Editorial | “Gestão Compartilhada”, um eufemismo para a intervenção militar na escola pública

Entre os desafios, está este de lecionar debaixo de chuva dentro da sala de aula

 

Mais de 450 mil estudantes retornam às aulas, nesta segunda-feira (11), e encontram o mesmo problema de todos os anos: falta de investimento. Deparam-se com a falta de contratação de professores e de orientadores educacionais concursados; encontram as mesmas escolas condenadas e falta de reformas em outras. Reiniciam os estudos sujeitados à falta do investimento financeiro e humano.

Os desafios são muitos e não param de aumentar. Este ano, por exemplo, a escola pública do DF terá de conviver com o marketing político do governo Ibaneis Rocha (MDB, ex-PMDB) que decidiu implantar, desnecessariamente, a intervenção militar em algumas escolas. E como se não bastassem os infortúnios do sucateamento da rede pública de ensino – cujo objetivo evidente é a mercantilização e a privatização do direito social à educação – a comunidade escolar tem de enfrentar o desrespeito e o proselitismo da mídia local, notadamente a coluna Visto, Lido e Ouvido, redigida por Circe Cunha, no Correio Braziliense, domingo (10/2).

Num texto mal formulado e mal-intencionado, a autora descarrega seu ódio de classe contra professores que enfrentam todos os dias os desafios impostos, propositadamente, por governos de plantão. Todavia, mesmo sob a pressão do sucateamento, esses e essas profissionais têm vencido as barreiras e colocado estudantes da escola pública dentro da Universidade de Brasília (UnB) com notas excelentes. Um levantamento do sistema de cotas indica que, em 2018, nove mil estudantes ingressaram na UnB e 45% deles vieram da escola pública. Isso mostra que a violência está na sociedade.

E significa que com menos da metade dos recursos que o GDF irá investir nas escolas sob intervenção militar e sob o sucateamento pesado, a escola pública vence os desafios, incluindo aí o da violência, que, embora venha da sociedade e das desigualdades sociais, na concepção de Ibaneis está dentro das escolas.  O texto da colunista desrespeita o Sinpro-DF, entidade de uma categoria consciente que, de lá do chão da escola, cobra da sua instância sindical a crítica sistemática, pertinente, consciente e consequente da política de sucateamento e privatização com intervenção militar nas escolas públicas do DF.

Importante recordar que, diferentemente do que diz a colunista do CB, os(as) docentes formam uma categoria de opinião firme que, historicamente, sempre defendeu a democracia. O Sinpro-DF foi criado debaixo das botinas de uma ditadura militar que exterminou pessoas defensoras da liberdade de pensamento e de opinião. O sindicato foi criado por uma categoria avessa e contrária a qualquer tipo de patrulhamento, incluindo aí este da mídia conservadora e privatista, que defende a opressão dos mais carentes para tentar omitir o real problema da violência fazendo de conta que o problema está na escola.

O movimento é o contrário do que diz a colunista. Em vez de o Sinpro-DF criar o senso comum da categoria, o que ocorre é justamente o contrário. O sindicato foi criado pela sua base, ou seja, pela categoria para fazer frente justamente a esses ataques e defender a escola livre, gratuita, pública, democrática, de qualidade socialmente referenciada. Uma escola que, como defendeu Antonio Gramsci, deve ser humanística, capaz de desenvolver a inteligência e a formação consciente; uma escola aberta de fato para conquistar a liberdade.

A inconsequente ação do governo e a irresponsabilidade da mídia parecem ter vieses de uma omissão que cuida de esconder do público os verdadeiros objetivos das intervenções, assim como ocultam os valores reais contidos nos cofres públicos destinados à prestação do serviço público de qualidade. Por causa dessa falta de transparência, números obscuros e opiniões autoritárias, mais de meio milhão de pessoas e 678 escolas terão um desafio e um infortúnio a mais em 2019.

A insistência em impor a militarização em quatro escolas do DF visa a mexer com o imaginário da população carente no sentido de criar uma ilusão de uma escola ideal quando, na verdade, 450 mil estudantes, de acordo com a proposta do governo com o “Programa de Gestão Compartilhada”, ficarão de fora porque as demais escolas públicas continuam relegadas ao desprezo e iniciam o ano letivo de 2019 com a mesma falta de recurso financeiro e humano que têm enfrentado sistematicamente.

O governo Ibaneis não mudou seu posicionamento nem mesmo depois de, nesses últimos 40 dias, ter recebido críticas do sindicato, de juízes, de especialistas em educação e em segurança pública, de deputados distritais e da própria Secretaria de Estado da Educação (SEEDF), que emitiu um parecer técnico dizendo que a militarização não era o caminho, e resultou na demissão do subsecretário de Educação Básica do DF, Sérgio Elias, que escreveu o documento sobre os impactos da intervenção militar nas escolas.

Fez ouvido de mercador para o fato de que a escola reproduz as relações de poder da sociedade, que a violência não está associada a nenhum segmento específico e que a construção da paz está, visceralmente, ligada ao exercício da democracia e à expressão de todas as vozes que integram o universo escolar. Ignorou até mesmo a defasagem de quase cinco mil servidores no setor de segurança pública ocorrida durante o governo Rodrigo Rollemberg . Entre 2015 e 2018, o DF perdeu 17,2% do seu efetivo. A maior parte do desfalque ocorreu na Polícia Militar, que conta com 3.888 integrantes a menos, ou seja, 25,7%.

Desprezou a opinião de juízes, como a da juíza Gláucia Foley, coordenadora do Programa Justiça Comunitária e membra da Associação dos Juízes para a Democracia. Em artigo publicado na página de Opinião do Correio Braziliense, desta segunda-feira (11), a juíza Gláucia diz que “o projeto denominado “Programa de Gestão Compartilhada”, um eufemismo para a militarização das escolas, representa um movimento diametralmente oposto à pacificação nas escolas por meio do desenvolvimento da autonomia, essencial para o exercício da ética democrática”.

Ela alerta para o fato de que “quando o comportamento ético depende de um sistema pautado na vigilância e na punição, a consciência moral não se desenvolve. A cidadania – cuja dimensão mais valiosa está na alteridade entre os seres humanos – não se constrói pela obediência cega às normas, pelo cumprimento às liturgias marciais e pela punição como mecanismo de controle comportamental”. Sabemos, e o governo também sabe, que o modelo de escola pública com melhor rendimento do país são os Institutos Federais, nos quais não há militarização.