, esse grupo de fascistas, com participação ativa das Forças Armadas brasileiras, trituraram as liberdades democráticas para manter esse projeto e impedir que qualquer brasileiro questionasse a destruição da Nação e a apropriação indevida das riquezas nacionais.

Para dar um aspecto de legalidade aos crimes, fechar o regime e implantar o Estado terrorista no País, os militares editaram vários Atos Institucionais (AI), um dos principais foi o AI-5, editado em 13 de dezembro de 1968 pelo governo de Costa e Silva. O AI-5 ficou conhecido por estabelecer mecanismo “legais” de repressão. Esse ato materializou o projeto de longa data dos militares de fechamento do regime em resposta à crise política de 1968, marcada pela intensificação da oposição ao regime ditatorial da classe trabalhadora, estudantes, artistas, intelectuais, setores da Igreja Católica e até de políticos tradicionais. Confira entrevista e boa leitura!

 

ENTREVISTA – ENEÁ DE STUTZ E ALMEIDA

 

Criada por uma Medida Provisória, em 2001, e convertida na Lei nº 10.559, em 2002, qual a importância da Comissão de Anistia e, principalmente, o significado do retorno dela neste novo governo Lula?

 

Eneá Almeida – Essa lei é importante porque regulamenta o Artigo 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, da Constituição Federal, e trata da Justiça de Transição no Brasil. Também elege duas dimensões da Justiça de Transição denominadas reparação integral e o binômio memória e verdade como carros-chefes do processo transicional brasileiro e cria a Comissão de Anistia justamente para promover a reparação integral, um dos pilares da Justiça de Transição.

A Comissão de Anistia existe desde 2001. E, desde então, ela recebe requerimentos para que, comprovados os fatos que a pessoa alega, determina a reparação integral de quem foi perseguido, torturado e é sobrevivente do terrorismo de Estado. Os e as requerentes devem provar a perseguição por motivação exclusivamente política. Quando consegue provar, o requerente recebe a Declaração de Anistia Política, que pode ser com ou sem efeitos financeiros. Na maior parte dos casos, é com efeitos financeiros.

A Comissão de Anistia atua nesses processos administrativos e trabalha a reparação integral. Essa é a importância da comissão. Contudo, embora os requerimentos sejam feitos pelas pessoas perseguidas ou por seus familiares, na hipótese de a pessoa perseguida ter sido morta pela ditadura ou já ter falecido, o viúvo ou a viúva, o companheiro ou a companheira e também os(as) filhos(as) podem pedir a Declaração de Anistia post mortem.

Esse trabalho da comissão é dirigido a toda a sociedade brasileira porque se um único cidadão do País foi perseguido político, e nós temos milhares, mas se tivesse sido só um, ainda assim toda a sociedade teria sido perseguida porque se trata de terrorismo de Estado. É disso que se trata quando a gente está falando de ditadura, de Estado de exceção. Essa é a importância da Comissão de Anistia.

 

Qual é a novidade neste ano de 2023, se a comissão já existe desde 2001 e nunca parou de funcionar?

Eneá Almeida – É que neste terceiro governo Lula ela foi reconfigurada como uma comissão de Estado. A Comissão de Anistia é uma das três comissões de Estado criadas para reestabelecer a reparação integral e instituir o binômio memória e verdade no Brasil democrático. A primeira comissão criada foi a Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos; a segunda, a Comissão de Anistia; e, a terceira, a Comissão Nacional da Verdade. Acontece que, a partir de 2017, a Comissão de Anistia foi se transformando em uma comissão de governo e atingiu o ápice dessa transformação no período do governo Jair Bolsonaro (PL), entre 2019 e 2022. Agora, ela volta a ser uma comissão de Estado para promover a tarefa institucional de fazer a reparação integral dentro desse conceito de Justiça de transição.

Conte por que Jair Bolsonaro retirou essa comissão do Ministério da Justiça e passou para Mulher, da Família e dos Direitos Humanos? Qual a implicação jurídica e política disso?

Eneá Almeida –  A comissão foi criada, em 2002, no Ministério da Justiça, mas a temática é vinculada, sim, aos direitos humanos e, por uma opção do legislador, lá atrás, e também enquanto fui conselheira, entre 2009 e 2018, ela estava no Ministério da Justiça. Quando Bolsonaro assumiu, em 1º/1/2019, fez uma mudança administrativa, o que é natural nos governos quando chegam ao Palácio do Planalto. Ele criou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos e passou a Comissão de Anistia para ele. Não há implicação jurídica nessa mudança, mas há implicação política.

A implicação política é que todos os temas colocados no Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos eram dirigidos a todas as coisas que o governo Bolsonaro achava que não deviam ter proteção do Estado, como as mulheres, os indígenas, a família – porque adotou a concepção enviesada de uma única possibilidade de família, e, assim, a diversidade nas famílias não teve proteção –, e os direitos humanos também não tiveram proteção porque a lógica, aparentemente, era inspirada na frase equivocada de que “bandido bom é bandido morto” e direitos humanos só podem ser aplicados para quem cumpre a lei, para o tal do “cidadão de bem”. Isso é uma concepção equivocada de todos esses conceitos.

Assim, a Comissão de Anistia foi colocada nesse ministério não para não funcionar, mas para indeferir pedidos. E foi o que ela fez: indeferiu 95% dos pedidos de Declaração de Anistia Política. Esse número é o dado oficial repassado pelo governo Bolsonaro ao Governo de Transição do presidente Lula.

Enquanto esteve sob a tutela da ex-ministra Damares Alves, a comissão sofreu outras transformações. Por exemplo, a ex-ministra encheu a comissão de militares e, como a senhora mesmo relata, praticamente todos que compuseram a comissão nos 4 anos de Bolsonaro negavam a ditadura, o golpe de 1964 e a perseguição política. Qual o impacto político e jurídico disso? Ela, Bolsonaro e os militares conselheiros podem ser responsabilizados judicialmente por isso? Eles infringiram alguma lei? Qual? Se podem ser punidos, como? Se não podem, por quê?

Eneá Almeida – Em várias oportunidades, como em entrevistas ou em algum tipo de pronunciamento, nas redes sociais, naquelas lives que a administração anterior utilizava com frequência, por mais de uma vez, a ex-ministra Damares Alves demonstrou a intenção de encerrar as atividades da Comissão de Anistia. E como é que podem ser encerradas as atividades da comissão? Se ela acabar de julgar todos os processos. Se isso acontecer, ela não tem razão de continuar porque ela existe para julgar os processos e, se não há mais nada para ser julgado, a comissão tem de encerrar suas atividades. Não há um prazo. É uma atividade. Encerrada essa atividade, ela tem de deixar de existir. E era a intenção da ex-ministra, alardeada por ela própria em várias ocasiões, em manifestações públicas, a intenção de julgar todos os processos. Mas isso não aconteceu. Ainda existe um passivo, que não sei dizer de quantos processos. Esse levantamento ainda não foi concluído.

Vale ressaltar que não foi o presidente Lula e sim o ministro dos Direitos Humanos, Sílvio Almeida, que nomeou e emitiu uma portaria, no início deste ano, nomeando o novo conselho. Também destaco que o Governo Lula 3 manteve a Comissão de Anistia no Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania (MDHC). Numa primeira portaria, ele nomeou a mim para presidir a comissão. Em fevereiro, completando o conselho, foram nomeados 21 conselheiras e conselheiros. A comissão foi recomposta com esta perspectiva constitucional de promover as ações de reparação integral.

Essa é a importância da recomposição e ela foi feita logo agora no início do governo Lula justamente para passar esta mensagem à sociedade de que esta administração, em especial este Ministério dos Direitos Humanos e Cidadania, tem o compromisso com a Justiça de Transição no Brasil. Foi muito importante que, nos primeiros 20 dias de governo, como titular da Pasta de Direitos Humanos e Cidadania, o ministro Sílvio Almeida tenha feito essa nomeação dos novos conselheiros e, desde então, estamos trabalhando, incansavelmente, para retomarmos as sessões de julgamentos que começarão no dia 30 de março.

Quantas pessoas e famílias dessas pessoas precisam ser reparadas pelo Estado brasileiro por causa dos crimes da ditadura militar?

Eneá Almeida – Não tenho ainda ideia do quantitativo de reparação que ainda não foi feito. Sei que está na casa dos milhares, mas, talvez, seja um número inferior a 10 mil ou, talvez, um pouco superior. Não temos essa informação ainda porque não concluímos esse levantamento e não o concluímos porque estamos com um número reduzido de recursos humanos – servidores, prestadores de serviços e estagiários – na Comissão de Anistia, por causa, justamente, das limitações orçamentárias na Esplanada dos Ministérios. A única coisa que sabemos é que está na casa dos milhares. Quantos milhares? Não sei. Poucos milhares ou muitos milhares, eu não sei nem quando vamos terminar esse levantamento. Não sei dizer nem quando esse levantamento irá acontecer. Provavelmente, vai ocorrer durante este ano de 2023 inteiro por causa desse déficit de pessoal na comissão.

Mesmo estando a quase 40 anos do pós-fim da ditadura civil-militar brasileira, ainda há importância para a comissão?

Eneá Almeida – Sim. A comissão é muito importante justamente porque nesse campo da reparação integral, assim como no campo da memória e da verdade, os avanços que conseguimos desde a Constituição de 1988, em especial com a Comissão de Mortos e Desaparecidos, se transformaram em retrocessos. Tanto que criei um conceito que denominei Justiça de Transição Reversa, que foi o risco que a gente correu nos últimos 4 anos, exatamente, de perder todos os avanços e conquistas que fizemos ao longo de mais de 20 anos, mas que estavam sendo todos eles revertidos pela atuação antidemocrática que estávamos vendo nessas comissões de Estado. A comissão, portanto, é extremamente importante. Enquanto não for concluída a Justiça de Transição no Brasil, as comissões são importantes e fundamentais para que a nossa democracia não corra riscos, como ocorreu, por exemplo, no dia 8 de janeiro de 2023.

O Brasil pecou ao não punir os militares que promoveram esse terrorismo de Estado entre 1964 e 1985. Jair Bolsonaro é um exemplo dessa não punição? Como a senhora vê essa questão do ponto de vista jurídico?

Eneá Almeida – Com relação à responsabilização, sim. O Brasil errou ao não promover a responsabilização no campo penal. Ao longo dos anos, e mais recentemente, aconteceram a responsabilização não só de militares, porque o terrorismo de Estado, durante a ditadura, foi praticado por militares e também por civis. Foi praticada por empresários, empresas etc. Muita gente participou desse sistema institucionalizado de repressão, tortura, desaparecimento forçado, sequestro, estupros, homicídios, enfim, vários crimes. O Brasil errou ao não punir, ao não responsabilizar penalmente. A responsabilidade civil tem acontecido ainda que em quantidade inferior à desejada, mas há um erro, há um equívoco do Estado brasileiro por não promover a responsabilização penal.

Por que não acontece a responsabilização penal (e muitos dos executores e mandantes já morreram sem ser pagar pelo que fizeram)?

Eneá Almeida – Isso não acontece porque o Poder Judiciário não está fazendo o seu papel. Essa responsabilização civil, administrativa e penal acontece, principalmente no campo penal, exclusivamente pelo Poder Judiciário. Esse Poder tem se mostrado razoavelmente tímido porque, enfim, apresenta uma série de obstáculos que, no meu ponto de vista, não são obstáculos; é um equívoco apresentar esses obstáculos para não prosseguir com a responsabilização penal. Tenho escrito sobre isso. Produzi, no início de 2022, um livro eletrônico, um e-Book, e publiquei no meu blog, do grupo de pesquisa que coordeno na UnB. É um e-Book de acesso livre, gratuito, público e escrito numa linguagem que pretende alcançar a todas as pessoas de modo que mesmo quem não domine a linguagem técnica, jurídica, consiga acessar aquelas informações. Nele, desenvolvo todos os argumentos que permitem, do meu ponto de vista, a responsabilização penal agora, de eventuais violadores de direitos humanos. Se houver alguém ainda vivo que tenha sido, por exemplo, um torturador, essa pessoa pode e deve ser punida ainda agora: hoje, 2023.

Qual o impacto de não punir?

Eneá Almeida – É o impacto de mandar o recado de que não tem problema cometer esses crimes; que o Estado pode, eventualmente, voltar a cometer esses crimes; que pode voltar a ser um Estado de exceção e tudo bem. Infelizmente, a gente viu, nos últimos 4 anos, um segmento da sociedade brasileira, ainda que um segmento pequeno, pedindo para que voltasse a tortura, a ditadura, o AI-5, o cerceamento das liberdades individuais, as liberdades de expressão, de manifestação e isso sendo pedido em cartazes, manifestações, enfim, em grupos Brasil afora. Isso é muito grave. Não promover a responsabilização penal é uma mensagem, um recado que o Estado passa de não garantir que não possa repetir aquela experiência sombria de ser um Estado de exceção. É muito importante promover todos os pilares, fundamentos, mecanismos da Justiça de Transição. Esses mecanismos são a reparação integral, o binômio memória e verdade, a responsabilização em todos os campos, notadamente no penal, e a reforma das instituições. A reforma das instituições significa a democratização das instituições que sejam ainda profundamente autoritárias e um olhar especial para as forças de repressão, polícias e Forças Armadas. Mas não só: também o próprio Poder Judiciário, universidades. No campo da educação, se a gente tem instituições que podem ser democratizadas, devem ser. Isso faz parte desse processo transicional para o Estado democrático de direito.


Por que a existência dessa comissão é importante para a construção da cidadania do povo brasileiro?

Eneá Almeida – É importante justamente porque ela cumpre esse papel, esse mandamento constitucional de promover a reparação integral e essa reparação dirigida à pessoa que irá receber a declaração de anistiado político e seus familiares o pedido de desculpas pelo Estado ter atuado perseguindo aquela pessoa ou aquela família, mas não só. Quando há esse pedido de desculpas e a reparação, é toda a população que é reparada. Toda a população recebe esse pedido de desculpas. É uma mensagem que o Estado passa de que há uma verdadeira garantia de não repetição. Ou seja, quando uma pessoa é declarada anistiada política brasileira pela Comissão de Anistia, o Estado, ato contínuo ao deferimento da declaração, vai voltar já, no dia 30 de março de 2023, a pedir desculpas por ter se transformado num Estado de exceção, numa ditadura e por ter cometido esses crimes, esse terrorismo de Estado, e, ao pedir desculpas, está dizendo: “me perdoe, população, por eu ter perseguido vocês e nunca mais isso vai acontecer”. Isso é uma garantia de não repetição desse período ditatorial e essa garantia é de todo o povo. O Estado não vai mais perseguir nem aquela pessoa nem nenhuma outra pessoa. É um passo importante na reconstrução dos laços de confiança da sociedade civil com o Estado.

Estamos vivendo um momento de profundo esgarçamento do tecido social. As relações sociais, familiares, afetivas, estão muito desgastadas, corrompidas pelo discurso de ódio, pelo desgaste da própria relação de confiança entre as pessoas com as instituições do Estado. Daí que faz parte da reparação, de uma espécie de cura social, de terapia social, de recuperação e reconstrução desses laços sociais e da própria confiança da população no Estado brasileiro essa nova postura do Estado tanto no Poder Executivo, no qual está alocada a Comissão de Anistia, como também é importante ter uma postura semelhante e uma preocupação com a democracia por parte do Poder Legislativo e Poder Judiciário. Assim, a atuação da Comissão de Anistia, ao apreciar a perseguição política que o Estado promoveu contra cidadãos brasileiros é absolutamente fundamental neste processo de reconstrução das relações de confiança, relações sociais e até mesmo da própria democracia no Brasil.

 

Qual a relação que essa comissão tem com os direitos humanos?

Eneá Almeida – A relação da Comissão de Anistia com os direitos humanos é intrínseca porque os direitos humanos são os direitos totalmente fundamentais – outra expressão que a gente pode utilizar no lugar de direitos humanos é a expressão direitos fundamentais – que estão consagrados na Constituição brasileira, nos Artigos 5º, 6º, 7º e 8º, e trata-se de uma série de direitos que foram conquistados. Eles não foram concedidos nem dados pelo Estado, eles foram conquistados pela sociedade brasileira com muito suor e sangue. Muitas vezes custou a vida de milhares de cidadãos e cidadãs ao longo do tempo para a conquista desses direitos e eles são fundamentais para cada um e para todos nós ao mesmo tempo. Assim, alguns desses direitos são individuais, outros são sociais, outros são coletivos. Um desses direitos é justamente o direito à liberdade de expressão, de manifestação, e aí estou me referindo a direitos individuais, mas também existem os direitos sociais. Aí tem-se o direito de greve, reivindicações por melhores condições de trabalho e condições mais dignas de sobrevivência. A gente tem o direito a ter um meio ambiente preservado e aí entram muitos e muitos direitos de populações originárias, como, por exemplo, povos indígenas, também populações ancestrais, quilombolas. São muitos e muitos direitos que têm de ser respeitados e quando foram lesados por violações diretas promovidas pelo Estado brasileiro como resultado do golpe de Estado ocorrido em 1964, a Comissão vai apreciar justamente esses fatos e comprovada a perseguição, declara a anistia política. O resultado direto dessa declaração é preservação desses direitos que são direitos humanos. É umbilicalmente vinculada a atuação da Comissão de Anistia com a temática dos direitos humanos.


A senhora era conselheira na comissão quando ela foi transferida para Damares. Conte um pouco dessa experiência e fale sobre um dos principais pilares para a existência da comissão, que o conceito de Justiça de Transição.

Eneá Almeida – Quando a Comissão da Anistia foi transferida para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, eu não era mais conselheira. Eu fui conselheira entre o fim de 2009 e o fim de 2018. Em 2019, quando houve essa mudança administrativa, eu não era mais conselheira. Acompanhei os trabalhos da Comissão de Anistia por intermédio do meu grupo de pesquisa no Programa de Pós-Graduação em Direito na UnB, exatamente sobre o tema de transição de justiça no Brasil. Como eu disse em outra resposta, o conceito de Justiça de Transição é exatamente esse conjunto de mecanismos, ferramentas, dimensões, pilares, que devem ser todos eles implementados. Não importa a ordem, mas importa que sejam implementados de maneira completa para aquela determinada população, no caso, a população brasileira, alcance a reconciliação nacional. E é exatamente isso que nós precisamos neste momento no Brasil: de reconciliação nacional. Isso tem sido dito e repetido, em especial, depois desse período de muita agressividade, muita violência, muito discurso de ódio, que ainda está entre nós, e a gente não vai conseguir vencer essa etapa, não vai conseguir superar esses problemas se não promover essas ferramentas da Justiça de Transição. O objetivo da Justiça de Transição é justamente alcançar a reconciliação nacional e, para isso, a gente não pode esquecer, a gente tem de lembrar, a gente tem de reparar, de estabelecer a verdade e a gente tem de responsabilizar para que nunca mais aconteça. Essa é a ideia de maneira muito resumida da Justiça de Transição.

Fique à vontade para fazer suas considerações a respeito do tema que nos tenha passado despercebido aqui entre as perguntas

Eneá Almeida – Por fim, queria apenas sugerir, recomendar e indicar que, quem quiser aprofundar mais neste tema que acesse o blog do meu grupo de pesquisa <http://www.justicadetransicao.org/>. No blog tem vários textos. Um deles, que eu produzi na época para efeito de compor uma cartilha de direitos humanos, destinada à educação no nível básico, aqui no Distrito Federal, escrevi um texto intitulado Direitos humanos e Justiça de Transição. Tem também informações importantes, documentos e publicações que as pessoas poderão acessar a íntegra desses documentos e dessas publicações, refletir e, se quiserem debater, no nosso grupo de pesquisa, serão todos e todas muito bem-vindos e bem-vindas.

Já ficam, desde logo, todas as pessoas convidadas a acompanhar de perto o trabalho da Comissão de Anistia. A nossa primeira sessão de julgamento acontecerá no dia 30 de março, entre 9h e 13h, no auditório do Ministério de Direitos Humanos e Cidadania  (Bloco A da Esplanada). O espaço é pequeno e, por isso, pode haver alguma dificuldade para acessá-lo por estar lotado. Será uma sessão emocionante. Terá uma transmissão ao vivo pelo canal do ministério no YouTube e redes sociais e aí eu pedi à assessoria do ministério que todas as nossas sessões, que voltarão a ser públicas, tenham essa facilidade, essa condição de transmissão ao vivo pelo canal do YouTube para que haja essa transparência e interlocução da sociedade civil com a comissão de anistia.  Como eu disse em outras respostas, o trabalho da Comissão de Anistia pode até ser dirigido, e é, àquelas pessoas que protocolam o seu requerimento, mas, ao fim e ao cabo, o atingimento é para toda a população. É todo o povo brasileiro que é alcançado pelo trabalho da Comissão de Anistia. Espero, à frente desta tarefa de estar liderando esta comissão, que seja para contribuir na construção de uma sociedade mais plural, diversa, justa e solidária e, acima de tudo, democrática. Então, eu conto com a participação, a cobrança e o acompanhamento de toda a sociedade civil. A contribuição de todas e todos é sempre muito bem-vinda e será sempre acolhida por nós. Muito obrigada pela oportunidade e vamos acompanhar as sessões, as atividades e as ações da Comissão de Anistia.

 

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