Desvio de R$ 30 milhões das creches aprofunda voucherização da Educação Infantil

O governo Ibaneis Rocha (MDB) desviou R$ 30 milhões do Orçamento público destinado às creches que atendem crianças de 0 a 3 anos da rede pública de ensino para pagar empresas privadas de terceirização. A denúncia do site Metrópoles mostra que o remanejamento do dinheiro da escola pública para empresas privadas foi publicado no Diário Oficial do Distrito Federal (DODF) de quinta-feira (14/7). Apuração do jornal revela também que o valor será destinado a no mínimo seis empresas privadas prestadoras de serviços para o Governo do Distrito Federal (GDF), que mantêm contratos de manutenção e vigilância com a Secretaria de Estado de Educação (SEE-DF).

 

Trata-se, segundo o jornal, da Confederal – ligada ao ex-senador Eunício Oliveira (MDB) – e Real JG, de propriedade da família do deputado distrital José Gomes (PP). Ambos os políticos de partidos que compõem o chamado “centrão”, ligado ao presidente Jair Bolsonaro (PL). Ainda segundo o jornal, “a decisão contraria a recomendação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) sobre a necessidade de ampliação de ofertas para crianças em creches conveniadas pela rede pública local (veja a imagem no final deste texto). De acordo com um projeto básico elaborado pela Pasta, a estimativa de 2022 seria o suprimento de vagas para 20 mil crianças em creches em todo o Distrito Federal. Até o fim de 2021, o benefício apoiava aproximadamente 4 mil pequenos.

 

A lei que criou o Cartão Creche é de 11 de janeiro deste ano. Atualmente, são cerca de 60 instituições privadas que participam do programa. Os beneficiários são crianças inscritas no cadastro de solicitação de vagas em creches das Coordenações Regionais de Ensino (CRE). O GDF repassa o valor de R$ 803,57 por criança, mensalmente, para que os pais ou responsáveis possam efetuar o pagamento às escolas conveniadas.  Segundo a Lei Distrital nº 7.064/22, as famílias podem usar a quantia e complementar com recursos próprios os valores das mensalidades cobradas pelas creches.

 

 Voucherização da educação infantil

Edna Rodrigues Barroso, professora aposentada da SEE-DF, mestra e doutora em Educação, afirma que qualquer retirada, remanejamento ou inexecução de recursos destinados à educação causa prejuízos não somente às crianças, mas também às suas famílias e à sociedade. “O cartão creche, política de onde os recursos foram remanejados pelo governo Ibaneis, não é defendida pelos momentos sociais e educacionais, visto que é uma espécie de terceirização da Educação Infantil. Entretanto, se havia uma destinação de recursos para a educação, deveria ter sido aplicada na íntegra. Os movimentos sociais, educacionais e sindicais e as pesquisas acadêmicas defendem que os recursos orçamentários da educação sejam utilizados na construção, ampliação e qualificação das redes públicas. O cartão creche, os conveniamentos e outros tipos de propostas de vouchers são, na verdade, políticas de privatização e precarização da oferta educacional, pela transferência de recursos da esfera pública para a privada”, denuncia.

 

Ela afirma que esse movimento de conversão do direito à educação a uma mera mercadoria é uma negação de um direito, fazendo com que a política pública se transforme em um bem de consumo individual e desobrigando o Estado em relação às suas responsabilidades sociais e coletivas. “O governo Ibaneis, afinado com o governo Bolsonaro, abraça essa conversão e, de acordo com interesses opacos, opera remanejamentos que afetam justamente a Educação Infantil e, por consequência, a primeira infância. Ou seja, uma mudança de rumos que afeta, como sempre, justamente os mais vulneráveis. Nossa luta é por mais vagas na rede pública na Educação Infantil, com profissionais concursados e qualificados, infraestrutura, recursos e insumos satisfatórios, prédios com arquitetura e equipamentos adequados, formação inicial e continuada voltada para a infância, gestão democrática, participação das famílias e, principalmente, tendo os/as pequeno(a)s como centro do processo político e pedagógico”.

 

Cida Camarano, professora aposentada da SEE-DF, mestre e doutora em Educação pela Universidade de Brasilia (UnB) e membro do Comitê Diretivo do Movimento Interfóruns de Educação Infantil e do Fórum de Educação Infantil do Distrito Federal (FEIDF), considera um absurdo apenas pensar nisso. Ela diz que a Educação Infantil é a primeira etapa da Educação Básica e é uma etapa cara porque exige um quantitativo menor de criança por turma exatamente para ter esse atendimento mais atencioso às necessidades e particularidades de cada criança; requer estrutura física adequada, com mobiliário que atenda ao conforto e à segurança das crianças, parque infantil, parque de areia, jardim, brinquedoteca, refeitório, sala de vídeo e literatura; recursos pedagógicos diversificados: brinquedos e jogos, materiais para atividades de artes; alimentação diversificada. Enfim, é uma etapa que precisa de investimento.

 

“Sem contar que, pela Meta 1 do PDE, seria preciso até 2016 universalizar o atendimento na pré-escola e atender, no mínimo, 60% dos bebês e crianças bem pequenas em creche até 2024. Sendo ao menos 90% desse total em período integral. Os últimos dados que acessamos são de 2020, 45,8% da Educação Infantil ofertada na rede pública direta, 21,3% na rede conveniada. Uma vez que a rede parceira é a que oferta maior número de matrículas em tempo integral, estamos longe de atingir as metas do PDE. O mesmo censo apontou que apenas 77,9% das escolas públicas que ofertam Educação Infantil no DF têm biblioteca; 90,2% têm brinquedos para Educação Infantil; 89,5% têm jogos educativos; apenas 46% dispõem de materiais para atividades artísticas; 84,1% têm banheiro específico para crianças de Educação Infantil; 84,8% têm algum recurso de acessibilidade; apenas 58,7% têm área verde; 89,1% têm parque infantil; 93,1% têm pátio. Portanto, há muito por fazer para a oferta de Educação Infantil de qualidade. Esse recurso que será desviado para outros fins impactará diretamente nesses aspectos, sem mencionar a formação continuada dos profissionais e pagamento de salários para mais profissionais e construção de escolas”, explica Cida Camarano.

 

Lacunas e o impacto do desvio do dinheiro

O Sinpro-DF sempre tem denunciado, em matérias divulgadas no site, que esse e outros tipos de desvios sucateiam o ensino público e promovem pioras expressivas no sistema de educação infantil na rede pública de ensino do DF. O governo Ibaneis Rocha é um desses governos que mais criaram esse tipo de problema do que soluções por falta de investimento do dinheiro público no setor. Uma das grandes lacunas da Educação Infantil é a falta de vagas de todas as famílias que buscam atendimento para suas crianças de 0 a 5 anos de idade.

 

“Nas Coordenações Regionais de Ensino (CRE) existem listas de espera por vaga, especialmente na faixa etária de 0 a 3 anos. Afinal, as mães precisam retomar a vida profissional e pessoal a partir do momento em que o bebê completa 4 meses de idade e a creche é um local em que há segurança, proteção, cuidado e educação especialmente planejada para crianças pequenas. Infelizmente, tanto em nível federal quanto em nível distrital, não vemos esforços integrados e eficazes no sentido de dar o atendimento adequado à primeira infância, configurando um descumprimento de um direito.  Na verdade, a Meta 1, do Plano Nacional de Educação (PNE) e do Plano Distrital de Educação (PDE), que diz respeito à ampliação da oferta de vagas na Educação Infantil, ainda não foi plenamente alcançada e dificilmente será visto que não há o necessário planejamento orçamentário com a sua devida execução a partir de uma priorização política”, denuncia Edna Barroso.

 

A professora considera ainda que o mais grave reside no fato de que a faixa etária de acesso à creche é muito curta, em torno de 3 anos. Pela falta de vagas, boa parte das nossas crianças pequenas não terá a oportunidade de usufruir do direito à educação. “Um dos grandes ganhos de uma criança frequentar a escola desde cedo é desenvolver-se integralmente em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade. Investir na Educação Infantil, tanto na creche quanto na pré-escola, é assegurar que a cidadania plena não seja uma conquista do futuro, mas uma condição de acesso a direitos desde o presente. Crianças atendidas na escola têm mais oportunidades não somente em relação à educação e cuidado, mas também usufruem de mais possibilidades de saúde, alimentação, socialização, dignidade, brincadeiras, autonomia, proteção contra abusos e maus tratos”.

 

Cida Camarano, por sua vez, alerta para a voucherização da educação. “O primeiro ponto que levanto é o número de crianças nas turmas. Com o aumento de demanda na rede pública pós pandemia, não construíram escolas. Somado-se ao problema de a Educação Infantil ainda ser ofertada em Escolas Classe, CEFs e CEDs, a SEE-DF aumentou o quantitativo de crianças por turma na Educação Infantil. Enquanto os indicadores internacionais apontam um quantitativo de, no máximo, 20 crianças por professor; neste ano de 2022 a estratégia de matrícula estabeleceu 30 crianças por turma. A mesma estratégia permite um acréscimo de 10%, o que representaria 33 crianças por turma, no entanto, sabemos de instituições com até 38 crianças de 4 e 5 anos por turma. Isso inviabiliza o trabalho centrado nas relações e na brincadeira”.

 

Ela diz que o GDF tem se esquecido de que Educação Infantil é a primeira etapa da educação básica, que, segundo as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (BRASIL, 2009), indissocia educação e cuidado. “E nos perguntamos como é possível ofertar uma educação de qualidade com essa quantidade de crianças por turma? A Educação Infantil não é depósito de criança, precisa ter estrutura adequada para que as crianças aprendam e se desenvolvam por meio dos campos de experiências (BNCC, 2017) e, novamente, nos perguntamos, como é possível viver essas experiências e aprender observando, perguntando, brincando, descobrindo o mundo com essa quantidade de crianças por sala?”, indaga.

 

Camarano também aponta outra problemática. “É a exigência de pelo menos seis crianças por turno com necessidades específicas para assegurar a Sala de Recursos Multifuncionais nos CEI ou Jardins de Infância. Isso fere o direito das crianças, pois a SRM não é uma espécie de reforço, ela atua junto a toda a comunidade escolar, articula a inclusão na sala comum e demais espaços da instituição e com os demais profissionais que atendem a essa criança. Dessa forma, o GDF tem precarizado o processo de inclusão escolar e forçado as crianças com deficiência a se concentrarem em determinadas escolas, isso não é inclusão”, finaliza.

 

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