Creche: Variações sobre o mesmo tema?

Toda vez que, por exemplo, um artista escolhe um tema e submete-o a alguma mudança, está criada a chamada variação. Ou seja, o resultado é algo diferente, porém continua remetendo ao original. Olhemos a natureza: quantos tipos de flores existem? Mesmo com uma grande variedade, nenhuma deixa de ser reconhecida como flor.

É plausível dizer que situação similar parece acontecer com a Educação Infantil, mais especificamente com a Creche. Representantes políticos, lideranças comunitárias, famílias, profissionais da educação, membros do judiciário, ativistas da sociedade civil organizada, entre outros e outras, propõem, opinam, discutem a questão da Creche. Acabam apresentando diferentes versões sobre o que é e como funciona uma Creche. Porém, com um agravante: distanciam suas variações do que foi sendo construído, na prática e teoricamente, sobre a Creche.

Para iluminar a questão, trazemos o que dispõe a legislação nacional vigente. Comecemos, claro, pela Constituição  Federal de 1988, onde o direito à Creche é contextualizado dentre os direitos sociais. Logo depois, em 1990, o Estatuo da Criança e do Adolescente reiterou  o dispositivo constitucional ao afirmar que é dever do Estado assegurar à criança o atendimento em Creche e Pré-escola.

Em regulamentação ao comando constitucional, a Lei de Diretrizes Básicas da Educação de 1996 preconizou que a Educação Infantil tem como finalidade o desenvolvimento integral da criança, em seus aspectos físico, psicológico, intelectual e social, complementando a ação da família e da comunidade.

Cabe ressaltar que a Educação Infantil é composta por dois atendimentos distintos e, concomitantemente, complementares: Creche (0 a 3 anos) e Pré-escola (4 e 5 anos).

Já as Diretrizes Nacionais da Educação Infantil de 2009 são bastante assertivas quanto à Educação Infantil quando assinalam:

Primeira etapa da educação básica, oferecida em creches e pré-escolas, às quais se caracterizam como espaços institucionais não domésticos que constituem estabelecimentos educacionais públicos ou privados que educam e cuidam de crianças de 0 a 5 anos de idade no período diurno, em jornada integral ou parcial, regulados e supervisionados por órgão competente do sistema de ensino e submetidos a controle social.

            A declaração condensa as características chave da concepção mais avançada acerca da Educação Infantil, sendo que o texto ( e toda legislação afim) consagra lutas, pesquisas, estudos e experiências exitosas no campo do atendimento educacional para a primeira infância em nosso país. Chamamos a atenção para três elementos da declaração acima: ‘espaços institucionais não domésticos’, ‘educam e cuidam’ e ‘período diurno’.

            E, a partir da simples aceitação desses elementos como imperiosos para entender o que é e como se organiza legalmente a Educação Infantil e, por conseguinte, o que é e como se organiza legalmente a Creche, podemos dizer que as variações que, por vezes, foram implantadas ou ainda aquelas que insistem em emergir desfiguram o tema, qual seja, o atendimento educacional de 0 a 5 anos de idade.

            Vez por outra, aparecem proposições sobre a Educação Infantil, especialmente sobre a Creche que desvirtuam o sentido e a prática do que é educar e cuidar de bebês e crianças pequenas: creche noturna, atendimento ininterrupto (sem férias ou recesso), Mãe Crecheira, voucher escolares.

            Vamos discutir cada uma dessas proposições:

– Creche noturna: a criança que frequenta a jornada diurna é atendida por profissionais especializados, interage com adultos e seus pares etários, brinca e explora o ambiente e seus materiais, acessa um currículo formal, entre outras  atividades. Seria possível disponibilizar todos esses recursos no noturno? A criança atendida durante a noite ficaria em desvantagem em relação àquela que está no diurno?  As únicas atividades seriam o sono e a alimentação? Sendo exclusivamente uma ação de cuidado, como ficaria a ação educativa? A criança matriculada numa creche diurna teria direito ou não à creche noturna? Caso tenha, seriam duas matrículas e duas vagas para apenas uma criança? E se essa criança estivesse na creche diurna, seria mantida também no período da noite?

– Creche sem férias ou recessos: caso a criança fique praticamente todos os dias do ano na Creche, cairia por terra uma das conquistas da civilização: a diferença entre ano civil e ano letivo. A distinção demarca e organiza os espaços e tempos das várias instituições onde o ser humano nasce, cresce e se desenvolve. A Creche já ocupa boa parte do tempo da criança (até 10 horas diárias), o que significa que ela passa poucas horas acordada com a família nos chamados dias úteis. No caso da proposta em questão se materializar, quando crianças e profissionais teriam direito ao descanso por meio do distanciamento temporário da instituição escolar? Qual seria o tempo de convivência, de criação e fortalecimento de vínculos entre as crianças e os adultos da família, da igreja, da rua? Quais seriam os tempos de formação e de planejamento, garantidos em lei para os profissionais da educação?

 

– Mãe Crecheira: solução que se originou nas periferias diante do dilema das mulheres que penam para conciliar trabalho e maternidade, ou seja, em função do desamparo que o Estado impõe pela falta de vagas na Educação Infantil.  Instituir a Mãe Crecheira é legalizar um tripé frágil: a precarização do atendimento das crianças sem escola, o “pesadelo logístico” imposto às mulheres e a precariedade dos direitos trabalhistas das cuidadoras. Ou seja, retomar essa ideia é voltar no tempo, antes da Constituição e da LDB, demolindo os avanços duramente conquistados para que as crianças, independente da classe social, etnia, religião, sexo, nacionalidade, deficiência,  tivessem direito a uma educação escolar com os parâmetros de qualidade social os mais equânimes possíveis. Intencionalmente direcionada aos mais pobres, a Mãe Crecheira oficializa a informalidade e descompromete o poder público com a oferta da Educação Infantil. Consequentemente, fica claro que, para essa faixa etária, alguns dirigentes avaliam como dispensável a formação específica, estrutura, materiais e equipamentos adequados para atendimento dos bebês e crianças menores. Reconhecemos, entretanto, o papel social cumprido pelas bravas Mães Crecheiras diante das omissões e negligências dos poderes republicanos. Sem, no entanto, concordar com a proposta.

 

– Voucher –  em boa parte do mundo,  a palavra é associada a viagens, cupons, títulos, recibos. No Brasil, o termo está se estendendo para o campo educacional. Sem cumprir seu dever de criar vagas nas instituições públicas, os legislativos e executivos de diferentes entes federados possibilitam a destinação de recursos diretamente às famílias para a matrícula das crianças em instituições privadas. Indubitavelmente, existe um grande mercado de escolas privadas interessadas em receber recursos públicos advindo do governo mediante a compra de vagas. E sabemos que o que nasce como temporário, para supostamente resolver a carência ou inexistência de vagas, acaba por se tornar definitivo. Tal como o famoso “puxadinho” que vai se alastrando e redesenhando as construções como se estivesse previsto nas plantas arquitetônicas. Sabidamente a proposta do voucher volta-se para as famílias em situação de vulnerabilidade, tornando adversários aqueles que a combatem. Os defensores do voucher usam justamente as dificuldades econômicas e sociais como seus escudos, invertendo o jogo diante dos que lutam por um atendimento educativo público, democrático e de qualidade social. Outra ponto que merece ser avaliado reside no fato de que os convênios, as parcerias e os vouchers exigem fiscalização e acompanhamento públicos, minando a premissa do barateamento de custos dessas políticas privatistas.

            Vemos, então, que as variações sobre a Creche, impostas, defendidas, elaboradas por representantes políticos e por governantes vão, na verdade, de encontro ao que a própria legislação consagra e às necessidades infantis de cuidado e educação.

Os proponentes das ideias supracitadas ignoram o fato de que o direito à Creche não está atrelado à situação trabalhista das famílias, pois mesmo o(a)s pequeno(a)s cujos o(a) responsáveis legais estão sem emprego ou exercem suas funções em domicílio (como uma dona de casa) têm direito à escolarização. Como acontece em qualquer outra etapa ou modalidade da Educação Básica.

Desconhecem igualmente o quanto pode ser prejudicial e limitante para uma criança, sua família e toda a sociedade uma longa permanência em instituições, remetendo ao mau fadado tempo da denominada institucionalização da assistência à criança pobre, caso sejam aprovadas iniciativas como Creche noturna, por exemplo.

Interessante notar que esses mesmos proponentes das iniciativas abordadas são os que defenderam e concordaram com a reforma trabalhista que acarretou, entre outras agruras, a jornada de trabalho intermitente; articularam a reforma previdenciária; não cogitam a ampliação da licença-maternidade ou paternidade; aviltam o Estatuto da Criança e do Adolescente; desconsideram as mortes, as negligências e os maus-tratos infringidos contra as crianças, especialmente as pobres e negras; minimizam a violência contra as mulheres.

Isto é, votam, legislam, executam, julgam leis, situações, projetos e ações que prejudicam o desenvolvimento pessoal feminino e, outrossim, menosprezam a infância, fase da vida que deveria ser sinônima de proteção. Porque políticas públicas direcionadas à infância e às mulheres devem ser integradas, favorecer o protagonismo feminino e infantil e ter um caráter universal. Nesse caminho toda a sociedade avança.

O que temos hoje? Mais pobreza, menos Creches. O que queremos agora? Mais e mais Creches, mais e mais Educação Infantil, mais e mais educação pública, mais e mais justiça social.

Novas concepções, ideias e práticas didático pedagógicas são sempre bem-vindas no campo educacional. Desde que se sustentadas na premissa de variar sem desconfigurar, sem agredir, sem dilapidar um tema tão delicado, sensível e necessário para um presente e um futuro melhores: uma Creche onde se cuida e se educa cada criança que, desde antes do seu nascimento, já é um cidadão, uma cidadã de pouca idade.

 

Edna Rodrigues Barroso

Pedagoga, Mestre e Doutora em Educação, Professora Aposentada da SEDF.