Deputado bolsonarista invade escola na Cidade Estrutural para censurar trabalhos de estudantes

Celebrada no dia 20 de novembro, a Consciência Negra motivou trabalhos pedagógicos e artísticos nas escolas do Distrito Federal, como acontece todos os anos. Porém, no CED 01 da Cidade Estrutural, que é uma escola militarizada, o que deveria ter sido mais uma prática de ensino-aprendizagem e reflexão trouxe um episódio de arbitrariedade e autoritarismo contra o professor e as gestoras da escola.

Nas turmas de oitavo e nono anos do ensino fundamental, os estudantes foram convidados por seu professor de História a expressarem reflexões e sensações que o Dia da Consciência Negra lhes traz através de charges encontradas, principalmente, pela internet. Os jovens atenderam ao chamado e um mural na área comum da escola exibiu os resultados desse trabalho. A prática não é nova, não é exclusiva do CED 01 e costuma dar bons resultados na construção de diálogo e trocas entre os estudantes e deles com seus professores e professoras.

O tenente que ocupa o cargo de diretor disciplinar da escola, incomodado com alguns dos trabalhos, que abordavam a violência ou mesmo a abordagem policial em relação à população negra, solicitou à vice-diretora, professora Luciana Pain, que esses trabalhos fossem retirados dos murais. “Nossa escola está situada numa região de periferia, a maioria de nossos estudantes é negra. Eles falaram do que eles vivem na pele, não podemos cerceá-los!”, considerou Luciana, que se recusou a obedecer à solicitação do tenente.

O caso ganhou as redes sociais, e a escola, sua equipe gestora e o professor que propôs o trabalho foram questionados por pessoas que sequer pisaram ali. Um texto que questionava os trabalhos trazia a emblemática frase: “a imagem tanto de policiais como da própria instituição estão sendo covardemente atacadas e denegridas numa tentativa de levar à sociedade de que a corporação é racista” (sic).

Em visita à escola, o coronel Alexandre Ferro, subsecretário das escolas em gestão compartilhada da Secretaria de Segurança Pública do DF, não viu problema algum no trabalho dos estudantes. Assim, a polêmica iniciada pelo tenente foi encerrada e os trabalhos foram mantidos onde estavam.

Arbitrariedade

Acontece que em plena quarta-feira, dia de grande volume de trabalho na Câmara Federal, o deputado federal bolsonarista Heitor Freire, do PSL do Ceará, foi até o CED 01, motivado pelos vídeos que haviam circulado nas redes, envoltos no discurso de ódio tão característico desse setor. Ele invadiu o local acompanhado de uma assessora, não se apresentaram ao corpo pedagógico da escola, e filmaram a vice-diretora sem autorização dela. O parlamentar também tentou intimidar a professora e fez ameaças do tipo “você vai cair” quando ela lhe informava qual o procedimento formal para registrar reclamações e questionamentos.

Na manhã desta quinta-feira, 25, a comunidade escolar se manifestou num ato em apoio à vice-diretora Luciana Pain, que foi firme na defesa da autonomia didático-pedagógica da escola e do colega responsável pelos trabalhos em questão, bem como na defesa da liberdade de expressão dos estudantes. O ato também se solidarizou pelo constrangimento causado pelo parlamentar, que, numa atitude que pode indicar abuso de autoridade, desrespeitou a professora, seu trabalho e a comunidade escolar do CED 01 como um todo. “Não aceitaremos mordaça”, afirmou Luciana.

A diretora do Sinpro Márcia Gilda, da Secretaria de Raça e Sexualidade, lembra que as charges não compunham uma mostra para a comunidade escolar, mas sim, expunham para o interior da escola, para os próprios alunos, o resultado de um trabalho deles. Entretanto, a ação do tenente tirou os trabalhos de seu contexto e fez com que eles percorressem as redes sociais assim, descontextualizados: “Foram abordadas todas as injustiças e dificuldades enfrentadas pelo povo negro no Brasil, inclusive a violência policial”, destaca Márcia. “O CED 01 está cumprindo seu papel para uma educação transformadora, pois o projeto reverberou, colocou o dedo na ferida, escancarou tanto a realidade quanto a hipocrisia que não quer tratar do tema do racismo”, completa ela.

O trabalho pedagógico desenvolvido nas aulas não foi uma ação isolada da escola na celebração do Dia da Consciência Negra. Em evento no sábado dia 20, apresentou-se uma roda de capoeira, estudantes recitaram poesias e as jovens tiveram seu cabelo trançado por uma estudante queniana do período noturno.

Os dados não mentem

O conteúdo que tanto incomodou o tenente e o parlamentar, entretanto, não está em desacordo com a realidade. Os dados da 15ª edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), mostram que, em 2020, foram mortas em intervenções policiais 6.416 pessoas. Dentre elas, 78,9% eram negras. Em 2019, ainda segundo o FBSP, 79% dos mortos pela polícia eram pessoas negras.

“Com esses dados, podemos mostrar que não é um viés racial, não é excesso de uso da força, não é violência policial letal acima do tolerado, é racismo. Quando analisamos a violência policial, nós não conseguimos contabilizar abordagens violentas, espancamentos, humilhações do dia a dia, mas conseguimos contar os corpos empilhados nessas ações”, disse, em nota, a coordenadora da Rede de Observatórios da Segurança e do Centro de Estudos de Segurança e Cidadania, Silvia Ramos ao portal da Agência Brasil, agência de notícias vinculada à Empresa Brasileira de Comunicação (EBC).

“Não adianta querer fechar nossos olhos, os dados estão aí. É preciso que nos preocupemos com a solução para esses índices em vez de negá-los”, aponta Márcia Gilda. “O trabalho dos estudantes incomodou por ter partido de uma escola de gestão compartilhada cívico-militar”, opina ela.

Militarização e mordaça

O Sinpro-DF, que acompanhou esse episódio no CED 01 da Estrutural desde o início, sempre questionou a proposta de militarização das escolas, e uma das preocupações fundamentais era a possibilidade de sobreposição dessa gestão compartilhada sobre a gestão democrática. A tentativa do diretor disciplinar do CED 01 de censurar os trabalhos dos estudantes é uma demonstração de que esse é mesmo um risco permanente.

A tentativa de intimidação do deputado bolsonarista contra a vice-diretora da escola, por sua vez, é um dos efeitos causados pelos defensores da mordaça, que sustentam um discurso de criminalização dos professores e professoras e sua atividade, colocando-os sob suspeição e sob a pecha de “doutrinadores”. Esse discurso abre caminho para arbitrariedades e até violências de todo tipo contra a categoria.             

Assista o vídeo da TV Sinpro sobre o trabalho proposto pelo professor por ocasião do Dia da Consciência Negra: