Desmonte das políticas para mulher eleva índice de feminicídio no Distrito Federal

A pandemia do coronavírus parece ter banalizado ainda mais as agressões e os assassinatos de mulheres no Distrito Federal e no País. As estatísticas, que são altas e mantêm o Brasil no quinto lugar no ranking mundial de violência contra as mulheres, cresceram muito e preocupam responsáveis comprometidos/as com a segurança pública e famílias de pessoas em situação de vulnerabilidade e mobilizam os movimentos de defesa da vida das mulheres. Nesta reportagem, o Sinpro-DF mostra como o desfinanciamento das políticas para mulheres influem no aumento de feminicídios.

Estudos realizados pelo Fórum Nacional de Segurança Pública no ano passado mostraram que, de fato, a pandemia da Covid-19 piorou a violência doméstica e familiar no País. Este ano, em apenas 10 meses, o Distrito Federal registrou o assassinato de duas mulheres a cada mês, ou seja, entre janeiro e outubro de 2021, houve 20 vítimas de feminicídio. Só no fim de semana passado, três feminicídios, ocorridos entre sábado (16/10) e segunda-feira (18/10), aumentaram para 53% esse tipo de ocorrência no DF.

A violência contra a mulher aumentou em todo o País. Na segunda-feira (18/10), o Instituto de Segurança Pública (ISP), do Rio de Janeiro, divulgou o Dossiê Mulher 2021, no qual revela que 98 mil mulheres foram vítimas de violência doméstica e familiar no estado em 2021 – cerca de 270 casos por dia e 11 vítimas por hora. Segundo o documento, 78 mulheres foram vítimas de feminicídio e em 15 deles os filhos presenciaram os crimes. 

Levantamento da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul (SSP-RS) indica alta de 225% no número de feminicídios entre agosto de 2020 e agosto de 2021. No acumulado desde janeiro, houve aumento de 26% entre 2020 e 2021. Foram 57 feminicídios nos primeiros oito meses de 2020, contra 72 no mesmo período deste ano. Além disso, houve 20,9 mil ameaças, 11,2 mil casos de lesão corporal e 1,2 mil estupros no ano.

O Diagnóstico de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher, divulgado pela Polícia Civil de Minas Gerais (PCMG), em agosto deste ano, revelou que 90% das vítimas de feminicídio no estado, entre 2019 e 2021, não tinham medida protetiva. O documento indica que entre 2017 e 2021, 12 mulheres foram mortas por mês; que 69% das assassinadas eram negras; que o número de casos de violência doméstica do primeiro semestre de 2021 foi maior do que o de 2020 no mesmo período, dentre outros dados.

Os estudos constatam que os feminicídios têm aumentado entre mulheres negras. No Distrito Federal, o mais recente foi contra a dirigente sindical Cilma da Cruz Galvão, 51 anos, assassinada a facadas pelo próprio namorado, no início deste mês, em sua própria residência. Ela era diretora de Políticas para as Mulheres e Combate ao Racismo do Sindicato de Serviços Terceirizáveis (Sindiserviços-DF). No dia seguinte, o grupo de mulheres que se intitula “Levante Feminista contra o Feminicídio no DF” realizou um protesto contra a morte da sindicalista e das demais vítimas desse crime.

Nessa terça-feira (19/10), o Levante Feminista apresentou uma petição a ser entregue, na segunda-feira (25/10), ao Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) pedindo a instauração de procedimentos para apurar a responsabilidade do Governo do Distrito Federal (GDF) por omissão na adoção de políticas públicas para o enfrentamento dos feminicídios, “cujo número, no primeiro semestre deste ano, foi 100% maior do que o do mesmo período em 2020”, diz a petição.

O documento pode assinado e subscrito por qualquer pessoa. Basta clicar no título dela, a seguir,  “Quantas ainda serão assassinadas até que o poder público resolva proteger nossas vidas?” 

 

Estado peca pela falta de investimento

Apesar de ter a terceira melhor e mais avançada legislação do mundo de combate à violência doméstica, o Brasil ocupa o quinto lugar no ranking mundial desse tipo de crime. Mas a escalada de aumento desse tipo de crime tem causas específicas. O principal motivo é a falta de investimentos financeiros e o desmonte das políticas públicas para a mulher. Trata-se de uma omissão que tem custado muitas vidas.

O Estudo Técnico nº 16/2020, da Câmara dos Deputados, mostrou que a execução orçamentária de ações de combate à violência contra mulheres caiu 95% nos últimos 5 anos. Em 2015, no governo da ex-presidenta Dilma Rousssef (PT), o governo federal investiu R$ 119 milhões. Em 2019, primeiro ano de governo, Jair Bolsonaro (ex-PSL) o investimento foi de R$ 5,3 milhões.

A diretoria colegiada do Sinpro-DF aponta para o fato de que a falta de investimento não ocorre apenas na instância federal. O DF, segundo sua avaliação, vive hoje esse aumento de feminicídios e de outras violências contra a mulher porque o governo Ibaneis Rocha (MDB) também não investe na prevenção e combate a esse tipo de crime. Integrantes da Comissão de Planejamento e Orçamento da Secretaria de Mulheres do Distrito Federal, do Conselho dos Direitos da Mulher do Distrito Federal (CDM-DF), denunciam a falta de transparência do GDF na gestão financeira do combate à violência.

“Na manhã dessa terça-feira (19/10), participamos de uma reunião tensa por causa da falta de transparência na gestão. No CDM-DF, por exemplo, a gente pede as informações de como está sendo executado o orçamento e a resposta sempre vem evasiva, vazia e chega a ser desrespeitosa”, denuncia Vilmara Pereira do Carmo, coordenadora da Secretaria de Mulheres do Sinpro-DF e suplente de Thaísa Borges Magalhães, conselheira titular no CDM-DF e coordenadora da Secretaria da Mulher Trabalhadora da Central Única dos Trabalhadores no Distrito Federal (CUT-DF).

A dirigente do Sinpro-DF conta que, “quando questionadas sobre recursos financeiros, representantes do GDF mandam consultar no Portal da Transparência se a gente quiser saber o quanto o governo Ibaneis investe no combate à violência contra a mulher. E isso acontece numa comissão presidida por uma defensora pública, que tem como integrante o MPDFT. Temos cobrado porque a execução orçamentária, no DF, está muito aquém daquilo que foi previsto pelo próprio governo no PPA [Plano Plurianual]”.

Vilmara informa que o Plano Plurianual do GDF prevê mais de R$ 500 milhões para investimento em políticas para mulheres em 2021. “Na LOA  [Lei Orçamentária Anual], foram destinados mais R$ 170 milhões. No entanto, estamos em outubro de 21 e, até agora, só foram executados R$ 36 milhões. Execução muito baixa. Há seis convênios firmados com a União desde o ano passado e outros que já foram renovados para 2021 e nenhum foi executado”, critica.

Dentro desses convênios há a previsão de construção de quatro Casas da Mulher Brasileira. “Uma dessas casas seria construída, inclusive, ali em Sobradinho II, onde Márcia foi assassinada. É importante destacar que o governo Bolsonaro tem responsabilidade no aumento dos crimes por falta de investimento e pelo desmonte das políticas de mulheres. Porém, a União disponibilizou recursos financeiros para a construção de Casas da Mulher Brasileira no DF, mas o governo Ibaneis não executou, não construiu. Por que o GDF não fez? Se tivesse uma dessas casas em Sobradinho II talvez Márcia não teria sido morta”, afirma.

Márcia Aparecida Bispo Duarte, 43 anos, morreu, nessa segunda-feira (18/10), no Hospital de Base, após 10 dias internada na Unidade de Terapia Intensiva (UTI) em decorrência das graves lesões na cabeça e na face. Ela foi brutalmente agredida com uma barra de ferro por um homem de apelido Fusquinha, marido da cunhada, Ivani Ferreira da Silva, 42, que também foi atingida pelo esposo e segue com sequelas, sem conseguir falar nem andar. O agressor está preso preventivamente pelos crimes de feminicídio, tentativa de feminicídio e agressão corporal contra a enteada de 6 anos.

 

Desfinanciamento das políticas para mulheres

Mônica Caldeira, diretora da Secretaria de Mulheres do Sinpro-DF, entende que os dados sobre a violência confirmam também a existência e a persistência dessa base no machismo estrutural da sociedade. “A mulher não tem o direito de se manifestar nem dentro nem fora de casa e muito menos autonomia para, por exemplo, terminar um relacionamento e romper uma escalada de violência”, diz.

“Está comprovado que essa violência vem aumentando por falta de financiamento público e pela ação deliberada dos governos federal e distrital na desestruturação dos instrumentos de combate a esses crimes, o que afeta a aplicação das leis. Também não investem na execução de outras iniciativas, como campanhas nacionais de conscientização sobre o machismo e o racismo, e nem em políticas de emprego e renda para que mulheres vítimas da violência doméstica e familiar consigam interromper o relacionamento abusivo antes de ele chegar ao último degrau, que é o feminicídio”, observa a diretora.

Em fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde informou que a cada 4 minutos uma mulher era agredida e que, nos últimos anos, os índices de feminicídio também cresceram no País porque o tema perdeu importância na escala de prioridades do governo federal. Entre 2015 e 2019, o orçamento da Secretaria da Mulher, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, sofreu uma drástica queda. Caiu de R$ 119 milhões, em 2015, para R$ 5,3 milhões em 2019.

Por um lado, o Portal da Transparência apontava para o fato de que o primeiro ano de governo do presidente Bolsonaro foi o que menos destinou recursos para o combate à violência contra a mulher. Do total empenhado (R$ 7,6 milhões), foram pagos apenas R$ 5,3 milhões para investimento na execução de políticas públicas ligadas ao tema.

Por outro lado, em 2015, penúltimo ano da ex-presidente Dilma, o governo destinou R$ 119 milhões para investir em ações voltadas às mulheres. Na época, o valor empenhado havia sido de R$ 130 milhões. Em junho de 2020, um estudo da consultoria da Câmara dos Deputados identificou que a baixa execução orçamentária nas políticas para mulheres favoreceu o aumento da violência. À medida que o governo Bolsonaro gastou apenas R$ 5,6 milhões de um total de R$ 126,4 milhões previstos para esse tipo de políticas, as denúncias de violência ao Ligue 180 cresceram 35%.

Dados divulgados pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, em maio de 2020, revelaram que, desde o início da pandemia de covid-19, as denúncias de violência contra as mulheres ao Ligue 180 cresceram. Em abril, quase 10 mil queixas de violência doméstica foram registradas na Central de Atendimento à Mulher. Ao comparar abril de 2020 com o mesmo período de 2019, as denúncias cresceram mais de 35%. O balanço divulgado pelo ministério informa ainda que, entre 2018 e 2019, o total de tentativas de feminicídio denunciadas no Ligue 180 aumentou 74,6%, saltando de 2.075 para 3.624 notificações.

Segundo o estudo da Câmara, quando se compara o total de recursos autorizados nas Leis Orçamentárias Anuais (LOA) de 2019 e 2020, verifica-se um crescimento de R$ 51,7 milhões para R$ 126,4 milhões, ou seja, 144%. Porém, “essa expansão foi inteiramente proporcionada pela atuação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal durante o processo de emendamento da lei orçamentária, uma vez na proposta do Poder Executivo houve, em realidade, um decréscimo de R$ 2,1 milhões”, aponta o documento.

Quanto à execução orçamentária, em 2020, o ministério reservou, até 5 de junho, o montante de R$ 22,3 milhões, mas gastou, efetivamente, apenas R$ 5,6 milhões. Não estão computados, segundo o documento, os pagamentos de anos anteriores – os chamados restos a pagar. Os recursos foram utilizados no Ligue 180 e no Disque 100, que recebe denúncias de violação de direitos humanos.

 

Casa da Mulher Brasileira

 

Na LOA 2020, foram autorizados R$ 20,1 milhões para atividades relativas à Casa da Mulher Brasileira em todo o País, e a totalidade das verbas já foi reservada para os serviços, mas nenhum valor efetivamente pago ainda. “De acordo com o Ministério da Mulher, os contratos foram assinados apenas no final de 2019, e os recursos começarão a serem pagos em 2020”, afirma o estudo assinado pela consultora de Orçamento e Fiscalização Financeira Júlia Marinho Rodrigues.

A Casa da Mulher Brasileira agrega uma série de serviços especializados para atendimento da mulher em situação de violência, como delegacia, juizado, promotoria e abrigamento de curta duração.

 

Sem financiamento do Estado, Leis do Feminicídio e Maria da Penha não funcionam

 

“Estamos no décimo mês de 2021 e já são 20 mulheres executadas pelo simples fato de serem mulheres. Essa matemática não bate. Veja só: A Lei Maria da Penha completou 15 anos, lei que representa até hoje uma das principais ferramentas de promoção e garantia dos direitos humanos das mulheres. É a terceira melhor e mais avançada legislação do mundo no combate à violência doméstica, mas o Brasil é o quinto país no ranking mundial de feminicídios”, destaca Hellen Frida, assessora de gênero na Câmara dos Deputados, ativista feminista, coordenadora da Rede de Solidariedade do DF, doula e produtora cultural.

Ela lembra que a Lei do Feminicídio está em vigor há 6 anos, é responsável pela entrada do feminicídio no rol dos crimes hediondos e que, a partir dela, foi possível quantificar, por estatísticas, o assassinato de mulheres pelo fator gênero. “O problema é que para combater violências dessa magnitude somente as leis não resolvem. É preciso investimentos profundos e muita articulação do sistema de saúde, de cuidado, de proteção, de justiça, de educação, de assistência social. Sobretudo é preciso aplicação integral dessas leis e de investimento de recursos financeiros do Estado em políticas públicas. Precisamos de um Estado forte e sensível à causa para se pensar em começar a combater essas violências”.

Hellen também destaca o fato de os governos Bolsonaro e Ibaneis terem desmontado a estratégia de construir um pacto nacional de enfrentamento à violência contra as mulheres, que envolve investimento público. Ela informa que esse pacto é necessário no enfrentamento da violência, nos serviços e instrumentos públicos destinados a esse combate, bem como nas formações, nas campanhas e no sistema de cuidado e proteção.  “Vale lembrar que a violência contra as mulheres é uma pandemia anterior à atual crise sanitária e ela se sobrepõe à pandemia de covid-19”, alerta.

 

 

Desmonte das políticas de mulheres

 

Graça Pacheco, advogada especializada em violência contra a mulher e militante feminista, avalia que “a pandemia acontece num momento em que se promoveu uma completa desestruturação no financiamento das políticas públicas, atingindo em cheio as políticas criadas no início da década de 2000, com forte estruturação da Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM) no governo federal e a criação de estruturas semelhantes em parte significativas dos estados brasileiros”.

Ela afirma que o esvaziamento dos recursos foi sacralizado com a Emenda Constitucional no 95/2016 que, ao congelar os gastos públicos, colocou em risco as políticas ainda frágeis de proteção às mulheres no ambiente familiar e no local de trabalho e outros setores excluídos. E observa que é possível trabalhar com, no mínimo, duas questões para entender a situação que o Brasil está vivendo: a violência e o racismo. Ambas, segundo Graça, “estão alicerçadas numa sociedade desigual, pois quanto mais desigual a sociedade, mais sofre são as mulheres”.

“A primeira questão, que nos remete ao aumento da violência, foi a eleição do projeto autoritário para o governo federal. É um fato e todas nós sabemos disso. Elegeu-se um projeto que prometeu um passado! Uma família do passado em que o patriarca é quem manda, uma economia do passado à custa da exploração das pessoas, uma educação do passado de preferência para os pobres na própria casa, e uma moral do passado, sem liberdade, sem direitos a sexualidade livre, uma política pública de caridade feita pelas igrejas”, enumera a advogada.

E continua: “A segunda questão é a Covid-19. Uma pandemia que empurrou para dentro de casa a violência que até então estava mais diluída na sociedade. Juntamente com a pandemia, veio o fechamento dos poucos serviços de proteção às mulheres e o completo desfinanciamento dos serviços. A priorização dos serviços de saúde para atender à pandemia, o fechamento das escolas, a ausência de vacinas – com o agravante da precária gestão da pandemia – formaram o combo da morte”, finaliza.