Educação do Campo: uma luta por direitos

A Escola Classe Sonhém de Cima fica 13 quilômetros da Fercal, em Sobradinho, no Assentamento Contagem. A unidade escolar é fruto da luta camponesa organizada pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Após anos acampadas, as famílias conquistaram o direito à terra e também à educação pública.

Hoje, 170 estudantes do 1º ao 5º ano frequentam a EC Sonhém de Cima. Eles moram no próprio Assentamento Contagem, em fazendas da redondeza e em áreas urbanas da Fercal. São filhos e filhas de agricultores camponeses, trabalhadores rurais, diaristas, trabalhadores das fábricas de cimento situadas na região. São, acima de tudo, “sujeitos de direito”, como faz questão de lembrar o professor Sérgio Luiz, que atua há 12 anos com Educação do Campo, seis deles na EC Sonhém de Cima.

Sertanejo do Morro D’água, povoado de Barro Alto, na Bahia, o professor luta há anos para que os saberes e fazeres das populações camponesas, bem como suas matrizes formativas (trabalho, terra, cultura, história, vivências de opressão, conhecimento popular, organização coletiva e luta social), sejam pilares dos Projetos Políticos Pedagógicos das escolas do campo. Isso aliado ao Inventário da Realidade, instrumento de pesquisa-ação que identifica os aspectos sociais, históricos, geográficos, culturais e ambientais das comunidades camponesas.

Quando criança, Sérgio Luiz estudou em escola rural. E é da própria vivência que traz os argumentos consolidados da importância de uma Educação do Campo que reflita e valorize a realidade e a ciência da comunidade que atende.

“A educação rural não trazia os saberes e fazeres do campo para a sala de aula. Quem era do campo, era atrasado, era ‘da roça’. Os direitos não eram respeitados. Não tinha livro didático que refletisse nossa realidade, não tinha transporte. A Educação do Campo é diferente. Ela é uma política pública que acabou de completar 25 anos. Aliás, chamamos de Educação do Campo, das Águas e das Florestas. Aos poucos, vamos mostrando que quem estuda na escola do campo não é tabaréu (incompetente). O campo é um território repleto de partilhar de saberes, fazeres e valores que, além de produzir alimentos e vida, produz conhecimento científico, ao mesmo tempo que escreve a história de labuta e luta”, afirma.

Professor Sérgio Luiz, em atividade com estudantes da EC Sonhém de Cima

Professor Sérgio Luiz se especializou na área. Tem orgulho de dizer que tem mestrado em Educação do Campo pela Universidade de Brasília. O mesmo orgulho que brota quando fala que sua “essência é o sertão”.

“A luta pela valorização da Educação do Campo é uma luta diária. Garantimos hoje um direito e, às vezes, perdemos lá na frente. Temos que, a cada dia, sensibilizar mais e mais os educadores e as educadoras para que, quando chegarem à escola do campo, entendam que ali estão sujeitos de direitos, que devem ser valorizados e respeitados”, diz o professor.

A consolidação da importância da Educação do Campo, entretanto, é um desafio em território nacional. Segundo dados do Fórum Nacional de Educação do Campo (Fonec), de 2002 a 2022, foram fechadas 155.383 escolas em todo Brasil. Dessas, 106.410 nas áreas rurais.

No DF, a problemática não está especificamente no fechamento das escolas do campo, mas no quantitativo dessas unidades. Em todo o Distrito Federal, são 82 escolas do campo, sendo duas da Educação Infantil e apenas 13 do Ensino Médio.

“Hoje, a política implementada no DF empurra os jovens para a evasão escolar. Muitos desistem dos estudos porque não conseguem ir às escolas na cidade. Ou quando vão, não veem sua realidade lá”, explica o diretor do Sinpro-DF Raimundo Kamir.

Segundo ele, “historicamente a Educação do Campo, especialmente no Ensino Médio, sofreu com a falta de investimento e políticas públicas direcionadas, perpetuando desigualdades”. “O impacto é grande. A falta de acesso à educação de qualidade no campo limita as oportunidades dos jovens rurais de ingressarem em universidades, de construírem seu futuro profissional e até mesmo de consolidarem o pensamento crítico”, avalia Kamir.

O dirigente sindical faz questão de lembrar que “o conceito de Educação do Campo surge do processo de luta pela Reforma Agrária”. “Neste 17 de abril, completam-se 24 anos do massacre do Eldorado dos Carajás. Nesse episódio, 19 trabalhadores e trabalhadoras rurais foram mortos, quase 70 mutilados e centenas de feridos. O motivo foi lutar pelo direito constitucional à terra e os direitos que pavimentam a Reforma Agrária. Entre um dos principais, o direito à educação pública. As pessoas do campo, historicamente, são marginalizadas, alijadas de direitos. Nesse contexto, se torna ainda mais urgente não só nos somarmos à luta pela valorização da Educação do Campo, mas entendermos a importância e a valentia desses educadores e dessas educadoras que dedicam suas vidas a esta causa”, reflete.

Diante da falta de investimento em Educação do Campo, realidade prejudicial à democracia brasileira, os movimentos organizados garantiram que o Plano Nacional da Educação para o próximo decênio trouxesse como diretriz a implementação do fortalecimento dessa modalidade de ensino.

A realidade mostra que a jornada para a efetivação dessa demanda é longa e tortuosa. Se os empecilhos são grandes para estudantes do campo sem deficiência, quando se fala de crianças e jovens com deficiência, a equação fica ainda mais complicada de ser resolvida.

Professora Vilma Gonçalves do Vale atua há quatro anos no CEF Boa Esperança, no núcleo rural de Ceilândia, com estudantes com deficiência. Ela, que entende a escola do campo como “um espaço de luta”, conta com tristeza a história de um de seus alunos que está sem estudar “porque a modalidade pretendida não existe no CEF Boa Esperança, e onde tem é distante”.

“Ano passado, o aluno que eu era professora, infelizmente, evadiu. Isso porque, no estudo de caso, a gente viu que o melhor encaminhamento não era ele estar na escola do campo. Ele teria que ser matriculado em uma escola da cidade. E a mãe, por uma série de fatores, acabou não podendo matriculá-lo na escola que tinha a modalidade que o estudo de caso solicitou. Ele está sem estudar”, diz professora Vilma.

 

 

Professora Vilma Gonçalves, com estudante do CEF Boa Esperança

A docente ainda destaca uma série de outras fragilidades para a Educação do Campo voltada a estudantes com deficiência. “Quando você pega uma estratégia de matrícula, não há o respeito ao diferencial de ser Educação do Campo. A nossa escola tem um bom tempo que não tem sala de recursos. De modo geral, a educação especial das escolas do campo tem esse complicador. Se não tem um número mínimo de ENEE (Estudantes com Necessidades Educacionais Especiais) matriculado, não autorizam a ida de um colega da Sala de Recursos, por exemplo. Além disso, temos sofrido muito com a redução de turmas para atender a educação especial. No 7º ano da nossa escola, temos cinco estudantes com deficiência em uma única turma”, conta professora Vilma, que é convicta ao afirmar: “vivemos uma inclusão de fachada”.

Os problemas da falta de investimento na Educação do Campo não recaem apenas sobre os estudantes, mas também sobre professores e professoras da rede. Há 27 anos na Secretaria de Educação do DF, professora Vilma, que integra o Fórum de Educação do Campo-DF (Fecampo), afirma que “a alternativa de itinerância que a SEEDF oferece para que um profissional do Atendimento Educacional Especializado trabalhe na escola é fragilizado pela distância”. “É uma situação desafiadora para todas as escolas campesinas”, diz.

Com seus desafios e sonhos, a Educação do Campo segue sendo uma das ferramentas mais poderosas por justiça e igualdade social. Os exemplos do professor Sérgio Luiz e da professora Vilma Gonçalves são fragmentos de uma história de luta de todos os educadores e todas as educadoras que dedicam suas vidas à garantia da Educação do Campo com padrão de qualidade que contemple transporte, equipamentos tecnológicos de informação, acervo bibliográfico, espaços de lazer, material didático, formação continuada; olhar humanizado. Uma luta por direito.

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